Com um recém-nascido em casa, o metalúrgico Marcelino Carletti Filho cruzava sozinho os corredores do hospital Emílio Ribas, em São Paulo, para ver a filha mais velha pela janela de uma ala isolada. Ele jamais se esqueceu da imagem das crianças mortas embaladas em lençóis. Chorava em silêncio para não deixar a professora Lourdes Fuster Carletti, sua companheira, ainda mais ansiosa.
No dia em que a filha de dois anos teve alta, uma junta médica abriu o jogo: o país estava no meio de uma epidemia que se espalhava por gotículas, secreções e desinformação. A recomendação era para que a família saísse da capital.
Marcelino deixou temporariamente o trabalho de metalúrgico para abrir uma loja em Catanduva (SP). Lourdes deu um tempo na carreira de professora. Eles reconstruíram a vida no interior, tudo por causa de uma doença contagiosa.
Parece história dos tempos de covid-19, quando muitas famílias deixaram a capital paulista, novamente o epicentro de uma doença infecto-contagiosa. Mas aconteceu em 1974, durante a epidemia da meningite. O Brasil vivia o auge da ditadura.
Quase 50 anos depois, Luciana Carletti de Medeiros, a menina que passou nove dias internada no Emílio Ribas, ainda guarda memórias difusas do choro das outras crianças e das chupetas caídas pelo chão. As lembranças são costuradas com as da mãe, hoje viúva. "Ela não gosta de falar sobre o assunto. Foi muito sofrimento", diz, aos 49 anos, a hoje professora de tecnologia educacional.