Os médicos estão doentes

O que leva alguém que teria de salvar a vida dos outros a querer acabar com a própria

Paulo Castro* escolheu comemorar seu aniversário de um jeito diferente. O médico de família não quis passar a data com parentes ou amigos. Preferiu ficar sozinho, em um hotel de luxo de Porto Alegre, cidade onde morava. Assim que se hospedou, pediu uma garrafa de champanhe. Mas em vez de fazer um brinde para celebrar a vida, ele decidiu que havia chegado o momento de acabar com ela. Tomou o espumante com uma grande quantidade de comprimidos e fechou os olhos para morrer. Ele ainda não havia completado 30 anos.

Histórias como essa, cada vez mais frequentes em todo o mundo, refletem uma realidade alarmante: a cabeça dos médicos não anda bem. Só nos Estados Unidos, entre 300 e 400 tiram a própria vida todos os anos, segundo a Fundação Americana para a Prevenção do Suicídio. Praticamente uma morte por dia. "Estudos recentes têm apontado uma cifra três vezes maior de suicídio entre médicos, comparada à população em geral", diz Alexandrina Meleiro, doutora em psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da USP (Universidade de São Paulo). No Brasil, embora não existam pesquisas de abrangência nacional que contabilizem os casos, há cada vez mais médicos que dão entrada nos serviços de emergência de hospitais por tentativa de suicídio.

A ideia de desistir da vida surge quando preocupações, cansaço e dores emocionais se acumulam em um nível que faz os médicos se sentirem incapazes de carregar esse sofrimento. Não é por fraqueza ou covardia que eles entregam os pontos. Por trás do pensamento de que viver não faz mais sentido ou que é impossível retomar o controle dos problemas, há um adoecimento psíquico. Uma luta interna para reencontrar o equilíbrio, acompanhada de uma angústia profunda que eles não confidenciam nem para as pessoas mais próximas.

O PESO DO TABU

O suicídio entre médicos é um assunto tão delicado e cercado de preconceitos que a própria classe têm dificuldade de compreender. “O suicídio por si só já é um tabu. Na classe médica, é mais ainda. É muito comum esses médicos não serem atendidos adequadamente nos serviços de emergência porque há um certo desrespeito pelas tentativas. Por ser um ato intencional, é como se a pessoa tivesse liberdade plena da escolha que fez. Muitas vezes, não têm. No momento que faz a escolha, ela tem uma distorção da percepção”, explica Alexandrina Meleiro.

Muitos desses médicos relutam em procurar ajuda porque sentem a obrigação de sustentar a imagem de “super-heróis” que a sociedade, os familiares e eles mesmos criam. Quando o dia a dia da profissão coloca essa imagem de quem não pode falhar à prova, eles se sentem frustrados. “Estamos sempre sob fogo cruzado. Precisamos enfrentar a morte todos os dias. Num primeiro momento, temos uma reação onipotente, arrogante. Mas quando a nossa arrogância é quebrada pela realidade, a onipotência se torna impotência. E aí é aquilo que os americanos falam: deixamos de ser ‘winners’ (ganhadores) para sermos ‘losers’ (perdedores). E esse fracasso para nós é a morte. É muito deprimente”, resume o psiquiatra Ricardo Nogueira, coordenador do Centro de Promoção à Vida e Prevenção ao Suicídio do Hospital Mãe de Deus, de Porto Alegre.

Enquanto os médicos evitam admitir que estão doentes por vergonha, a sociedade nem imagina o drama que eles vivem. A fragilidade da saúde mental da classe médica fica evidente no levantamento feito pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), UFPR (Universidade Federal do Paraná) e Uniad (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas), com o apoio do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo). O estudo feito durante uma década aponta que a causa da morte de 1,7% dos médicos paulistas entre 2000 e 2009 foi o suicídio. No levantamento só contando as mortes por causas externas (exclui doenças, por exemplo), tirar a própria vida só fica atrás de acidente de carro: o suicídio é a causa da morte de 18% dos homens e 21% das mulheres.

Essa é a única pesquisa realizada no Brasil sobre o tema. E o motivo para isso, segundo Mauro Aranha, psiquiatra, conselheiro e coordenador do departamento jurídico do Cremesp, é justamente a dificuldade que os médicos têm de detectar o próprio sofrimento e se ver como pacientes. "As doenças e fragilidades dos médicos não são exploradas a fundo. Não existe o hábito cultural de se fazer isso. E temos médicos no país desde o século 16. A fragilidade humana não é vista como algo intrínseco ao médico como em qualquer ser humano", afirma.

Apesar da gravidade da situação, muitas dessas mortes só chamam a atenção quando ocorrem em série, como aconteceu recentemente em Pernambuco. “Em 2016, houve sete suicídios de médicos no Estado: quatro no Recife e três em Caruaru. Na época, fizemos um estudo que a gente chama de ‘autópsia psicológica’ para entender o que estava acontecendo e, sobretudo, se havia uma associação direta com o trabalho. A conclusão é que foram médicos das mais diversas especialidades e de todas as idades que vinham em sofrimento psíquico e não faziam, em sua maioria, um tratamento regular”, conta Kátia Petribu, presidente da Sociedade Pernambucana de Psiquiatria. A médica lembra que também ocorreram suicídios em João Pessoa, na Paraíba, em 2017, sem tanta repercussão. Já em relação às tentativas, segundo ela, é comum quase ninguém ficar sabendo.

GATILHOS PARA O SUICÍDIO

De repente, nota-se uma mudança de comportamento. Aquele médico conhecido por sua pontualidade começa a chegar atrasado ao trabalho, não ri mais, passa a maior parte do tempo isolado, não cuida da aparência como antes, remédios começam a faltar na farmácia do hospital... São indícios de que algo não vai bem com ele. E que algo mais grave pode acontecer. Mas o que leva um médico a se matar? “O suicídio nunca é unifatorial. É multifatorial. A decisão de vida e morte não passa por um único ponto. Passa por uma somatória de coisas", esclarece Alexandrina Meleiro.

Os motivos não são os mesmos para todos. Podem estar relacionados à prática profissional, como o contato íntimo e contínuo com a dor e o sofrimento, a proximidade com a morte, cobranças, medo de falhar e limitações do conhecimento médico diante das expectativas dos pacientes. Mas também podem ter origem em questões de âmbito pessoal, como desavenças familiares, dificuldades financeiras, conflitos com a identidade sexual, rompimento de um relacionamento amoroso, morte de um ente querido, baixa autoestima, sensação de não ser especial ou traumas sofridos na infância e adolescência que persistem na idade adulta.

Quando esse pacote de problemas ocupa todos os espaços da vida, sem deixar lugar para atividades prazerosas como ter horas de lazer ou estar com a família e os amigos - o que é comum na rotina de muitos médicos e estudantes -, surgem as principais causas que podem desencadear o suicídio: depressão, estresse, ansiedade e abuso de drogas e de álcool. Os pensamentos de morte (ideação suicida) começam a ser recorrentes e tendem a se converter em uma tentativa real. Mas nem sempre a primeira é bem-sucedida. “Tentativa de suicídio anterior é um fator de risco para uma próxima, assim como ter pessoas na família que tentaram suicídio. Não só pela genética, mas por comportamento aprendido”, afirma Alexandrina Meleiro. “Uma vez tentado o suicídio, passados dois ou três meses o risco volta a aumentar. E no primeiro ano, 25% se matam se não recebem o tratamento”, completa.

Se os fatores de risco encurtam o caminho dos médicos até o suicídio, os fatores de proteção aumentam a distância dele. Ter uma família acolhedora, amigos à volta, uma crença ou religião e uma boa rede de contatos profissionais pode mudar o curso dessa tragédia anunciada. No caso dos sobreviventes, a posvenção (tratamento destinado a eles) é fundamental para evitar que tentem se matar novamente. “Nós tentamos procrastinar a próxima tentativa”, diz o psiquiatra Ricardo Nogueira. Ele atende médicos gaúchos da capital e do interior e ressalta a importância de cuidar também da família. “Tratamos os familiares e os sobreviventes. Os familiares também são potenciais suicidas. Tivemos casos aqui de profissionais que se suicidaram na frente da família toda. Imagina o trauma para os filhos... Há muito constrangimento em tocar na dor. Mas se tu não tocar na dor, a dor te toca e te consome”, afirma.

TRABALHO E EXAUSTÃO

Plantões consecutivos, uma agenda cheia de consultas com pouco tempo para cada uma, pressão por produtividade e salários baixos, que levam os médicos a terem mais de um emprego. Ao aumentar a carga horária de trabalho, eles diminuem as horas de sono, ficam mais estressados e cansados. Tudo isso leva à síndrome de burnout (esgotamento profissional), sobretudo quando as condições de trabalho não são adequadas. “A saúde no Brasil está muito sucateada. Às vezes o médico tem o conhecimento, mas não tem o material, não tem vagas, aparelhos para entubar, sala para fazer cirurgias, remédios, aparelhos para exames. Na prática, a gente acaba sofrendo muito por toda uma situação de política pública porque não temos instrumentos e medicamentos que atendam a necessidade de toda a população. Isso vai, claro, desgastando a classe médica”, observa Alexandrina Meleiro.

Médicos de várias especialidades sentem essa realidade na pele, especialmente os que trabalham no sistema público de saúde. Algumas mais do que outras, como a anestesiologia, que é uma das especialidades que concentram o maior número de casos de suicídio, ao lado da psiquiatria, da patologia e da medicina intensiva. “Os anestesistas estão entre as principais especialidades de médicos que cometem suicídio. É uma característica da especialidade: ter acesso a drogas letais, que promovem a morte de maneira não dolorosa, com muita facilidade. Para se ter uma ideia, as drogas usadas em execução de pena de morte são praticamente as mesmas que a gente usa no nosso dia a dia. É uma questão de dose e de saber como utilizar”, pontua Sérgio Logar, presidente da Sociedade Brasileira de Anestesiologia.

Logar explica que os anestesistas se sentem sozinhos nas equipes cirúrgicas, que geralmente são compostas por mais de um médico e enfermeiros, e que a responsabilidade deles é muito grande. “Quando alguma coisa dá errado com um paciente, todo mundo olha pra gente. Temos que resolver o problema. Se acontece uma parada cardiorrespiratória, quem comanda a manobra de ressuscitação somos nós. Então a gente não está acostumado a demonstrar fraqueza. É uma das especialidades mais fechadas na hora de mostrar os problemas”. Para aguentar essa pressão, alguns deles começam a usar as drogas. 

O início da pressão

O PERIGO NA FACULDADE

Movidos pelo sonho de salvar vidas, os estudantes de medicina, muitos dos quais ainda nem saíram da adolescência, embarcam no curso sem ter muita noção do que os espera. Essa transição de uma vida mais despreocupada para uma rotina intensa de estudos nem sempre é fácil. Prova disso é o aumento de tentativas de suicídio entre eles. No ano passado, foram várias entre alunos do quarto ano da Faculdade de Medicina da USP. Em um único mês, dois estudantes da Faminas, faculdade privada de Belo Horizonte, se mataram. Em 2017, foram registrados outros dois suicídios na mesma instituição. No início de 2018, mais dois casos de alunos da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso).

“Existe uma competitividade muito grande para entrar em uma faculdade de medicina. Cada vez maior. E muitos alunos entram sem o perfil porque acham que não vão ficar desempregadas, que irão ter uma boa remuneração. É uma luta desenfreada pelo Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), por passar em universidades públicas, já que as mensalidades das privadas são exorbitantes. Eles entram numa faculdade com tantas demandas, tantas exigências de aula, carga horária, plantões... Muitas vezes, não estão preparados”, avalia a psiquiatra Kátia Petribu, que também é professora da UPE (Universidade de Pernambuco).

Essas cobranças que acontecem dentro do ambiente acadêmico são traduzidas pelos estudantes em uma certeza: é preciso “dar o sangue” e ser o melhor. Mas não são poucos os que não aguentam a pressão e ficam no meio do caminho. “É constatação de realidade no mundo todo: 10% dos que ingressam na faculdade de medicina desistem e não retornam; 15% desistem temporariamente e retornam. Esses que retornam são os que a gente considera um grupo de risco. São os que não estão adaptados e que precisamos dar mais assistência”, ressalta Alexandrina Meleiro.

Depois da graduação, chega o momento enfrentar uma nova batalha: entrar no programa de residência médica. Quem consegue ter um bom desempenho na prova – que exige o domínio de todo o conteúdo aprendido nos seis anos de faculdade – e ocupar uma das poucas vagas disponíveis, se depara com outro desafio: sobreviver com um salário de R$ 3.330,43, valor da bolsa oferecida aos médicos residentes, segundo o MEC. Como a duração da residência médica é de até cinco anos, dependendo da especialidade, é comum os residentes optarem por fazer plantões aos fins de semana em outro hospital para complementar a renda, principalmente os que têm uma família para sustentar ou que vêm de outras cidades e precisam pagar aluguel. Alguns chegam a trabalhar até 80 horas semanais.

A psiquiatra Alexandrina Meleiro explica por que os médicos jovens estão mais expostos ao suicídio. "A geração com menos de 30 anos, a geração da internet, é impaciente e imediatista. Não desenvolve a capacidade de suportar frustrações e está ficando mais vulnerável ao suicídio. O jovem médico está nesse grupo de risco, justamente por pertencer a uma geração que não teve o desenvolvimento da resiliência, da capacidade de enfrentamento das adversidades", afirma.

FALAR PARA SALVAR

É consenso entre os especialistas ouvidos que a informação é a melhor maneira de estancar os suicídios e melhorar a saúde mental dos médicos. “Há como evitar as mortes, como as vacinas evitam doenças. Se a gente abrir espaço para o controle das doenças mentais, para os problemas da vida, os médicos não vão buscar aquele fim tão precocemente”, afirma Alexandrina Meleiro. Universidades, conselhos regionais de medicina, sociedades e associações médicas têm promovido palestras e simpósios sobre o tema. Mas ainda há muito trabalho pela frente, principalmente para alcançar os médicos formados, pois nem todos têm vínculos com entidades médicas.

Acabar com o receio dos médicos de confessar pensamentos suicidas para os colegas é o maior desafio a ser vencido. Há várias iniciativas pelo país a fim de quebrar essa barreira. Como as do Cremesp, que promove ações para humanizar a figura do médico. "Fizemos uma campanha com o Conselho Regional de Enfermagem sobre a violência contra médicos e enfermeiros nos hospitais públicos, porque 70% dos casos de violência contra médicos em 2015 aconteceram em hospitais públicos. Pela crise da saúde no país e pela crise do país. O paciente chega ao pronto-socorro e não é atendido adequadamente por motivos que às vezes não têm nada a ver com os médicos, mas ele agride aquele que responde pela função de aliviar o sofrimento dele", ilustra Mauro Aranha. A instituição também oferece orientações sobre saúde mental e encaminha médicos com quadros depressivos, transtornos psiquiátricos ou dependência de drogas para tratamentos gratuitos na Unifesp.

Já o Centro de Promoção à Vida e Prevenção ao Suicídio do Hospital Mãe de Deus está desenvolvendo o Cuidando do Cuidador, um programa de prevenção que consiste em treinar profissionais de saúde para atuarem em hospitais, ambulatórios, clínicas e outros centros de atendimento médico. A Sociedade Brasileira de Anestesiologia orienta anestesistas e instituições médicas sobre os riscos da dependência química. A Sociedade Pernambucana de Psiquiatria e o Cremepe (Conselho Regional de Medicina de Pernambuco) promovem encontros sobre psicoeducação, inclusive em Campanhas como o Setembro Amarelo. E o CVV (Centro de Valorização da Vida) oferece apoio emocional aos suicidas de todos os estados brasileiros.

“Temos que mostrar que amanhã há de ser outro dia. A gente entende que há condições de sobreviver apesar do desespero. Ensinamos os pacientes a suportar o sofrimento e encontrar outras saídas”, afirma Ricardo Nogueira. Esse trabalho de conscientização e o esforço dos hospitais para salvar suicidas têm dado resultados. Foi o que aconteceu com o médico de família Paulo Castro, cuja história abriu este TAB. Ao perceber que ele não saía do quarto por cerca de 12 horas, o gerente do hotel arrombou a porta e chamou o serviço de emergência médica. Depois de passar um tempo na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), Paulo se recuperou.

* nome alterado a pedido do entrevistado

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