POR DENTRO DA MURALHA

Monumento na China, na verdade, compreende fortificações construídas por diversas dinastias durante séculos

Talita Fernandes Colaboração para o TAB, de Pequim Wang Aijun/Xinhua

Eram 5h30 de uma manhã de setembro e os chineses estavam se preparando para o Festival de Meio do Outono, quando famílias se reúnem para reverenciar a tradição do "yuebin", o bolinho da lua, enquanto se observa a lua cheia no céu claro de temperaturas amenas.

Antes de o sol nascer, dezenas de pessoas já estavam acomodadas no alto da Grande Muralha para ver os primeiros raios de luz. Chegaram cedo e escolheram os melhores pontos para ver, fotografar e filmar com calma o despontar do dia.

O local é frequentado o ano todo, mas, como no norte da China os invernos e verões são intensos, outonos e primaveras têm mais movimentação. O TAB visitou sete trechos da muralha em três províncias diferentes, num intervalo de quase dois anos, nas quatro estações do ano.

Nos raros dias de neve, no frio cortante e seco de Pequim, muitos acordam cedo para ver os muros altos cobertos de gelo. Foi o que aconteceu na manhã de 13 de fevereiro de 2022 quando, uma semana após o início do Ano Novo Lunar, uma nevasca atingiu a região.

As crianças deitavam na neve sob a muralha e ficavam abrindo e fechando braços e pernas, o que deixa um rastro de neve parecido com as asas de um anjo. Para evitar acidentes, dois funcionários usando uniformes laranjas fluorescentes lançavam, com uma máquina, um forte jato de ar para dispersar a neve acumulada.

Era difícil manter os olhos abertos enquanto a neve caía. A visão turva graças à névoa branca tirava a imensidão da muralha, imponente nos dias claros e ensolarados. A caminhada era desgastante, mas a neve depositada sobre os muros traz uma beleza única à paisagem que se modifica muito ao longo do ano.

O outono traz o charme das folhas amareladas e avermelhadas. É um fenômeno tão esperado que a administração de Pequim costuma enviar SMS aos moradores recomendando que ingressos para parques públicos sejam comprados com antecedência.

A primavera também é recebida com gosto por quem se cansou dos longos meses de frio e vai até a muralha para ver os primeiros botões de flor. Chineses fotografam cuidadosamente cada brotinho de flor, num sinal de que dias mais longos e temperaturas mais amenas se aproximam. A época também é mais propícia para subir e descer as imensas escadas sem tremer de frio ou transpirar demais.

"A vista é muito diferente nas quatro estações", diz James Ren, 42, guia especializado em trilhas na Grande Muralha — o nome foi adotado para atender a clientela estrangeira. Há quase duas décadas ele leva visitantes para conhecer os contornos do imenso muro chinês.

O guia gosta de observar flores e folhas enquanto caminha e seus trechos favoritos são os próximos a Pequim e Hebei, especialmente os considerados mais selvagens, com silêncio e contato com a natureza.

Embora tenha visitado mais de 70 trechos, diz que "nem de longe" conhece toda a muralha e gosta justamente da variedade da construção e dos níveis de conservação, o que abre caminho para todo tipo de passeio, dos mais tranquilos e acessíveis aos mais íngremes, que exigem escaladas.

Não é falsa modéstia quando James diz conhecer pouco: o que é comumente chamado de "Grande Muralha da China" é, na verdade, um conjunto de fortificações de diferentes cores, materiais e formatos, construídas por dinastias diferentes ao longo de todo o norte do país, incluindo pedaços erguidos sobre os anteriores. Há muitas muralhas dentro da muralha.

A imagem mais famosa é a dos trechos próximos à Pequim, erguidos ao longo da Dinastia Ming (1368-1644). É desse trecho a lenda urbana que diz que a estrutura pode ser vista da lua (não, não é visível). De tijolinhos acinzentados, esses fragmentos estão entre os mais recentes e mais conservados.

A administração e a manutenção da muralha são feitas pelo governo chinês, dividida entre o comando central e as administrações locais e provinciais, o que faz com que as províncias busquem boas relações com a capital para garantir mais recursos para as obras.

A diferença é visível nos detalhes: nos mais turísticos, há uma série de cafés e franquias como KFC, além de funcionários uniformizados que cuidam da limpeza; quanto mais distante dos pontos centrais, é comum ver faixas pretas e amarelas e funcionários com coletes laranjas carregando pedras e instrumentos para consertar trechos danificados que, muitas vezes, passam longos períodos em reconstrução.

Também é comum que empresas façam doações para manter a estrutura, declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco, em 1987, e escolhida como uma das Sete Maravilhas Modernas do Mundo, em 2007. A Tencent, responsável pelo aplicativo WeChat, por exemplo, doou 35 milhões yuans (cerca de R$ 26,7 milhões), para um projeto em 2016.

Segundo o site da Unesco, a muralha teria "mais de 20 mil km" de extensão, mas de tempos em tempos se descobre algo novo, tanto que não há consenso sobre seus números e dados históricos. Em 2009, por exemplo, um estudo revelou que o trecho construído pela dinastia Ming era maior do que se pensava — uma extensão de 8.800 km, muito mais longa que os 6.000 km minutados até então.

Os muros foram construídos para proteger o território de invasores, chamados de "hu". Entretanto, isso não impediu que o monumento sofresse com intempéries, guerras e uma série de invasões.

No livro "Country Driving", o escritor Peter Hessler, ex-correspondente da revista The New Yorker em Pequim, conta que passagens da muralha Ming eram usadas também como pontos de comércio: num trecho ermo e árido, os chineses trocavam instrumentos e alimentos por cavalos de forasteiros nômades. No livro, Hessler conta que a área era administrada para evitar que os mongóis, povos que viviam ao norte, adquirissem metais dos chineses, o que poderia ser usado para fabricação de armas.

Com mais de 2.500 anos, a Grande Muralha sobreviveu a turbulências históricas, entre elas a Revolução Cultural (1966-1976), uma década de transformações sociais, políticas e culturais. Sob comando do líder Mao Tsé-Tung, o movimento apregoou a destruição das "quatro velharias": era preciso deixar para trás velhas ideias, velhos costumes, velhos hábitos e velha cultura.

Uma das frases mais famosas sobre a muralha é do próprio Mao: "budao changcheng feihaohan", algo como "quem não sobe a muralha não é um bom homem".

O líder comunista morreu há quase 40 anos, mas a máxima segue imortalizada em diversos trechos da muralha, sobretudo em Badaling, onde há totens com a frase cravada com a caligrafia do revolucionário. O distrito virou destino turístico quase obrigatório. Já passaram por lá Richard Nixon, Diego Maradona e a rainha Elizabeth 2ª.

O slogan foi usado até para fazer propaganda de um festival de música eletrônica realizado ao longo da muralha desde 2014, interrompido com o surgimento da covid-19, em 2020, e até agora não retomado. Batizado de Yin Yang Festival, o evento já teve discotecagem de uma DJ brasileira, Juliana Lima, em 2019.

A idealizadora é a DJ chinesa Rainbow High, 58, que vive na região de Xangai. Escolheu a muralha pois queria "o mais puro clima da China", fora o simbolismo das pedras milenares. "Antes a Grande Muralha era para separar, para proteger [o território chinês]. Eu queria juntar, unir", diz ela ao TAB. Batizou o festival de "yin yang" em referência à filosofia daoísta, que considera que forças opostas são complementares — além de música eletrônica, a festa tinha rodas de conversas e prática de ioga.

A festa de Rainbow sempre escolheu regiões mais próximas a Pequim para facilitar o acesso do público. Na última vez, o festival durou três dias e recebeu 2.000 pessoas, com ingressos vendidos a partir de 300 yuans (cerca de R$ 219 no câmbio de hoje). Espalhado por diversos palcos, o festival coloria a muralha com corpos pintados com tintas fluorescentes, vestindo roupas de verão, óculos escuros e dançando no alto das torres enquanto as escadas viravam pontos de descanso.

Distante de onde Rainbow discotecou, outro trecho bastante visitado fica na província de Gansu, no noroeste, a mais de 2.000 km de Pequim. Construída pela dinastia Han (a partir de 206 a.C), a fortificação é bastante distinta daquela construída pelos Ming.

Chegar ao local conhecido como "o fim da muralha" pode até soar decepcionante à primeira vista, pois a construção não é tão imponente quanto as estruturas erguidas no norte e no nordeste do país. Em Gansu, os trechos são baixos, feitos de areia e barro e, em alguns pontos, chega a ser difícil distinguir o que é de fato uma das maiores relíquias da humanidade.

Um deles é a passagem de Jade, local importante para a antiga Rota da Seda, trajeto do comércio do nobre tecido entre a Ásia e a Europa, próximo à cidade de Dunhuang. Nos arredores, a conservação da muralha se soma a outras relíquias históricas e culturais como as Grutas de Mogao, que abrigam cavernas icônicas com pinturas que contam a história e a religião, sobretudo o budismo, daqueles que cruzavam a rota.

Entre Pequim e Gansu, a muralha se faz presente ao longo do território chinês, deixando marcas claras do tempo. Ao todo são 404 cidades e condados, 15 províncias, afirma o cientista da computação Han Guowei, 59, do The Great Wall Society, associação fundada pelo ex-líder comunista Deng Xiaoping, em 1987.

Morador de Pequim, Han deixou seu antigo trabalho em 2002 para se juntar à organização, que visa conservar e difundir o monumento e sua história. Conheceu por acaso os líderes da sociedade e decidiu se unir a eles e se dedicar à muralha por considerá-la um "microcosmo da história chinesa".

"A Grande Muralha é a ligação da integração multiétnica da China. Ela estabeleceu a ordem para povos agrícolas e nômades. É a personificação da sabedoria humana e da civilização", conta Han ao TAB. À frente da diretoria internacional da instituição, ele lida com grupos estrangeiros e missões diplomáticas. Entretanto, como as fronteiras chinesas ainda estão fechadas devido à pandemia, atualmente está trabalhando em NFTs sobre a muralha para o Dia das Sete Maravilhas do Mundo, celebrado anualmente em 7 de julho.

Construir fortificações e muralhas é tão parte da cultura chinesa que o próprio carácter usado para designar as palavras "cidade" e "muralha" é o mesmo ("cheng"), assinala a pesquisadora e professora especializada em China Julia Lovell, da Universidade de Londres, no livro "The Great Wall, China against the World" (a grande muralha, a China contra o mundo, em tradução livre).

"A língua escrita e a construção de muralhas se entrelaçam para definir a civilização chinesa tanto fisicamente quanto figurativamente desde que esse conceito passou a existir, dividindo e distinguindo os povos chineses."

O gigante monumento pode não ser visível desde a lua, como muitos acreditaram ou ainda acreditam, mas é grande o suficiente para construção de um mito fundador. Percorrer diferentes trechos da Grande Muralha me serve hoje de metáfora quando penso no país onde vivi por quase dois anos.

Ao passo que ia descobrindo os muitos muros que compõem a estrutura, fui notando que a diversidade de material e de tipografia na construção funcionam como uma concretização material da mudança de paisagem, de línguas e de povos distintos que formam o que hoje conhecemos como China. Entender a Grande Muralha como um conjunto é uma forma de ver o país milenar como uma coletânea de povos, dinastias e civilizações.

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