QUEBRADA CENTRAL

Mafalala, bairro que sintetiza a história de Moçambique, é terra de reis como Eusébio, Samora e Craveirinha

Precidónio Silvério (texto) e Zé Maia (fotos) Colaboração para o TAB, de Maputo (Moçambique) Leonardo Rodrigues/UOL (animação) e Zé Maia/UOL (foto)

Há um bairro em Maputo, capital de Moçambique, que guarda as mais profundas marcas culturais que aquele pedaço de mundo possui. Chama-se Mafalala. É um lugar periférico e pobre, olhando de longe. De perto, a riqueza transborda em sua dimensão histórica e cultural.

Suas ruas são na maioria estreitas, mas o visual e o clima de Mafalala não se resumem a esses becos. Até 25 de junho de 1975, ano da independência do país, o bairro era a linha divisória geográfica e racial entre o centro da cidade e o resto: na primeira localidade viviam os brancos; na segunda, os negros e mestiços. Após a independência, essa segregação racial foi ultrapassada. E ainda tem sido.

Mafalala distingue-se de outros bairros da capital pelo papel que teve na emancipação intelectual, política e social de Maputo. Lá nasceram e viveram figuras políticas, escritores e esportistas que contribuíram para a independência e a reputação do país.

Ali partilha-se um pouco de tudo e por todos, num bairro que alberga mais de 25 mil habitantes. Divide-se a alegria de viver, a esperança, mas também a tristeza. Sorrisos cruzam-se como um jeito de saudação. Velhos contam estórias e histórias aos mais novos e estes falam das novas coisas do mundo que se orgulham de as ter descoberto. Os velhos, mesmo não entendendo de coisas típicas de aldeia global, abanam as cabeças, como que a consentir àquelas descobertas.

Casas de madeira e zinco são a cara de Mafalala, por isso chamam-no um bairro de latas. Ali nasceram o saudoso Eusébio, a estrela futebolística do Benfica; o poeta-mor moçambicano, José Craveirinha; a grande escritora Noémia de Sousa. Também foi "tecto e sombra" de Samora Machel, o primeiro presidente de Moçambique. Ali, Machel sonhou com um Moçambique livre do colonialismo.

As casas dessas personalidades são, hoje em dia, verdadeiras atrações de visitantes do bairro periférico. Há e haverá mais Eusébios, Lurdes, Craveirinhas e Samoras. Parece que é em Mafalala que se guardam os segredos do tempo.

Em 10 de novembro, uma quinta-feira, a capital moçambicana comemorava os 135 anos de elevação à categoria de cidade. A "cidade das Acácias", como é popularmente conhecida, estava vibrante, muito mais ainda pelo dia, pois a gente de lá é habitualmente assim.

Nesse mesmo dia, irrompemos ao bairro da Mafalala adentro. A rua que conduzia a reportagem despontou-nos uma dose de curiosidades. De onde inicia a rua há um mural colorido, pintado por artistas do bairro. A pintura destaca uma mensagem educativa, apelando para a preservação do meio ambiente. Abaixo do muro havia, no entanto, um montão de lixo. A incongruência entre o apelo e os resíduos denuncia um caminho ainda difícil para a consciência ambiental — justamente num bairro com problemas sérios de saneamento.

A caminho do interior do bairro, um imbondeiro (baobá) atravessou-nos a vista. A planta não é típica de Maputo, muito menos de Gaza e Inhambane, duas províncias do sul de Moçambique.

Perguntamos, repórter e fotógrafo, como é que a árvore tinha lá chegado, mas ninguém sabia responder. A resposta veio da Hámina Ussene, 27, uma jovem moradora e funcionária do Museu da Mafalala: a planta deve ter sido levada por algumas dessas pessoas que deixaram suas zonas de origem para se estabelecerem ali.

Há lá gente do norte, centro e sul de Moçambique. Mafalala foi o bairro periférico que mais acolheu gente saída de outras partes do país, dada a sua localização.

O bairro é o que mais "fala" línguas diferentes da capital — cerca de 80% dos grupos etnolinguísticos de Moçambique estão em Mafalala. O tsonga e o ronga seriam os únicos idiomas do bairro, pois são as línguas típicas de Maputo. No entanto, a fusão intercultural fez com que ali se fale também bitonga, chope, xitswa, sena, ndau, shona, chuabo, macua, nyungwe, nyanja, makonde e suaíli.

Boa parte dos moradores é muçulmana. O centro e o norte de Moçambique têm uma população maioritariamente muçulmana, dada a influência árabe-persa, como resultado do avanço mercantil no século 9. Os árabes penetraram Moçambique ao sul da costa territorial, nas províncias de Nampula e Sofala.

A concentração dos árabes no território moçambicano resultou em mudanças culturais e religiosas profundas. Casamentos com os nativos, a mistura com a língua dos suaílis e a influência da religião islâmica são algumas dessas transformações.

Culturas que se fecham correm risco de desaparecer. Em Mafalala, pelo menos, as culturas misturam-se e convivem plenamente. O Estado moçambicano é laico e a Constituição da República, no seu artigo 12, faz referência à separação entre o Estado e as confissões religiosas e assenta no bem-estar espiritual, tolerância e paz.

Hámina Ussene é um exemplo: ela é filha de mãe ronga (etnia e língua faladas ao sul de Moçambique) e pai macua (língua e etnia típicas da província de Nampula, no norte do país).

No interior do bairro, encontrámos as senhoras Deolinda Mahoche, 59, e Fátima Issufo, 58. Estavam aos risos e palmas. Fátima não parava de sorrir, uma simpatia comum entre mulheres macuas. Nasceu em Angoche, em Nampula, província conhecida como tendo as "muthyanas oreras", termo em língua macua que em português significa "mulheres bonitas". Chegou a Mafalala aos 13 anos, quando os pais se mudaram para Maputo.

Num instante, Fátima achou que seu rosto estava pálido e era preciso bronzeá-lo e deixá-lo mais fresco. Para tal, correu preparar um produto de beleza conhecido pelo nome "musiru", típico de Nampula e comum em outras partes de Maputo, feito do ramo de uma planta de mesmo nome. Quando esfregado contra uma pedra, liberta um pó que, misturado com água, torna-se creme.

Deolinda, amiga da Fátima, ganhou o hábito de usar o produto. "Sinto-me rejuvenescida quando uso o 'musiru'. Fico com a cara limpa e alívio-me das gorduras no rosto", revela.

Além de dona de casa e vendedora, Fátima é bailarina. Faz parte de um grupo cultural de uma dança denominada "tufu". O ritmo, típico do lugar onde nasceu, é um dos cartões de visita para gente que quer ou vai visitar Mafalala.

Seu grupo faz apresentações em casamentos, batismos, aniversários e eventos oficiais. A bailarina já visitou Itália, África do Sul e Argélia, no âmbito da promoção da dança. "Danço desde pequena. O 'tufu' faz parte de mim. É preciso fazer alguma coisa pela cultura. Eu faço dançando."

Em Mafalala há várias expressões culturais. Encontramos também a Associação Cultural Maxaka. "Machaka", um termo escrito em tsonga, língua falada na zona sul do país, significa "família" em português.

"Todos em Mafalala são uma família. Somos um só. Quando dançamos e cantamos exaltamos a familiaridade que nos une", disse João Mandlate, 38, representante do grupo cultural.

O repertório do grupo é vasto: dança-se um pouco de tudo, desde a marrabenta, ngalanga, mapiko, quase todas danças das três regiões de Moçambique. A associação é composta por jovens, adolescentes e até crianças em idade escolar — a maioria mora no bairro. São, ao todo, 70 dançarinos. Mas o grupo recebe qualquer um que queira aprender a dançar.

Aliás, não é só a dança que faz os Machaka. Nas férias, há crianças que aproveitam o tempo para aprender a cantar e tocar instrumentos. A associação tem oferecido estágios a estudantes nacionais e estrangeiros.

Inaugurado em 2019, o Museu de Mafalala foi construído com material e arquitetura que realçam as construções típicas do bairro e a evolução da urbanização: o edifício tem chapas de zinco — o começo da Mafalala — e base de bloco de cimento e vidro. Do segundo andar, os visitantes desfrutam uma paisagem que faz essa simbiose do passado e do futuro.

No interior do museu estão expostas obras de diversas manifestações artísticas. Há fotografias que retratam a história do bairro, desde as construções, as ruas, as figuras políticas, os artistas e mais. As artes plásticas também são uma das atrações.

Além de retratos de Samora Machel, dos escritores José Craveirinha e Noémia de Sousa, pode-se encontrar registos fotográficos de Ngungunhane, o rei do último império (era também chamado Estado) de Moçambique, o Estado de Gaza. Ngungunhane, que significa "Leão de Gaza", foi capturado e preso em 28 de dezembro de 1895 pelo exército colonial português, liderado pelo oficial da cavalaria portuguesa Mouzinho de Albuquerque.

Até o século 19, o Estado de Gaza foi o que mais resistiu e o último a ser conquistado pela Coroa portuguesa. Havia mais de 9 Estados, liderados por autoridades locais, resistindo ao domínio colonial. Capturado, Ngungunhane foi deportado e exilado nos Açores. Perdeu a vida em 1906 e os seus restos mortais foram transladados para a sua terra em 1985, dez anos depois da independência de Moçambique.

O museu, além de ser um patrimônio local, é usado em eventos sociais e familiares. O museu é inclusive residência de artistas locais, nacionais e estrangeiros.

Tem rúgbi em Mafalala. A prova de que o mundo virou uma aldeia global é o fato de uma modalidade dessas ter chegado a um bairro periférico como este.

Omar Alí, 26, é o mentor e "coach" da rapaziada do rúgbi dali de Mafalala. Os treinos acontecem às segundas e quartas-feiras.

O campo que acolhe a equipe não é o ideal. É pequeno e não tão plano como devia ser. Localizado no interior de Mafalala, é feito de terra batida. Para quem não tem medo de se superar, é o palco ideal.

A logística está a cargo de cada um. Falta-lhes um pouco de tudo, mas a garra e o foco, não. Omar é técnico dos rapazes há 7 anos. Além de dar expediente como treinador, atua como personal trainer e divide o seu dia a dia entre treinar o time e o pessoal do ginásio.

Em Maputo, há 5 clubes de rúgbi e o de Mafalala é um deles. Mas, ali no bairro, o esporte é um fato inédito, por certas razões.

O bairro já foi conhecido por reunir as maiores "bocas de fumo" da cidade de Maputo. Jovens, adolescentes e adultos já foram presos por consumir ou vender drogas ali, como suruma (maconha) e haxixe. Por algum tempo, mesmo que não tivessem essa vida, muitos eram vítimas de estigma e preconceito por residirem no bairro.

Hoje em dia, nem tanto. Omar diz que o clube que dirige é uma destas escolas da vida que forma homem novo e, por isso, muitos jovens refugiaram-se ali, para evitar o vício.

"A nossa iniciativa tem um significado mais profundo, o de resgatar jovens e proporcionar-lhes a melhor alternativa de vencer a vida", diz ele.

Mateus Chipanda, 22, é um dos integrantes do rúgbi de Mafalala. De calção branco e empunhando uma bola ao ar, disse que está orgulhoso do clube e da modalidade que escolheu. Ele prefere dizer — "que o bairro me ofereceu".

"Nunca consumi drogas, mas sei que as chances de ter caído nesta vida foram várias. Resisti e continuo resistindo a qualquer tipo de vício. Devo isso ao rúgbi do meu bairro", contou-nos Mateus.

O clube tem mais de 100 atletas e está aberto a qualquer jovem, residente ou não de Mafalala. Omar acredita na possibilidade do Mafalala Rugby Club ganhar mais almas e troféus — já são 10 até agora, todos em competições nacionais. Estão todos expostos no museu do bairro que sintetiza, como poucos, os sonhos e possibilidades de um país jovem e vibrante.

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