PERDAS E DANOS

Nos anos 1970, o Brasil encarou a meningite com descaso e atraso. Dez anos depois, a ciência acabou vencendo

Matheus Pichonelli Colaboração para o TAB, de São Paulo Folhapress

Com um recém-nascido em casa, o metalúrgico Marcelino Carletti Filho cruzava sozinho os corredores do hospital Emílio Ribas, em São Paulo, para ver a filha mais velha pela janela de uma ala isolada. Ele jamais se esqueceu da imagem das crianças mortas embaladas em lençóis. Chorava em silêncio para não deixar a professora Lourdes Fuster Carletti, sua companheira, ainda mais ansiosa.

No dia em que a filha de dois anos teve alta, uma junta médica abriu o jogo: o país estava no meio de uma epidemia que se espalhava por gotículas, secreções e desinformação. A recomendação era para que a família saísse da capital.

Marcelino deixou temporariamente o trabalho de metalúrgico para abrir uma loja em Catanduva (SP). Lourdes deu um tempo na carreira de professora. Eles reconstruíram a vida no interior, tudo por causa de uma doença contagiosa.

Parece história dos tempos de covid-19, quando muitas famílias deixaram a capital paulista, novamente o epicentro de uma doença infecto-contagiosa. Mas aconteceu em 1974, durante a epidemia da meningite. O Brasil vivia o auge da ditadura.

Quase 50 anos depois, Luciana Carletti de Medeiros, a menina que passou nove dias internada no Emílio Ribas, ainda guarda memórias difusas do choro das outras crianças e das chupetas caídas pelo chão. As lembranças são costuradas com as da mãe, hoje viúva. "Ela não gosta de falar sobre o assunto. Foi muito sofrimento", diz, aos 49 anos, a hoje professora de tecnologia educacional.

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Paulo de Almeida Machado, então ministro da saúde, vacina a secretária de educação Marília França Veloso no Rio de Janeiro, em 1975

ALTA LETALIDADE

Quem estava na linha de frente atesta a rotina intensa daquele hospital, principal trincheira contra uma epidemia da doença provocada pelas bactérias meningococo dos tipos A e C. A doença, que causa inflamação nas meninges, chegou a matar uma em cada dez pessoas contaminadas no país — letalidade, portanto, de 10% (para se ter ideia, a da covid-19 é de 2,8%, segundo o Ministério da Saúde). O número total de mortes diverge até hoje.

"O hospital chegou a ter o dobro de pacientes em relação ao número de leitos. Não havia UTI e muitos eram tratados nas enfermarias", relembra a médica Rita de Cássia Barradas Barata, professora adjunta da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e autora do livro "Meningite: uma doença sob censura?".

Na época, ela fazia internato do curso de medicina, e conta ter adquirido muita prática em punção lombar, procedimento delicado e doloroso de coleta do líquido da medula espinhal.

Segundo ela, o momento mais difícil era enfrentar os casos gravíssimos de meningococcemia, a forma septicêmica da doença, uma infecção generalizada. Algumas crianças apresentavam a forma fulminante e morriam em menos de duas horas. "Era muito triste. Mesmo contando com todos os recursos terapêuticos, era impossível salvar todos os casos."

Com paralelos inevitáveis com os dias atuais, a história da epidemia de meningite é um marco do que deve e do que não deve ser feito em contextos de crise sanitária. Se, por um lado, ela mobilizou esforços para estruturar o programa de vacinação pública no país, seu histórico ajuda a entender como um problema complexo pode se transformar num morticínio sem o manejo adequado de algumas ferramentas básicas, como a comunicação.

Foto do arcevo pessoal de Edgard Catoira em 1970

POLÍTICA DO CALE-SE

A censura é parte fundamental dessa história. No começo dos anos 1970, Edgard Catoira, hoje com 77 anos, era chefe de reportagem da revista Veja quando passou a receber, via Telex, determinações do Ministério da Justiça sobre assuntos proibidos de serem abordados na publicação. Um deles era "meningite".

"Não tinha vacina suficiente e, como agora, o governo não estava preparado para lidar com a situação. Todo mundo tinha casos na família, mas ninguém tinha ideia de que era uma puta epidemia. Por um tempo as escolas continuaram abertas, os pais levavam os filhos para festinhas, teatrinhos. Tinha criança morrendo e ninguém podia falar disso", lembra o jornalista.

Por causa da censura, Catoira desconfiou que havia algo acontecendo e, por precaução, levou a filha, Luisa, junto com a filha da empregada doméstica, da mesma idade, para tomarem vacina no Emílio Ribas —eram poucas doses disponíveis para a população, mas havia.

Isso porque cerca de 200 mil doses de um imunizante ainda em fase de testes foram doadas ao estado de São Paulo pelos EUA. A secretaria da Saúde fez um ensaio clínico de fase 3 com crianças, mas muitos pais se recusaram a participar. Assim, cerca de 70 mil doses foram aplicadas no período. O restante foi usado para imunizar profissionais de saúde, segundo Rita Barata.

Catoira, após vacinar a filha, instalou a família no Guarujá, no litoral norte de São Paulo. Mas a impossibilidade de alertar a população a fazer o mesmo levou o editor a uma profunda crise de depressão. Catoira deixou a revista pouco depois.

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EPIDEMIA DE MENTIRAS

Coautor de "O livro da meningite: uma doença sob a luz da cidade", o médico José Cássio de Moraes, 75, epidemiologista da Santa Casa que ajudou a planejar as principais campanhas de vacinação do país desde a crise da meningite, diz que a existência de uma epidemia era incompatível com a imagem de um país que estava crescendo. "A resistência só diminuiu por causa da superlotação dos hospitais."

Sinais do surto epidêmico eram visíveis desde 1971, mas o Serviço Nacional de Inteligência coibia a divulgação de números de mortos ou infectados. A alegação é que haveria pânico na população — argumento parecido com o usado pelo atual presidente Jair Bolsonaro, para quem uma possível histeria causaria mais problemas do que a própria covid-19.

Nos anos 1970, o temor podia ser observado em frente aos hospitais, quando as pessoas trancavam as janelas dos carros ao passar em frente das unidades de saúde, com medo de se infectarem — como alertava uma lenda urbana da época.

Moraes diz que hoje um dos grandes problemas é a "infodemia". "Isso acontece quando você tem informação em excesso que muitas vezes chega distorcida. A política de conflitos e antagonismos mina a credibilidade nas autoridades. As pessoas acreditam conforme suas tendências políticas. E em uma crise de desinformação, circula qualquer teoria", analisa.

Rita Barata recorda que, na época, o governo censurava os meios de comunicação, mas não interferia com o trabalho médico. "Ninguém resolveu prescrever tratamentos ou desacreditar as formas corretas de atendimento."

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QUESTÃO DE CLASSE

Em 1974, Mauro Pires era um jovem estudante de enfermagem que concluía a habilitação em saúde pública na USP (Universidade de São Paulo) quando foi escalado para realizar um levantamento epidemiológico em bairros de estrutura precária da periferia de Osasco (SP). Era comum ouvir, nas casas que visitava, relatos de ao menos um óbito na família.

A atenção sobre a epidemia que fazia estragos nas áreas periféricas mudou quando começou a morrer gente nas áreas abastadas. "Foi aí que os generais começaram a ficar atentos", afirma.

Para o levantamento, Pires se deslocava pela região com um jipe e um motorista do Exército. Ele também foi um dos profissionais de saúde vacinados em São Paulo. Ainda assim, o medo de contrair a doença era comum. O da perseguição, também.

"Foi um momento de tensão. As pessoas não sabiam o que estava acontecendo. A resistência acontecia em publicações internas e conversas com os colegas da medicina. No geral havia uma alienação muito grande e muito medo de se expor", relata o hoje professor aposentado da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e vice-presidente do Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo.

Pires foi um dos milhões de brasileiros infectados pelo coronavírus, doença que também foi especialmente fatal nas periferias. "Tenho clareza de que a classe social determina os meios e a qualidade do atendimento", diz ele, ao analisar os dois contextos.

Segundo Rita Barata, o combate à epidemia de meningite de fato coincide com a ocorrência da doença nas camadas da sociedade com capacidade de vocalização política. "A mudança do governo Médici para o governo Geisel também foi importante. O novo ministro [da Saúde] Paulo de Almeida Machado rapidamente compreendeu a gravidade da epidemia. Em sua equipe havia sanitaristas que entenderam a necessidade de romper a censura para mobilizar a população para a campanha de vacinação em abril de 1975", diz.

Foi naquele período que o governo determinou a suspensão dos Jogos Pan-Americanos, que seriam realizados em São Paulo. Em 2021, num caminho contrário, o governo federal bateu no peito para trazer a Copa América para o Brasil.

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CAMPANHA DE SUCESSO

A dependência de laboratórios estrangeiros, sobretudo da França, para a vacinação em massa, fez com que um gargalo ficasse evidente no país. A partir de então foram construídas a fábrica de medicamentos Farmanguinhos e a de vacinas, a Bio-Manguinhos, no Rio. A nova estrutura teria papel fundamental em campanhas de vacinação contra sarampo, febre amarela e no combate a dengue, zika e chikungunya. O último caso da poliomielite no país foi registrado em 1989.

Quinze anos antes, até caminhões de sorvete foram emprestados para as autoridades montarem a maior campanha de vacinação já registrada até então, segundo Moraes. Rita Barata atuou e acompanhou de perto a mobilização em São Paulo, onde 95% da população foi vacinada em apenas quatro dias, em março daquele ano.

Os agentes contavam com uma arma: o ped-o-jet, pistola de ar comprimido que tornou possível a pessoas sem treinamento em enfermagem atuar como vacinadores. Para agilizar o andamento das filas, não se registravam os vacinados. Foi só após a campanha que o IBGE fez uma pesquisa domiciliar para estimar o número de vacinados. "Eu percorria os alojamentos das equipes para colher dados sobre o número de frascos utilizados e estimar o número de pessoas vacinadas".

A campanha era completamente diferente do que está ocorrendo hoje. Primeiro porque foram os epidemiologistas que desenharam a campanha. Segundo, o pessoal do Exército foi recrutado, mas quem comandava eram os sanitaristas. Terceiro, a adesão da população foi massiva, dada a enorme campanha de mídia. Quarto, a campanha só foi iniciada quando havia todas as doses necessárias para a execução."

Rita de Cássia, Professora adjunta da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e autora do livro "Meningite: uma doença sob censura?"

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