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Como a cantora e compositora goiana Marília Mendonça revolucionou a música popular brasileira

Valmir Moratelli Colaboração para o TAB, do Rio

Marília Mendonça chegou num carro preto ao estúdio Plug-in, em Pinheiros, onde Gal Costa a aguardava para uma gravação. Ambas dariam voz a "Cuidando de longe", de autoria da goiana. Era 5 de agosto de 2018 e fazia frio em São Paulo. Gal tomou um susto ao recepcioná-la. Marília estava com o carro abarrotado de flores. Levou orquídeas, rosas vermelhas e crisântemos.

"Era uma tonelada de flores! É comovente uma artista já estourada reverenciar a história de outra artista. Alguém com tão pouca idade, que podia estar nem aí, mas toda humilde", lembra-se o produtor musical Marcus Preto. Antes do encontro, Marília chegou a enviar 15 músicas inéditas para Gal escolher — o que impressionou a produção.

Bastou uma passada da música para que a gravação estivesse pronta. Marília ainda insistiu para que fizessem mais uma vez. "Afinada, potente, com imenso entendimento do texto. Encantou a todos", continua Preto.

Marília era assim mesmo: exagerada nas flores, nas palavras, no sentimento em suas canções. Reconhecia que, antes dela, outras mulheres já haviam desbravado os tortuosos caminhos da música brasileira. Mas, a seu favor, havia dois pontos: a autoria das próprias canções que lhe deram popularidade e a quebra de tabus num gênero musical preguiçosamente masculino.

O PODER EM DÍGITOS

Marília precisou peitar o empresário para deixá-la dar voz a suas músicas. Foi assim que, em 2016, ela surgiria nas rádios do país cantando "Eu quero ver você morar num motel / Estou te expulsando do meu coração / Assuma as consequências dessa traição".

Os números dão conta da magnitude que logo alcançaria. O primeiro sucesso, "Infiel", tem mais de 90 milhões de reproduções no Spotify. Em 2017, foi citada pela revista Forbes na lista dos jovens que fazem a diferença no Brasil, ao emplacar hits como "Eu sei de cor", cujo clipe passa de 508 milhões de visualizações no YouTube.

A morte da cantora na sexta-feira (5), aos 26 anos, no momento em que o país ensaiava um retorno à normalidade da agenda cultural pós-pandemia, foi imediatamente repercutida em vários veículos internacionais.

A Billboard tuitou a tragédia. O jornal The New York Times lembrou que Marília era "uma sensação nas redes sociais com milhões de seguidores, icônica na música country brasileira". A revista norte-americana People destacou que a cantora foi indicada ao Grammy Latino de melhor álbum de música sertaneja por "Realidade", em 2017, e que ganhou o prêmio na mesma categoria dois anos depois pelo álbum "Todos os Cantos".

MULHER CABARETEIRA

A curta e intensa trajetória de Marília abriu — e mantinha aberta à força — uma estrada para outras cantoras passarem. Sem ela, a música sertaneja dos anos 2000 seguiria dominada por homens celebrando a cerveja em noitadas, em looping infinito.

A onda, apelidada de "feminejo", retoma uma tradição caipira inaugurada por Inezita Barroso, ainda nos anos 1950, explorada com maestria por Roberta Miranda nos anos 1980. Como Roberta, Marília tomou a composição para si ao assumir o protagonismo feminino das desilusões amorosas em versos como "me apaixonei pelo que inventei de você", na letra "De quem é a culpa?".

A goiana cantou a amante, a prostituta, a traída, a traidora; criava paisagens, ambientes, narrava cenas que escapavam do lugar-comum, seja no lento afastamento de um casal (em "Estranho") ou nos relacionamentos que continuavam mesmo sem amor (na recente "Foi Por Conveniência"). A música desfiava como filme em sua voz.

O crítico musical Rodrigo Faour a coloca na "linhagem de mulheres cabareteiras". "É o tipo de cantora nua e crua, a voz do coração da mulher. Marília foi cabareteira como Dalva de Oliveira, Angela Maria, Cláudia Barroso e, já nos anos 1980, Roberta Miranda", explica.

Roberta, aliás, viajava para o Guarujá, litoral paulista, quando precisou ser hospitalizada ao saber da morte da cantora. Juntas gravaram "Os tempos mudaram", em 2017.

Há dois anos, o crítico de música sertaneja André Piunti teve uma longa conversa com Marília. Perguntou se ela sentia que as portas estavam, enfim, escancaradas às mulheres. Ela disse que não. "Se bobear, os caras tiram a gente de novo", respondeu a cantora. "Sabia que estavam gostando dela, porque dava resultado. No dia que não desse mais, acabava tudo. Marília desbravava um campo tenso e não podia esmorecer."

Talvez isso explique o ritmo incessante. Marília tinha a agenda mais concorrida do país — mais de 20 shows por mês — antes da pandemia. A rotina de jatinhos e shows estava prestes a ganhar uma nova etapa: ela voltaria para uma segunda turnê na Europa ainda este mês.

MILITÂNCIA DA SOFRÊNCIA

A figura de Marília transcende os palcos. Thais Cabral, pesquisadora de narrativas femininas da PUC-Rio, reforça que o vigor da cantora está nas letras empoderadas que compunha. A mulher, em suas letras, é dona de suas decisões. "Embora exista a raiva da 'outra', com quem o parceiro a trai, a culpa não é depositada nessa terceira pessoa. A responsabilização do homem em relações amorosas é muito recente, o estabelecimento de limites também. É algo muito forte para todas nós", diz Cabral.

A mulher que quer ser ouvida reverbera nas notas firmes da sofrência que tomou o país, inclusive em praças onde o sertanejo não faz tanto sucesso, como Rio de Janeiro. Em outros contextos, surgiram nomes que tentaram a mesma interlocução.

"Chiquinha Gonzaga, Dolores Duran, Marlene e Emilinha no rádio, Celly Campello e Martinha na Jovem Guarda... Cada uma deixou sua marca. De todas, talvez Rita Lee seja a que mais avançou na temática, por vir da contracultura. E isso se compara ao que Marília fez recentemente", diz Paulo César Araújo, biógrafo de Roberto Carlos e Odair José.

FORTE E SOLIDÁRIA

O poder de comunicação de Marília está entrelaçado às redes sociais. "Ela soube usá-las muito bem para furar a bolha sertaneja", diz Araújo.

Em Portugal para uma turnê, Fafá de Belém dá a dimensão dessa inquietude. "Eu me via muito nela, nessa idade também era desaforada e com sorriso nos lábios. E a coisa mais interessante: falava de coisas normais, vindas do coração", afirma Fafá.

Faour, que prepara um capítulo dedicado à Marília no livro "História da MPB sem preconceitos", volume 2, concorda. "Ela trouxe um viés autoafirmativo, conectado ao tempo presente. A despeito de todo o comercialismo da fábrica sertaneja na indústria midiática, ela se destacou com autenticidade", diz.

Isso se reflete, por exemplo, quando posicionou-se contra Jair Bolsonaro na campanha presidencial de 2018, utilizando a hashtag #elenão. "Não é uma questão de opção política, é uma questão de bom senso! A favor do amor e das nossas conquistas que não podem ser apagadas assim", postou a artista.

Após ameaças a ela e sua família nas redes sociais, ela deletou o post e escreveu: "Deixo aqui o meu pedido de desculpas a todos os homens por, em um instante de loucura, acreditar que uma opinião não feriria vocês."

MULHER MAR(AV)ÍLIA

Goiana de Cristianópolis, município que no último Censo não amealhava nem 3 mil habitantes, Marília começou a carreira assinando composições na voz de duplas como Henrique e Juliano, João Neto e Frederico, Jorge e Matheus, além de Wesley Safadão e Cristiano Araújo. Também conquistou o respeito de colegas de outros gêneros. Fez parcerias com Luiza Sonza, Anitta, Péricles. Caetano Veloso cita seu nome duas vezes em "Sem samba não dá", no recém-lançado álbum "Meu coco" — chama-a de "Mar(av)ília".

Zizi Possi a admirava, mesmo à distância. "Sempre soube dela como expoente. Uma jovem extremamente corajosa, que confiou no que o coração dizia, e fez o que fez". Adriana Calcanhotto conta ouvir sem parar a canção de Marília com Gal.

Cantor de pop e R&B, Thiago Pantaleão, 24, considera Marília a "culpada" por sua carreira deslanchar. "Ano passado postei vídeos no Twitter pedindo pro pessoal divulgar minhas músicas. De repente, não entendi a quantidade de posts. Marília tinha compartilhado meu vídeo! Graças a ela, outros me notaram", recorda ele, que depois também caiu nas graças de Iza, Liniker e Gloria Groove.

"É muito difícil saber que nunca vou poder lhe agradecer ao vivo, era minha meta de vida", diz o jovem, bastante emocionado. Além do protagonismo nas composições, Marília deixa como legado a empatia, sentimento tão necessário a um país que anda numa sofrência só.

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