Tortura em expansão

Do eixo Rio-SP ao Pará, a ditadura militar levou ao extremo o submundo da repressão

capítulo 2

1971-1973

Aparelhos clandestinos da ditadura se espalham pelo país

A PARTIR DE 1971, A CASA DA MORTE DE PETRÓPOLIS VIRA QUARTEL-GENERAL DA TORTURA, E O MODELO PASSA A SER REPLICADO NO NORTE E NORDESTE DO BRASIL

Reportagem

Andréia Lago
Ana Carolina Neira
Isabel Filgueiras

Fotografia

Cacalos Garrastazu
Carolina Serpejante
Isabel Filgueiras

Direção de Arte

Mariana Romani

Quatro. Zero. Nove. Zero. Essa sequência de números correspondia ao telefone de uma casa em Petrópolis, interior do Rio de Janeiro, e ficou guardada durante anos na memória da bancária Inês Etienne Romeu. Graças a ela, foi possível descobrir o endereço da Casa da Morte, o mais conhecido centro clandestino de tortura da ditadura militar. Foi nesse local que Inês, militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), foi torturada e violentada durante 96 dias.

Localizada na rua Padre Germain, no bairro do Caxambú, o imóvel era utilizado por militares ligados ao CIE (Centro de Informações do Exército), agência de inteligência que reuniu os principais oficiais da repressão - esse grupo tinha ordens de executar militantes banidos do país que fossem presos tentando retornar ao Brasil.

A casa foi cedida entre 1971 e 1978 pelo comerciante alemão Mario Lodders, dono de outras propriedades na região, em um empréstimo intermediado pelo subcomandante do CIE, general José Luiz Coelho Neto, e pelo ex-prefeito de Petrópolis, Fernando Sérgio Ayres da Mota. No período mais sombrio da ditadura, entre 1971 e 1974, o sobrado foi o quartel-general clandestino do CIE.

O principal anfitrião do aparelho tornou-se também testemunha essencial do cárcere da serra fluminense: o major do Exército Paulo Malhães, codinome Dr. Pablo. Ele era o responsável por definir o revezamento dos militares no imóvel. Escalava os sentinelas, quem deveria torturar quem e quando era preciso organizar alguma festa para disfarçar o verdadeiro uso do local.

À CEV-Rio (Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro), o militar diz que a Casa da Morte surgiu antes da Casa de São Conrado, usada para torturar Ottoni Fernandes Júnior e Eduardo Collen Leite, o Bacuri, em agosto de 1970. Ele explicou como esses imóveis eram escolhidos pelos militares: "Era para ser um lugar calmo, tranquilo, e despercebido. Como era Petrópolis”. Em abril de 2014, um mês após prestar depoimento à CNV (Comissão Nacional da Verdade), Dr. Pablo foi encontrado morto com sinais de asfixia.

Ninguém sabe ao certo quantos militantes foram mortos na casa de Petrópolis. Entre as vítimas estão o deputado Rubens Paiva e o dirigente da VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares) Carlos Alberto Soares, ambos sequestrados pela repressão nos primeiros meses de 1971, além da atriz Heleny Guariba e da estudante Isis Dias de Oliveira, alguns meses depois. O casal Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva, ambos militantes da ALN (Aliança Libertadora Nacional), e os dirigentes do PCB (Partido Comunista Brasileiro) David Capistrano da Costa e José Roman desapareceram em 1974.

O ex-sargento Marival Chaves Dias do Canto, analista do DOI-Codi (Destacamento de Operações e Informações ligado ao Centro de Operações de Defesa Interna) em São Paulo de 1973 a 1975, afirma que Capistrano e Roman foram capturados e levados ao DOI-Codi do Rio de Janeiro. Depois, foram encarcerados e torturados até a morte em Petrópolis.

Segundo Canto, esses centros eram extremamente guardados. As pessoas que trabalhavam neles se reuniam clandestinamente para realizar tarefas. "Só participavam membros das Forças Armadas, particularmente do Exército. Eram pessoas escolhidas por chefes militares dentro dos quadros do Exército", afirma o ex-agente, um dos primeiros a delatar os crimes da ditadura.

Ele diz que mais de cem pessoas desapareceram na Casa de Petrópolis -  algumas incineradas na usina de Cambahyba, no Rio de Janeiro. Os corpos, afirma o ex-sargento, eram retalhados, cortados nas articulações, colocados em sacos plásticos e desovados em diferentes pontos da cidade.

Inês Etienne, morta em abril de 2015 aos 72 anos, foi a única sobrevivente da Casa da Morte. Presa em São Paulo no dia 5 de maio de 1971, a caminho de um encontro com um companheiro de militância que trabalhava como informante para os militares, foi acusada pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury de ter participado, meses antes, do sequestro do embaixador suíço Giovanni Bucher. A ação, organizada pela VAR-Palmares com a participação do próprio Carlos Lamarca, foi a mais longa negociação da ditadura com organizações clandestinas. Sequestrado em 7 de dezembro de 1970, na zona sul do Rio, o diplomata foi solto após 40 dias em troca de 70 militantes presos, que partiram rumo ao Chile no chamado “Voo da Liberdade”.

Depois da tortura no Dops (Departamento de Ordem Política e Social), onde foi espancada, colocada no pau-de-arara e recebeu choques elétricos, Inês tentou ludibriar os agentes ao inventar um encontro com outro militante no Rio de Janeiro. Levada como isca, tentou o suicídio jogando-se na frente de um ônibus em movimento. Foi arrastada pelo asfalto, mas sobreviveu. Depois de passar por três hospitais na cidade, foi levada para seu cativeiro, onde passaria os três meses seguintes. Na Casa da Morte, em Petrópolis, foi espancada, estuprada, estrangulada até perder os sentidos e arrastada pelos cabelos. Em algumas noites, Inês foi deixada do lado de fora da casa, sem roupa. Em outras, recebia banho com água gelada. Após as festas, era obrigada a limpar a casa nua.

Inês Etienne só foi libertada ao fazer um acordo em que fingiu colaborar com os militares. Condenada à prisão perpétua, foi a última presa política libertada no Brasil, cumprindo oito anos de detenção até a Lei da Anistia, em 1979. Livre, a militante da VPR entregou à OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) um depoimento que escreveu logo após a saída da Casa da Morte, com detalhes do local e seu funcionamento. Graças a esse depoimento e ao número de telefone memorizado por ela durante as conversas ouvidas em cativeiro, o centro clandestino de Petrópolis pôde ser localizado.

No mesmo ano em que Inês Etienne foi presa pela repressão, o Exército realizou as primeiras ações militares na região do Araguaia em busca de guerrilheiros da ALN. Na Operação Mesopotâmia, descobriu que havia "paulistas" chegando à área em busca de terras. Em agosto de 71, começaram as prisões e interrogatórios.

"Até hoje não sei por que fui preso. Mas naquela época, praticamente todos na cidade foram presos, interrogados e torturados pelo Exército", resume Raimundo Barbadinho. Ele passou 30 dias encarcerado, sendo interrogado sob tortura em três locais diferentes. Entre eles, a Casa Azul - um dos maiores centros clandestinos de tortura do período militar.

Em São Domingos do Araguaia, a 47 km de Marabá (PA), todos sabem quem é Barbadinho. Era dono da farmácia e do armazém da cidade. Quando chegou lá, vindo do Maranhão no começo da década de 1960, não havia mais do que 25 casas. São Domingos não passava de um povoado à beira da selva amazônica, assim como outros locais onde circularam militantes do PCdoB (Partido Comunista do Brasil) envolvidos na guerrilha.

O que esse maranhense de 85 anos descreve é o que aconteceu com muitos moradores de pequenas comunidades da região chamada Bico do Papagaio - uma área no atual Estado de Tocantins que faz fronteira com o sul do Pará e sudoeste do Maranhão, banhada pelos rios Araguaia, Tocantins e Itacaiúnas. A partir de 1966, quando militantes comunistas treinados na China começaram a chegar ao Araguaia, não havia presença militar significativa na região. Para camponeses das comunidades locais, os "paulistas" eram compradores de terras, pessoas que queriam produzir alguma coisa por lá.

As relações comerciais de Barbadinho com militantes comunistas lhe renderam um mês de tortura com choques e espancamento. Preso em casa, o comerciante foi levado para a Bacaba, uma base improvisada na Transamazônica com galpões de madeira e uma pista para pouso de aviões. Pouco mais de uma semana depois, foi levado para o DNER, sede do Departamento Nacional de Estradas e Rodagem, que cedeu instalações para o quartel-general da repressão no Araguaia.

A repressão no Araguaia se intensificou em 1972, ano em que o regime enviou 2.000 militares à tríplice fronteira entre o Pará, Maranhão e Goiás (atual Tocantins) para enfrentar 69 guerrilheiros. Após as primeiras prisões, em abril, uma nova investida levou os Comandos Militares do Planalto e da Amazônia a desembarcarem na região. Sem muitas prisões e com dez baixas na tropa em confrontos com militantes do PCdoB, o aparato militar aposta no trabalho de inteligência. Disfarçados de funcionários de órgãos como Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e Sucem (Superintendência de Combate e Erradicação da Malária), militares transitaram facilmente por vários meses entre a população obtendo informações sobre a guerrilha. No Natal de 73, a maior parte dos guerrilheiros remanescentes foi capturada ou morta durante a Operação Marajoara, que se estendeu até fevereiro de 1974.

As informações de diferentes fontes sobre a queda de guerrilheiros diante das forças militares divergem quanto a datas e locais das mortes, tornando impossível determinar quem foi torturado e morto na Casa Azul. Segundo o projeto Brasil: Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo, "todos os guerrilheiros presos no decorrer da terceira campanha foram mortos, sob tortura ou simplesmente fuzilados". Dos 69 militantes do PCdoB que participaram da Guerrilha do Araguaia, 61 aparecem na lista de mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar.

No começo de 1973, quando o avanço da guerrilha desafiava os militares, a repressão cercou os quadros do PCdoB no Ceará em busca de colaboradores dos guerrilheiros a caminho do Pará. Na clandestinidade, Bergson Gurjão, Dower Cavalcante, José Genoíno e Custódio Saraiva Neto viveram em Fortaleza, onde estiveram com outros militantes do PCdoB antes de seguirem para o Araguaia. Foi assim que a repressão chegou até o advogado Benedito Bizerril, ligado ao sindicato dos bancários e preso em fevereiro daquele ano no BNB (Banco do Nordeste), onde trabalhava.

Transportado numa caminhonete Veraneio por cerca de uma hora, Bizerril percebeu que era levado para fora da zona urbana de Fortaleza. Vendado e sem poder enxergar, usou outros sentidos. Do portão de entrada até chegar à varanda da casa, identificou a inclinação do terreno. Pelo tato, percebeu que havia colunas na varanda onde aguardava o interrogatório. Num instante em que a venda se afrouxou, conseguiu espiar o chão e avistou os desenhos do piso antigo e incomum. O mesmo piso em mosaico que reconheceu em 2004, quando soube que não era a primeira vez que visitava aquela casa.

Ao retornar há pouco mais de dez anos, com a reportagem do jornal “O Povo”, antes mesmo de subir ao segundo piso Bizerril já sabia que havia dois quartos no alto da escada, um de cada lado. Era onde ocorriam as sessões de torturas, que duravam mais de 10 horas. “Dava para saber que tinha dois quartos porque eu podia ouvir o outro preso gritar ao lado. Ele ficava do lado direito e eu do lado esquerdo”, afirma.

Todos esses detalhes levaram Bizerril e outros quatro militantes do PCdoB no Ceará a afirmarem que a fazenda que abriga um sobrado branco com dois pavimentos, cercado de flores e palmeiras em meio à serra verde de Maranguape, a 30km de Fortaleza, foi o cenário do pesadelo que viveram em 1973.

A Fazenda Trapiá pertenceu ao primeiro prefeito do município, Manoel de Paula Cavalcante, que administrou a pequena cidade da região metropolitana da capital cearense entre 1914 e 1918. A fama que a propriedade adquiriu incomoda a família De Paula Cavalcante. Ofendidos com o rótulo Casa dos Horrores, os herdeiros do ex-prefeito de Maranguape negam que a Fazenda Trapiá tenha servido como centro clandestino de tortura. “Eu morei lá com meus filhos. Mesmo depois que me mudei para Fortaleza, ia lá todos os dias porque era onde eu trabalhava. Como pode ter tido tortura? Meus pais moravam lá, nunca ficou desabitada”, relata o proprietário Manoel de Paula Cavalcante, neto do patriarca. O apelido Casa dos Horrores foi dado pelos militares para intimidar os presos.

Além da memória dos sobreviventes, não há provas físicas que possam confirmar que ali funcionava um centro de tortura. Mas as vítimas afirmam que há grandes chances do local ser aquele. O hoje deputado Chico Lopes, 76, um dos sobreviventes do cárcere clandestino, é cauteloso. Ele reconhece que é impossível afirmar com 100% de certeza que a Casa dos Horrores era a Fazenda Trapiá porque estavam todos com os olhos vendados.

Porém, a mesma escada resgatou as lembranças do aposentado Gil Fernandes Sá, 72, um dos torturados no centro clandestino. "Simulei a subida na escadinha em espiral e tive claramente a mesma sensação de quando subi para ser torturado”, afirma. Gil é irmão de Glênio Sá, guerrilheiro que atuou no Araguaia de 1970 a 1972, quando foi preso. Libertado em 1975, morreu em um acidente de carro em 1990.

Segundo o neto do ex-prefeito de Maranguape, o imóvel estava na família desde 1800 e abrange uma área de 700 hectares. Hoje abriga o Depósito de Armas do Exército. O terreno teria sido vendido à prefeitura da cidade por seu pai, Pedro de Paula Cavalcante. A transação, segundo Manoel, ocorreu na gestão do prefeito Paulo Cirino - justamente entre os anos de 1971 e 1973, mesmo período em que o general Oscar Jannsen Barroso comandava a 10ª Região Militar, que abrangia os Estados do Ceará e Piauí. Apontado como elo entre a Casa dos Horrores e a Fazenda Trapiá, Jannsen Barroso era genro do patriarca da família.

Testemunhas afirmam que o general visitava a fazenda com frequência, embora nunca tivesse morado ali. Os meses em que ocorreram as torturas foram os últimos de Jannsen no Ceará. Em abril de 1973, ele deixou o comando da 10ª RM e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde morou com a mulher até morrer, ainda nos anos 1980. O general Jannsen não consta em lista de torturadores, mas é mencionado como repressor pela ONG Desaparecidos.

De acordo com Projeto Brasil: Nunca Mais, pelo menos dez pessoas sofreram torturas na Casa dos Horrores nos poucos meses em que ela esteve em funcionamento, entre janeiro e abril de 1973. Todos eram ligados ao PCdoB e a maioria tinha entre 20 a 30 anos. Apesar dos choques e abusos, todos saíram vivos.

Em São Paulo, os primeiros anos da década de 70 foram marcados pelo fortalecimento da repressão militar sob o comando do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra à frente do DOI-Codi. A investida para desmantelar a ALN, iniciada em 1969 com a execução de Carlos Marighella, desdobrou-se em diversos tiroteios pela cidade no cerco aos militantes da organização, considerada a mais ativa entre os 42 grupos de resistência à ditadura que atuaram naquele período.

A caçada chegou ao fim em 1973, com a ALN desbaratada a partir de informações obtidas por meio de tortura de militantes presos. Um dos últimos a "cair" foi o dirigente Antonio Carlos Bicalho Lana, único sobrevivente da emboscada do DOI-Codi a um grupo de quatro militantes em um restaurante no bairro da Mooca, zona leste de São Paulo, em junho de 1972. Lana escapou do tiroteio na Mooca, mas em novembro de 1973 foi preso e levado a um cárcere clandestino à prova de fugas e testemunhas.

Conhecida hoje como Fazenda Ponte Alta ou Ecoguaçu, a propriedade, localizada na divisa de São Paulo com os municípios de Itanhaém e Embu-Guaçu, poderia ser apenas um sítio particular no distante bairro de Parelheiros, na zona sul da capital paulista. Mas entrou para a história como um dos lugares mais sombrios da repressão clandestina. O nome do local em 1973, Sítio 31 de Março (data do golpe militar de 1964), indicava que essa não era uma propriedade qualquer.

A 57 km do centro da capital, isolado no meio do mato, o imóvel abrigou as equipes de Ustra, que comandou o DOI-Codi paulista de 1970 a 1974, e também do delegado Sérgio Paranhos Fleury.

A estrada, estreita e repleta de lama e vegetação, dificultava a chegada e a saída. Mas, como era comum entre os centros clandestinos de tortura, o sítio era um lugar acima de qualquer suspeita. Uma casa grande e térrea, com um longo corredor, espaçosa o suficiente para abrigar diversas pessoas. Do lado de fora, a Mata Atlântica permanece intocada em diversos trechos. Um grande lago completa o cenário, semelhante ao de tantas outras propriedades da região.

Oficialmente, Lana foi preso "durante uma ronda realizada pelo DOI-Codi no dia 30 de novembro de 1973", junto com a companheira Sônia Maria de Moraes Angel Jones. Na versão oficial, reagiram a tiros ao receberem voz de prisão e morreram a caminho do hospital. A verdade só veio à tona em 1991, quando seus corpos foram encontrados sem identificação, numa vala comum no cemitério Dom Bosco, em Perus, zona norte da capital. A exumação antecipou o que o ex-sargento Marival Chaves confirmou anos depois à CNV. Segundo ele, o casal foi localizado em São Vicente, no litoral paulista, e rendido por agentes durante uma viagem de ônibus para a capital.

Na época em que foi utilizado pela repressão, na primeira metade da década de 1970, o Sítio 31 de Março pertencia ao empresário mineiro Joaquim Rodrigues Fagundes. Dono da Transportadora Rimet, era amigo próximo de militares influentes e possuía diversos imóveis no bairro da Mooca. Fagundes se apossou da propriedade, que era mantida pelo Exército a título de centro de treinamento de soldados. Era visto com frequência na região e ainda hoje é possível encontrar quem o reconheça pelo nome e faça referência ao lugar como “o sítio do coronel Fagundes”. Morto em 1991, aos 68 anos, não deixou filhos. A viúva, Lucilla Monteiro de Barros Fagundes, não gosta de falar sobre o marido, mas confirma a relação estreita com militares: "Ele trabalhou muito nos quartéis de São Paulo e Rio de Janeiro".

O período de atividade do remoto Sítio 31 de Março pode ter se estendido pelos cinco anos em que as práticas clandestinas da repressão se intensificaram, de 1970 a 1975. Marival Chaves afirma que a última vez em que o local foi usado para abrigar reféns da ditadura foi em 1973, mas o relato do ex-deputado estadual e advogado Affonso Celso Nogueira Monteiro, único sobrevivente do sítio, indica que o cárcere de Parelheiros voltaria a ser utilizado na investida do regime contra o PCB (Partido Comunista Brasileiro).

Affonso Celso foi capturado pelos agentes da ditadura em 1º de outubro de 1975, no centro de São Paulo. Encapuzado, foi colocado no banco de trás de um carro, com a cabeça entre as pernas, o corpo coberto e as mãos algemadas. Affonso Celso gritou que estava sendo preso e seu destino era a tortura e a morte. De nada adiantou. A partir dali, passaria 21 dias “em poder do braço clandestino da repressão”, como disseram ao prendê-lo.

Ele só escapou do cativeiro graças aos apelos da família: seu desaparecimento ganhou tanto destaque que os militares acharam melhor libertá-lo. Ex-vereador e deputado estadual pelo PCB, atuava na causa de diversos militantes e sindicatos, mas ficou fora da luta armada. Affonso Celso foi libertado na madrugada de 22 de outubro de 1975, deixado em uma estrada de terra que não soube identificar.

Antes, foi tratado e cuidado por uma semana após ser torturado ao longo de 15 dias. No pau-de-arara, levava socos alternados com choques elétricos. O local afastado e o terreno permitiam que a tortura fosse feita também a céu aberto. O lago à frente da casa era utilizado para afogamentos, enquanto as árvores serviam para pendurar militantes que recebiam chutes e socos. Affonso afirma ter escutado os gritos de outros prisioneiros na casa, inclusive uma mulher.

Nem mesmo a doença de Alzheimer, que afetou a memória de Affonso Celso, foi capaz de apagar a lembrança das torturas sofridas no cárcere de Parelheiros. Quase 40 anos depois, ele ainda mostrava as cicatrizes. “Fui cassado, torturado e tenho marcas no corpo até hoje. Ficava pendurado, com o corpo todo exposto, tomando choques elétricos”, relembrou. O advogado morreu em outubro de 2015, aos 93, dois anos após conversar com a reportagem.

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