DEVOÇÕES MARGINAIS

Nos cemitérios de São Paulo, milhares de fiéis anônimos visitam túmulos de milagreiros informais

Marie Declercq (reportagem) e Camila Svenson (fotos) Do TAB, em São Paulo

É fato: todo dia se morre em São Paulo. Que o digam os corredores abarrotados dos crematórios e das salas de velórios pela cidade, ocupadas por vivos despedindo-se de seus mortos. Já um fato que nem todo mundo conhece é que, a menos de um quilômetro de um desses espaços, existe um lugar nascido de uma tragédia onde a vida encontra meios para agir.

Na esquina de uma das quadras do cemitério de Vila Alpina, uma fileira de jazigos destaca-se das demais. Treze cruzes brancas são mantidas em cima de treze túmulos, todos sem nome. Grades altas cercam o pequeno terreno, onde inúmeras placas estão penduradas. Há também placas no chão, amontoadas, como se não coubessem mais nas grades. O material e a grafia das placas varia, mas a mensagem reproduzida é a mesma:

Obrigada às Treze Almas pela Graça Alcançada.

A história das Treze Almas nasceu dos escombros do Edifício Joelma, que pegou fogo em 1º de fevereiro de 1974. A tragédia fez 187 mortos e deixou mais de 300 feridos. Depois de horas tentando controlar as chamas e resgatar sobreviventes, os bombeiros encontraram corpos carbonizados, praticamente soldados entre si, em um dos elevadores. Nas reportagens da época, o número de corpos mudou, de acordo com o avanço das identificações. Do trabalho da perícia sobraram os treze anônimos do Joelma, sepultados na Vila Alpina. Muitos dizem que eles foram encontrados abraçados, como se tivessem aceitado a vinda inevitável da morte.

Apesar da história triste e macabra, as Treze Almas são visitadas por outros motivos. Não se sabe exatamente quem fez a primeira promessa, mas, desde que foram enterradas, elas atraem anônimos em busca de um milagre. E, pelo que foi possível capturar, as treze almas já atenderam muita gente.

Neste pequeno pedaço no cemitério na zona leste resiste uma devoção que não é reconhecida oficialmente por nenhuma religião, fruto de um exercício de fé popular, tornando-a forte o bastante para estar presente em quase todos os cemitérios de São Paulo - quiçá do Brasil.

São os milagreiros, uma devoção marginal que existe e resiste em meio ao abandono de cemitérios paulistanos.

UM COPO DE ÁGUA E UMA ORAÇÃO

Tâmara Vasconcelos sabe que é hora de fazer uma oração para as Treze Almas através dos sonhos — normalmente, são aqueles em que desconhecidos a ajudam com algo ou quando ela sente sede, muita sede. "É acender uma vela, levar um copo d'água ou fazer uma oração. Elas não querem nada mais do que isso", explica a atriz de 35 anos.

O copo de água faz parte de um ritual específico. Diz a lenda que, assim que foram enterradas, gritos foram ouvidos vindo dos túmulos. Para amenizar a dor das chamas, virou costume jogar água sobre eles. Ao lado, aliás, está uma torneira.

A devoção da atriz foi uma construção. Umbandista, conheceu a história pelo pai-de-santo do terreiro que frequenta. "Vou ser muito sincera: mesmo sendo uma pessoa de fé, minha família nunca foi de acender vela. No começo, fazia como se estivesse seguindo um protocolo. Com o tempo, as coisas vão acontecendo e a fé vai crescendo", conta.

Assim como acontece com muitos devotos, os milagres vividos por Tâmara são difíceis de explicar porque só fazem sentido para quem pede. "São milagres para mim, mas se eu contar para outras pessoas, elas talvez não considerem assim. Fé não tem mesmo como provar, você tem que acreditar."

Nas placas penduradas em torno dos treze túmulos, estão ali os pequenos milagres cotidianos: a venda de um caminhão, a conquista de um emprego, a cura de uma doença, o sonho da casa própria ou apenas um simples agradecimento por algo que só o devoto e as Treze Almas sabem o que é.

DIVINDADE POPULAR

Ao contrário dos santos, cujo status é conferido pela Igreja Católica após passarem por um processo de canonização, os milagreiros não dependem de nenhuma autoridade religiosa para serem considerados divinos.

Quem confere a divindade aos milagreiros de cemitérios é o povo, da forma mais prática possível: se o milagreiro coleciona muitas histórias de milagres atendidos, mais devotos vai atrair.

Com o distanciamento da sociedade de assuntos relacionados à morte, a devoção a essas figuras diminuiu expressivamente. Todavia, é uma fé que ainda consegue resistir ao tempo e ao envelhecimento de devotos.

Cada região do Brasil possui uma peculiaridade, mas, na maior parte das vezes, as histórias se concentram em mortes precoces, seja um natimorto, crianças ou jovens. A causa mortis tende a ser sofrida e muito sentida pelos vivos: doença, acidente ou violência. Mas há também figuras marginais que se tornam milagreiras: bandidos, ladrões, prostitutas e moradores de rua.

"É um fenômeno que expressa muitos signos interessantíssimos, especialmente a humanidade", explica Thiago Souza, pesquisador e idealizador do projeto "O Que Te Assombra?". "Em Campinas tem a Maria Jandira, uma menina que era prostituta e se suicidou, em 1934. A devoção a ela chegou a ser proibida, sob o argumento de que uma prostituta jamais mereceria esse reconhecimento. O povo não tá nem aí para esse julgamento e credita a ela a condição de uma milagreira gigante."

No país, é quase impossível contabilizar quantos existem. Já em São Paulo, graças à pesquisa de Thiago, são 23 milagreiros, enterrados em 11 cemitérios municipais.

TÚMULO QUE VERTE ÁGUA

Em 1936, o jornal Correio da Manhã publicou reportagens sobre um mistério que tomou a região de Santo Amaro, na zona sul da capital. No cemitério do bairro, um túmulo de uma bebê começou a jorrar água sem qualquer explicação. E, para horror da saúde pública, alguns corajosos estariam bebendo a água que jorrava, alegando propriedades curativas.

O túmulo pertence à Noêmia Jessnitzer, conhecida como Noeminha, morta aos seis meses de vida, em 1899. Por causa da idade e da tal água milagrosa, o túmulo de Noeminha virou ponto de peregrinação - nunca deixou de ser visitado.

Já a fonte de água milagrosa não existe mais. "O tumulo lendario fôra fechado a concreto por determinação da Sub-prefeitura local, afim de impedir o povo continuasse a levar para casa o liquido alli contido, reputado como possuidor de extraordinarias virtudes therapeuticas", relata a última reportagem publicada sobre o tema no Correio da Manhã, em 5 de dezembro de 1936. A grafia original foi mantida.

Mais de 120 anos depois da morte de Noeminha, a última morada da bebê milagreira já viu dias melhores. Grande parte dos túmulos está sem placas de identificação. "Isso aqui tava pior ainda antes de privatizar", advertiu Gustavo Lemes, 44, supervisor do local e funcionário da Cortel, concessionária responsável pela administração do cemitério.

Caminhando entre os túmulos, Lemes saca o celular para mostrar um fato curioso que presenciou no Santo Amaro. "Olha o que aconteceu durante uma exumação aqui", contava, abrindo o WhatsApp.

Um vídeo de poucos segundos começou a rodar. Assim que um dos sepultadores quebrou o cimento de uma cova, uma enxurrada de água começou a sair. "Nunca vi isso antes", diz, ainda impressionado com a cena.

Felizmente, ninguém pensou em beber a água para ver se ela tinha alguma propriedade milagrosa.

'NÃO É PELA GRANA'

No Cemitério de Santo Amaro descansam mais dois milagreiros: a jovem Alzira Branco Jacinto e Bento do Portão.

Bento era um senhor curandeiro muito querido no bairro, quando Santo Amaro ainda era um município separado da capital. Os relatos da época dão conta que Bento ficava nos portões oferecendo pequenos serviços em troca de um prato de comida.

Os milagres atribuídos a ele ficaram tão conhecidos que, depois de morto, ele ganhou um espaço próprio, quase no coração do cemitério. Ficam lá, supostamente, seus restos mortais, cercado de placas e quadros em agradecimento. Ou, pelo menos, onde estão os vestígios das placas, já que a maioria foi furtada.

O juremeiro Anderson Lemos, 34, há anos tenta organizar um coletivo de devotos de Bento do Portão, Alzira e Noeminha. Lemos, que cultua a religião ameríndia Jurema, imprime santinhos com orações para deixá-los sobre os túmulos. A reportagem, inclusive, chegou ao juremeiro por causa de um santinho próximo à foto de Alzira.

Afora o problema de infraestrutura e abandono dos cemitérios, o culto aos milagreiros não está sendo mais passado para frente. Com a morte dos mais velhos e a aposentadoria de sepultadores mais antigos, as histórias correm risco de desaparecer.

"Os funcionários mais antigos não só vivenciaram a concepção dessas divindades ou ouviram os relatos de quem vivenciou, como assistiram ao longo dos anos o processo de devoção nos cemitérios", lamenta Thiago Souza.

Assim como Thiago, o juremeiro Anderson quer mudar essa situação. "Eu não queria colocar meu contato no santinho, mas pensei que poderia ser uma forma de chamar pessoas para preservar a memória. Não é pela grana", afirma.

A devoção aos milagreiros não atende a uma religião específica. Nas visitas de túmulos nos quatro cantos de São Paulo, foi possível encontrar católicos, espíritas, umbandistas e candomblecistas fazendo promessas. "Já vi até budista visitando o Bento", conta Lemos.

CONEXÕES IMPROVÁVEIS

No Cemitério da Consolação, o ex-coveiro Francivaldo Gomes, o Popó, circula pelas ruelas enquanto cita de cabeça fatos históricos sobre os ilustres mortos que moram no cemitério mais chique da cidade. Durante aquele passeio, no entanto, Popó nos levou até dois jazigos: Maria Judith de Barros, a milagreira dos universitários, e Antônio da Rocha Marmo.

Antônio Marmo, o Antoninho, ocupa outro patamar. O menino católico, levado pela tuberculose aos 12 anos em 1930, está em processo de canonização desde 2007. Atualmente, ele é definido como "servo de Deus" pela Igreja Católica.

"Tá vendo aquela placa ali?", apontou Popó para o túmulo de Antoninho. "Sabe quem é B.B.? É Beto Barbosa, o cantor".

Sim, o Rei da Lambada confirmou as placas de agradecimento. "Hoje não frequento tanto, mas em todas as cidades em que fui, procurei um cemitério. Na Consolação procurei as almas mais antigas, espíritos de luz e iluminados, já purificados, para sentar perto e rezar", conta.

A relação do músico com milagreiros começou em Belém nos anos 1980. Beto era jovem e estava sofrendo por amor — a ponto de cogitar dar cabo à própria vida. Até o dia em que resolveu entrar no principal cemitério da cidade. "Eu tinha medo até de passar perto, mas foi o único lugar em que me sentia bem."

Foi assim que deparou com um túmulo recente, com a foto de uma jovem bonita que aparentemente morrera de amor. Ela não era uma milagreira, mas causou impacto em Barbosa. "Naquele momento, pedi a Deus para que aquela angústia saísse de mim. E ela se foi, junto com a vontade de morrer. Passei a visitar constantemente o cemitério", relata.

No mesmo cemitério, Barbosa também virou devoto de Josephina Conte, jovem morta em 1937 que ficou conhecida como "a Moça do Táxi". Esta também foi responsável por dar rumo à vida do cantor. "Pedi muito que ela mostrasse uma nova profissão, um novo caminho. Quando ganhei meu primeiro disco de ouro, o deixei na secretaria do cemitério como agradecimento", conta.

Um fato difícil de ignorar: foi por causa da devoção à jovem que o Rei da Lambada compôs o hit "Adocica". Nas visitas ao jazigo, o jovem Beto conheceu a irmã da falecida, que virou sua namorada logo em seguida. "Fiz a música pensando nela", revela.

Mais uma graça alcançada, então, tem que entrar na conta dos milagreiros do cemitério do Brasil: o sucesso estrondoso da lambada.

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