A 'AMSTERDÃ' DA ÁSIA

Como a Tailândia, uma monarquia militarizada, se tornou o novo oásis da cannabis

Claudia Jardim Colaboração para o TAB, de Bangkok e Phuket (Tailândia) Claudia Jardim/UOL

Era fim de tarde quando o tailandês Rittipong Dechkul, 24, saiu do trabalho, pegou um ônibus e parou em frente a um café de Bangkok com a intenção de passar a noite ali à espera. Ele queria ser o primeiro a comprar maconha num café após a descriminalização da cannabis, que seria anunciada naquela manhã de 9 de junho de 2022 na Tailândia.

Não demorou muito, outros tailandeses que tiveram a mesma ideia foram chegando, silenciosos como costumam ser, para se juntar a Dechkul madrugada adentro. Era um marco para todos.

"Quando abri as portas e vi pessoas esperando do lado de fora não acreditei, as lágrimas correram no meu rosto", conta Rattapon Sanrak, 36, dono do Highland, um dos primeiros cafés a vender cannabis no dia da despenalização. Teve até festa.

"Esperamos muito por esse momento", diz Sanrak, cujo entusiasmo pela cannabis tem raízes pessoais: desde os tempos de faculdade, nos EUA, ele sofre de migrânea severa (uma doença neurológica que provoca fortes dores de cabeça). Nenhum tratamento convencional controlava as crises e ele mal conseguia sair da cama. Até que um médico receitou "uma medicina alternativa".

Era o canabidiol, óleo extraído da cannabis sativa que atua no sistema nervoso central, com propriedades antiinflamatórias e antioxidantes. "Fiquei surpreso, porque cresci numa sociedade que diz que isso é droga", lembra Sanrak. Com o CBD, conta que se recuperou e pôde voltar à sala de aula.

Na época, sua mãe foi diagnosticada com câncer. "Não consegui convencê-la de que a cannabis poderia ao menos permitir que ela vivesse mais tempo e com dignidade", recorda. "Foi duro ver minha mãe morrer com dor por causa do preconceito."

Após a morte da mãe, Sanrak passou a defender o acesso universal à cannabis medicinal e de uso recreativo em fóruns públicos e nas redes sociais — e foi nesses espaços que a bandeira da descriminalização foi ganhando força a ponto de chamar a atenção de produtores rurais, e do próprio governo.

A Tailândia é o primeiro país na Ásia (conhecida pela política linha-dura contra drogas) a retirar a cannabis de sua lista de narcóticos. Em 2018, o país já havia autorizado a cannabis medicinal para o tratamento de 38 doenças. Em 2022, descriminalizou produção, venda e consumo, inclusive recreativo, tornando-se um dos países mais liberais do mundo em relação à maconha.

A despenalização teve impacto imediato no sistema prisional: mais de 3.000 presos que haviam sido sentenciados por porte ou venda de maconha foram libertados.

Algo impensável há 20 anos, quando a "guerra contra as drogas", liderada pelo então presidente Thaksin Shinawatra, foi responsável pela morte de mais de 2.500 pessoas. Muitos foram vítimas de execuções extrajudiciais, outros condenados à pena de morte. À época, jornalistas foram convidados para presenciar as execuções.

A política punitivista ainda é aplicada nos países vizinhos. Na Indonésia e em Singapura, a posse de cannabis pode resultar em prisão perpétua ou até pena de morte. Nas Filipinas, a "guerra" encabeçada pelo ex-presidente Rodrigo Duterte, em 2016, foi responsável pela execução extrajudicial de mais de 6.000 pessoas.

Na Tailândia, uma monarquia governada por uma junta militar que tomou o poder após um golpe em 2014, a maconha começou a ser vista com outros olhos.

De olho no boom econômico da cannabis medicinal nos EUA, políticos conservadores passaram a ver na planta uma oportunidade de negócios. "A lei sobre a cannabis é uma lei para enriquecer", afirmou o vice-premiê e então ministro de Saúde, Anutin Charnvirakul, o principal arquiteto da legalização.

Líder do partido pró-militar Bhumjaithai, o segundo mais influente do país, Charnvirakul virou defensor da produção da maconha para uso medicinal como alternativa econômica para pequenos produtores rurais. Em plena campanha eleitoral para a definição do novo primeiro-ministro, em 2022, prometeu doar 1 milhão de plantas de maconha para incentivar a produção local.

Segundo a Câmara Tailandesa de Comércio, o setor pode faturar US$ 1,2 bilhão até 2025.

Enquanto caminha pela cidade tirando fotos e provando a comida local, uma de suas especialidades, a tailandesa Nym Korakot, 50, se diverte com o nome dos bares e cafés especializados na venda de cannabis: Wonderland, GetHigh, High and Roll, Dr.Green.

Os nomes em inglês não são acidentais. Recuperar o turismo e as perdas ocasionadas pela pandemia parece ser a missão do momento. "Bangkok é como um gato com 7 vidas. Cheia de surpresas. Aqui tudo é possível", diz Korakot.

Comprar um baseado ou levar para casa alguns gramas de maconha é tão fácil quanto comprar um café. Dos 5.700 pontos de venda de cannabis no país, 1.200 estão em Bangkok — a oferta na cidade é tão grande que compete com os onipresentes locais de massagens. Estão em todas partes.

E não é necessário nem sair de casa, já que apps de entrega de comida incluíram a cannabis e comidas preparadas com a planta em suas listas.

Entretanto, não está tudo liberado: o consumo não é permitido para menores de 20 anos e mulheres amamentando, produtos com mais de 0,2% de THC continuam ilegais, e fumar em espaços públicos também é proibido. Quem cruzar a linha pode ser punido com multa e prisão.

No auge da pandemia, Bangkok se tornou uma cidade fantasma. Com as fronteiras fechadas para o turismo, os poucos restaurantes e comércios que se mantiveram abertos não arriscavam nem acender as luzes de suas fachadas. A crise imprimiu um ar decadente à cidade que era uma das capitais mais visitadas do mundo. Hoje, as áreas turísticas estão iluminadas com os neons das lojas de cannabis.

Ainda não há números oficiais que contabilizem o impacto da legalização no turismo, mas nos bares e cafés os clientes são majoritariamente estrangeiros. "Sem dúvida há um turismo interessado na cannabis. Algumas pessoas chegam aqui com malas, direto do aeroporto", afirma Rattapon Sanrak, dono do café Highland.

Christine Lee, 31, e o namorado Chuang Tam, 32, deram uma pausa no tour de templos, massagens e passeios de barco para comprar cannabis no fim de agosto, em Bangkok.

Recém-chegado de Hong Kong, o casal observava uma butique com curiosidade e certa timidez. Não fosse o aviso dizendo que é proibida a entrada de menores de 20 anos, a Cloud Nine poderia ser facilmente confundida com uma loja de brinquedos, com estilo retrô-futurista, iluminação azulada e sofás brancos e azuis que pretendem simular nuvens no céu.

Vitrines iluminadas e coloridas acomodam um cardápio extenso de produtos. Cannabidiol para uso medicinal, brownies, balas, bebidas com THC e uma infinidade de variantes de cannabis que prometem diferentes sensações: alerta, apetite, foco, euforia, relaxamento.

As variedades ficam à mostra em frascos de vidro, que podem ser observadas através de lentes de aumento instaladas nas tampas. "Não sou usuária frequente, mas sem dúvida fumar maconha sem ter medo de ser presa é uma liberdade imensa e um bônus para visitar a Tailândia", diz Lee.

A cannabis é proibida em Hong Kong, assim como na China continental. O CBD chegou a ser autorizado para uso medicinal em Hong Kong, mas depois voltou a ser considerado como uma "droga perigosa" e banido de novo. "Usava cannabidiol para a insônia, mas agora é impossível", conta Lee.

Após observar flores e ler o menu de opções, o casal optou por uma experiência de euforia e relaxamento. Eles pediram para o vendedor enrolar "dois baseados para levar", confessando, entre risos, a falta de prática.

No sul da Tailândia, na ilha de Phuket, um labirinto de móveis de madeira organizados em um gigantesco galpão de 800 m² separa uma rua movimentada do bunker que se tornou a mina de ouro de Korn Surasak, 31.

É um lugar escuro, discreto. Gatos preguiçosos dormem nas mesas e cadeiras cobertas por uma camada fina de pó. Korn me guiou em direção a uma porta de ferro pesada. Colocou o dedo indicador no leitor de digitais, digitou uma senha e a porta se destravou.

O contraste entre a escuridão do salão de móveis e aquela sala com luz artificial faz lembrar quando um metal precioso brilha dentro de uma caixa-forte. Uma série de luzes de led ao fundo do quarto ilumina treze plantas de pouco mais de um metro. "Essas são as mães", conta, orgulhoso.

Korn se refere às plantas híbridas de maconha sativa e indica que darão as sementes para sua próxima produção. "Depois de um ano provando e ouvindo nossos clientes, decidimos que essas são as melhores."

O bunker foi instalado ali um ano antes da legalização. "Ninguém nunca iria imaginar que estávamos plantando maconha aqui atrás", diz.

O lugar onde ficam as "mães" é apenas a antessala do que Korn realmente quer mostrar. Uma outra porta de metal, com fechadura digital, leva a uma sala com 120 plantas floridas. Na incubadora tudo é controlado nos mínimos detalhes: temperatura, irrigação, fertilização, crescimento, floração e poda.

Filho de camponês, Korn aprendeu com o pai a relação cíclica com a agricultura. E a vida não era fácil no campo. "Meu sonho de menino era criar uma planta que desse dinheiro para melhorar de vida."

Korn fala inglês desde criança e conseguiu um trabalho de subgerente em um hotel cinco estrelas. Sem turistas para atender durante a pandemia, passou a usar o tempo livre no hotel para estudar. Queria aprender a produzir maconha.

"Estava caro para meu próprio consumo e pensei que se plantasse poderia economizar e de repente ganhar um dinheiro."

Korn se uniu à comunidade tailandesa pró-cannabis no Facebook e ali aprendeu o passo a passo para cultivar a planta em ambientes fechados. Apesar de ilegal, era possível conseguir sementes nacionais e importadas da planta. Os primeiros cultivos fracassaram, mas Korn não desistiu. Circulavam rumores de que a legalização era iminente.

Quando a cannabis foi retirada da lista de narcóticos, Korn já ganhava dinheiro com a venda clandestina. Um mês após a legalização, ele pediu demissão do trabalho e, junto com dois sócios, investiu 2 milhões de baht (R$ 280 mil) na produção e abriu um café, o Phuket High.

Ali as portas permanecem fechadas e o ambiente simula a sala de estar de uma casa, com TV pendurada na parede, sofás e mesas.

"Venho aqui ao menos uma vez por dia para fumar e encontrar meus amigos", afirma o inglês Oscar Lim, 32, que mora na Tailândia há cinco anos e comemora a "liberdade" que a legalização propiciou.

"A Tailândia está se tornando a Amsterdã da Ásia, mas muito mais acessível e democrática em termos de custos", diz.

O Phuket High cresceu tanto que, em oito meses, Korn e os sócios abriram outros dois cafés. Além da produção indoor, ele tem um terreno de 1.600 m² que atualmente está sob inspeção do Ministério da Agricultura para o plantio de cannabis medicinal.

Como em todo negócio, quando a oferta passa a ser maior do que a demanda, poucos sobrevivem. Korn tem certeza que estará entre os sobreviventes. "Isso é um sonho feito realidade. Agora, planto dinheiro."

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