O GRANDE CONFISCO

Um passeio pelos prédios e vilas dominados pela máfia italiana e retomados pela Justiça romana

Janaína Cesar (texto) e Lucas Lima (fotos) Lucas Lima/UOL

Nas décadas de 1970 e 1980, um grupo de jovens tocou o terror nos quatro cantos de Roma. "Banda da Magliana", como ficou conhecida a gangue, controlava não só o tráfico de drogas mas também as apostas ilegais, o vídeo-pôquer e os sequestros na cidade — o primeiro crime praticado por eles foi justamente um sequestro, em 1977. Só naquele ano foram 66.

O grupo assustou a Itália por mais de 20 anos, até que, em 1993, uma megaoperação policial prendeu cerca de 60 criminosos. Ao longo dos anos, uma fortuna em carros, imóveis, joias e terrenos foi confiscada pela Justiça.

Aos poucos, esse patrimônio está sendo reempacotado para uso social. Uma das iniciativas é tocada pela associação Libera, presidida por Luigi Ciotti, que, 27 anos atrás, propôs a lei 109, sobre a retomada dos bens confiscados. Segundo dados da associação, existem mais de 24 mil bens tomados do crime organizado que esperam decisão definitiva da Justiça italiana - outros 19 mil estão prontos para serem reutilizados.

O valor desses bens, porém, é desconhecido. "Podem se passar muitos anos. Essa variação de tempo muda o valor do bem confiscado", explica Tatiana Giannone, uma das coordenadoras de Libera.

Ela e a colega Giulia Fascetti receberam a reportagem do TAB na nova sede da associação, um antigo cinema de bairro que funcionou até os anos 1990, foi transformado em bingo e serviu para lavar dinheiro do crime. "Vamos transformar o prédio em um polo cultural, com um arquivo sobre as vítimas e galeria", disse Tatiana.

Para saber quais imóveis já foram patrimônio do crime organizado, foi criado o primeiro portal da transparência nacional. Para ela, "promover a reutilização desses bens sequestrados restaura a dignidade das comunidades onde estão localizados".

Um exemplo é a biblioteca da Colina da Paz, que fica numa área de 13 mil m² confiscada pela Justiça italiana em novembro de 1996. Localizado no bairro Bolognina, na periferia romana, o lote abrigava um esqueleto de cimento construído pela metade. Com a requalificação da área, o monstro original foi abatido e virou poeira.

O destino do lugar foi determinado pelos moradores. "Consultamos os mais velhos, fizemos palestras na escolas e votamos", disse Luigi de Bernardo, 77, um simpático senhor que é presidente da associação que leva o nome da biblioteca.

O espaço da criançada tem até PlayStation. Na real, é um grande open space que junta sala de leitura, estudos e lazer para os pequenos. No subsolo, um grande salão é usado para reuniões que a associação organiza para alunos das escolas vizinhas — esta é a única biblioteca da região.

Enquanto caminhamos, Luigi conta que o nome do parque, Peppino Impastato, homenageia o jornalista que fez da própria vida uma luta constante contra a máfia Cosa Nostra, batendo de frente contra a própria família. Sua história pode ser vista no filme "I Cento Passi", de Marco Tullio Giordana. "A máfia é uma montanha de merda", dizia o jornalista, assassinado em 1978 em Cinisi, na província de Palermo.

Alam Taibeda Ridwan, 22, é uma das jovens que frequenta o lugar. Aspirante a jornalista, disse ser aquele o único ponto tranquilo do bairro. "Aqui é perigoso, caminhar por certas ruas não é aconselhável, mas neste lugar me sinto segura", disse a jovem de origem bengali.

A maioria dos moradores do bairro são estrangeiros. Apesar de ser uma leitora assídua, Alam ficou surpresa ao ser informada sobre o passado daquele lugar. "Se já achava uma ilha de paz, agora é muito mais importante vir aqui", afirmou, com um sorriso.

A jovem saiu pelo portão lateral do parque que, por acaso, dá na rua Capaci, que por sua vez cruza a rua Corleone. Coincidência ou não, até o nome das ruas aponta a ilegalidade. Corleone, além de ser sobrenome da família imortalizada no filme "O Poderoso Chefão", é o nome da família mafiosa mais poderosa da Cosa Nostra — e Capaci é como ficou conhecido o atentado a bomba que matou o juiz Falcone em 1992.

A "Banda da Magliana" não existe mais. A maioria de seus integrantes morreu e os poucos que conseguiram sobreviver nessa espécie de noir norte-americano ou foram presos ou viraram colaboradores da Justiça. Um desses personagens se chamava Enrico Nicoletti, tesoureiro da Magliana. Usava sempre uma bengala e vestia-se inteiramente de branco. Era um amante do luxo, tanto que comprou a Vila Osio, mansão de 1937 localizada no bairro Ostiense.

O lugar era pura ostentação. Nicoletti usava o imenso jardim e a casa para dar festas e receber o clã. Preso inúmeras vezes, por fim teve seus bens confiscados, inclusive a vila que tanto amava. Em 2005, o governo decidiu construir ali a Casa do Jazz, administrada pela Fundação Musica para Roma. Os nomes de cerca de 900 vítimas das máfias italianas são lembrados numa grande placa, instalada na entrada do jardim.

Luciano Linzi, 63, é diretor artístico da Casa do Jazz. Ele conta que, antes de ser comprada por Nicoletti nos anos 1980, a Vila Osio pertencia ao Vaticano. "O tesoureiro nunca usou um laranja para a compra, foi tudo feito em seu nome", diz.

Essa não é a única relação da Banda da Magliana com a Igreja Católica. A tumba de Enrico De Pedis, um dos chefes do bando conhecido como "Renatino", fica perto da Piazza Navona, na basílica de Sant'Apollinare, onde apenas altos prelados são enterrados.

Com sua mania de grandeza e egocentrismo, Nicoletti deixou marcas na vila. Luciano nos levou a uma das salas no subsolo. Uma enorme pintura de Amerigo Bartoli cobre toda a parede. "Ela estava pronta antes da compra da vila por Nicoletti, mas ele se autorretratou no desenho", disse o italiano, apontando o lugar exato na parede onde se vê um borrão. "Apagaram."

O apego era tanto que Nicoletti e a esposa chegaram a espiar a Casa do Jazz dias depois da inauguração.

Nicoletti morreu numa clínica particular de Roma em 2020. Não se tem ideia do quanto restou de seu patrimônio, mas em 2001 a polícia havia apreendido cerca de 150 bilhões de euros em bens, entre hotéis, apartamentos, galpões, terrenos, moradias, barcos e até os antigos estúdios cinematográficos De Paolis. Mesmo assim ele não ficou pobre. A Justiça voltou a confiscar milhões de sua conta em 2013.

Antonio Esposito Ferraioli tinha 27 anos quando sentiu dois tiros de espingarda atravessarem seu corpo. Morreu naquele 30 de agosto de 1978. Por várias vezes tinha tentado denunciar o esquema que revendia carnes podres à fábrica onde trabalhava como cozinheiro, em Pagani, no sul da Itália.

Sua história é lembrada todos os dias no Empório Solidário de Nonna Roma. Aberto em janeiro no bairro San Lorenzo, em um imovel confiscado do crime organizado e disponibilizado pela prefeitura, o lugar recebeu o nome do jovem Ferraioli.

O local pertencia a um traficante de drogas que usava o aluguel do lugar para lavar dinheiro. Ele era ligado a grupos da extrema direita italiana, que nos anos 1970 e 1980, pretendiam derrubar o poder e instaurar o terror. Esses grupos eram financiados com dinheiro do crime organizado e a sombra da máfia está por trás de vários atentados.

Pequeno (cerca de 25 m²), ele faz diferença na vida de quem vai lá para abastecer a geladeira e a despensa. As prateleiras têm óleo, macarrão, atum, arroz, biscoitos, molho de tomate e brinquedos, "comprados" por meio de um sistema de pontos. "Desta forma, as pessoas têm a sensação de que estão fazendo compras", explicou Margherita Venditti, 27. Todos os meses os pontos são recarregados. "As pessoas devem ter o direito de escolher o que comer, mesmo em situação de dificuldade. É uma maneira de lhes restituir um pouco de dignidade."

Margheritta explica que eles lidam contra a pobreza começando pela necessidade primária, que é a alimentação. "As pessoas chegam aqui por causa da comida, mas, depois que construímos uma relação, tentamos tirá-las da condição de necessidade com programas sociais e orientação profissional, por exemplo", disse. A associação atua em Roma desde 2017 e ajuda cerca de 2.500 famílias por mês — ao todo, são beneficiadas quase 9 mil pessoas.

Do outro lado da rua degli Equi, dois portões fechados são marcados com a placa "bem confiscado". Sobre esse imóvel, ninguém sabe nada. Nem mesmo Margheritta ou os proprietários da loja de couro que fica na esquina com a rua dei Volsci. Dentro da loja, um senhor de cabelos brancos ouviu nossa pergunta sobre o bairro e o vizinho de porta. Logo parou de trabalhar e nos mandou embora, pois estávamos atrapalhando o expediente. Falar de máfia ainda assusta os mais velhos.

É coisa rara, mas os bens confiscados às vezes voltam a seus antigos proprietários. Foi o que aconteceu com o Hotel del Gianicolo.

Localizado em um dos pontos mais altos da cidade, de onde é possível ver Roma brilhar à noite, sob o olhar benevolente de um gigante Garibaldi, o hotel da família Mattiani tinha sido sequestrado pela Justiça em 2013, durante a operação Cosa Mia. Na época, em vez de fechar a estrutura, o Estado resolveu intervir e nomeou um administrador externo para colocar as contas em ordem e assumir o pessoal que trabalhava informalmente no local.

Em 2018, tudo mudou. A Corte de Cassação - terceira instância da Justiça italiana - restituiu à família Mattiani todo o patrimônio sequestrado, incluindo o hotel romano e um outro cinco estrelas - Hotel Arcobaleno - que fica no litoral da Calábria. Segundo a sentença, os Mattiani não eram cúmplices, mas vítimas da máfia 'ndrangheta.

Para entender os efeitos econômicos e sociais, fomos até o suntuoso hotel tentar ouvi-los. Mas o filho, que atualmente administra a estrutura, não deu conversa. Um dos funcionários da recepção disse somente: "Vocês, jornalistas, sempre com essas entrevistas-surpresa".

Em alguns lugares, a Roma dos romanos quer tratar de esquecer as marcas que a criminalidade deixou.

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