A MORTE LHES CAI BEM

Costumes funerários, cadáveres roubados, túmulos profanados: a relação obsessiva dos argentinos com o fim

Luciana Taddeo (texto) e Amanda Cotrim (fotos) Colaboração para o TAB, de Buenos Aires Amanda Cotrim/UOL

Edith Beraldi tem 57 anos e fala com Carlos Gardel todos os sábados. É o dia da semana em que ela espana o pó das placas, retira bitucas de cigarro que os fãs deixam acesos entre os dedos da escultura de bronze, joga fora as flores secas, varre a calçada e, para arejar o ambiente, abre a porta do mausoléu do cantor no cemitério da Chacarita, o maior de Buenos Aires.

Os ataúdes dele e de sua mãe, Marie Berthe Gardés, ou Doña Berta, ficam no subsolo. Quando Edith desce as escadas e os vê, começa a falar com o artista. Às vezes, abraça o ataúde do cantor. Para ela, que não é parente nem amiga da família, mas uma fã apaixonada pelo ídolo, esta é a definição de tarde ideal.

Após quase um século de sua morte, o grande ícone do tango — que, segundo registros, nasceu na França e se naturalizou argentino — está presente na vida de vários outros "gardelianos", homens e mulheres que costumam ouvir suas músicas, revisitar seus feitos e contar histórias do ídolo, ali mesmo no cemitério. Neles, Gardel continua vivo.

"É impressionante que, com quase cem anos da morte de Gardel, essa cultura de vir à Chacarita continue vigente", diz Hernán Santiago Vizzari, pesquisador de costumes funerários argentinos. "Vai além do canto. Trata-se do surgimento de um mito, de um mistério ao redor do cantor, assim como acontece com um monte de personalidades argentinas. Se a morte é trágica, a cultura do ídolo se potencializa na Argentina", explica.

"Carlitos, obrigada por termos tido você", diz Gustavo Luis Spadolini, 48, quando desce ao subsolo para ver os ataúdes. Também agradece Berta pelo filho que trouxe ao mundo. O homem que vive na Villa Ballester, na Grande Buenos Aires, a 90 minutos do cemitério, conta que vai até lá todos os sábados com o que chama de "biblioteca itinerante", um repositório de notícias e fotografias do cantor e dele mesmo, quando adolescente, no mausoléu.

Filho de tangueiro, com toda a família gardeliana, começou a admirar o ídolo em 1985, no cinquentenário de sua morte, quando todas as rádios tocaram suas músicas. A devoção continua até hoje. Spadolini, como outros, herdou a paixão dos pais. Os devotos de Gardel usam broches e chaveiros com a imagem sorridente do ídolo de chapéu na cabeça. Lá cantarolam as letras, que sabem de cor. Spadolini, em particular, sabe quais canções foram gravadas ao vivo, em que show e onde. Como não fuma, não é dos que colocam cigarros acesos entre os dedos da estátua, mas já encaixou um maço no braço da figura de bronze.

Há oito anos, Edith propôs ao pai de quase 80 anos que fizessem uma tatuagem. "Um dia disse para ele: 'Já temos o Gardel na alma. O que você acha de também o carregarmos na pele?'. Ele aceitou sem duvidar, emocionado", lembra.

O pai de Edith acabou falecendo no ano seguinte e ela virou a cuidadora oficial do mausoléu, com o aval da Fundação Internacional Carlos Gardel. Ela garante que essa paixão também é compartilhada por jovens. "Aí captamos mais um gardeliano", brinca, enquanto limpa o local onde seu ídolo descansa em paz sob a tutela dos fãs.

Nas últimas semanas, argentinos também abraçaram e conversaram com um ídolo cuja morte parou o mundo. Trata-se de um Diego Maradona recriado por inteligência artificial.

O craque morreu há quase dois anos, mas os argentinos deram um jeito para que sua versão jovem e malandra voltasse a existir. A IA pode ser vista em uma tela dentro de um avião privado, no qual "El Diez" responde a perguntas dos passageiros, de acordo com falas suas em vida e algumas pensadas para a Copa do Mundo do fim do ano.

Do lado de fora do avião, fãs tiram foto com um holograma do craque e podem gravar mensagens de vídeo que serão enviadas via satélite para o espaço, em um HD com um par de chuteiras utilizadas por ele. A ideia é que a aeronave de 10 poltronas, que passou pelas cidades argentinas de Morón e Rosário, percorra outros países para a coleta de mais mensagens, antes de ser levada para o Qatar, "em apoio" à seleção argentina.

Estranha ou mórbida, a iniciativa não surpreende: a Argentina tem uma relação quase obsessiva com a morte. Por aqui não é novidade que um falecido desperte paixões, seja objeto de rituais por décadas ou de obsessões com cadáveres e funerais multitudinários e conflituosos. Para o jornalista Claudio Negrete, que abordou o tema no livro "Necromania: história de uma paixão argentina", de 2010, os "antecedentes e evidências" confirmam que os argentinos são mesmo "necrômanos".

Na obra, ele explica que a história argentina está repleta de "fatos fúnebres precedidos de torturas, roubos de cadáveres ou de suas vísceras, mutilações várias, disputas por cabeças, mãos e corações; ossos em exílios permanentes, esconderijos secretos, onde um pedaço de morto pode valer mais que ouro". Seu livro relata traslados e exumações de mortos ilustres, assim como de partes de seus corpos; pessoas comuns que viraram alvos de devoção; "cadáveres como instrumento de vingança"; a morbidez da ditadura militar, que torturou e sumiu com milhares de corpos.

Maradona ainda não tinha morrido quando Negrete publicou o livro, mas os episódios após seu falecimento se encaixam perfeitamente nos argumentos do jornalista. Como era previsível, um dia após sua morte, uma multidão se dirigiu à Praça de Maio para se despedir do ídolo na Casa Rosada, sede do governo argentino. A família do ex-jogador preferiu uma cerimônia curta, de somente um dia, e no final da tarde, o lugar acabou invadido por fanáticos. Por segurança, o cadáver foi retirado da sala onde era velado.

Mas, para Negrete, o melhor exemplo foi a selfie dos responsáveis pela funerária com Maradona morto, no caixão. "Isso é necromania: tirar foto de um personagem morto, em um país em luto, como se fosse um rockstar. Foi mal visto, mas não quer dizer que o argentino não tenha consumido, com curiosidade, esta evidência de que ele tinha morrido."

O ex-presidente Juan Domingo Perón e sua esposa Evita Perón foram exemplos surpreendentes da necromania argentina. Ele está, até hoje, sepultado sem as mãos. O destino das suas extremidades, serradas e roubadas em 1987, ainda é um mistério. Se a Justiça autorizar, elas podem vir a ser repostas por um par de mãos construídas com terra de todas as províncias argentinas, feitas a pedido de líderes peronistas.

O autor da obra é Daniel Carunchio, tanatopraxista responsável por conservar o cadáver de Perón em seu mausoléu, sempre e obrigatoriamente acompanhado pelo escrivão geral do governo, a cada dois anos.

Na época da profanação, Perón estava enterrado no cemitério da Chacarita. O corpo estava embalsamado, mas como o caixão ficou mal vedado após o roubo, acabou entrando em decomposição. Quando Carunchio foi acionado para consertar o estrago, em 2006, encontrou um jazigo infestado de fungo verde.

Ele restaurou o cadáver e trocou a caixa metálica do féretro. Na época, seu trabalho gerou polêmica — Carunchio chegou a ser alvo de rumores de que teria retirado secretamente o corpo do ex-presidente de lá em uma ambulância.

Após a limpeza, um pedaço do pulso e um fragmento de osso da perna acabaram extraídos para exames de DNA, por um processo iniciado por uma argentina que alegava ser filha de Perón. Carunchio presenciou a extração, antes que o corpo fosse transportado para a união sindical peronista para uma homenagem, antecedida por novo cortejo fúnebre, com caixão ao ar livre, envolvido por uma bandeira argentina e muitas flores, sob escolta.

O novo destino do corpo de Perón foi a Quinta de San Vicente, uma das residências do ex-presidente na província de Buenos Aires, onde está até hoje. O tanatopraxista lembra o estado em que chegou em casa. "Aqui ficou tudo cheio de roxos", conta, sobre os hematomas na lateral do seu próprio corpo como resultado do delírio coletivo que vivenciou — ele se viu em meio a uma multidão de argentinos que "se matavam", como ele define, para encostar no ataúde.

"Se você vir as fotos da época, o quepe e a espada de Perón estavam em cima do caixão. Mas em algum momento tivemos que guardá-los, porque acabariam sendo roubados", lembra. Nem passava pela cabeça dos organizadores o potencial de confusão da iniciativa. Além de pessoas atropeladas no trajeto, houve um tiroteio entre grupos peronistas que disputavam o palco montado para homenagear o ex-presidente. O plano de realizar um ato ali acabou suspenso.

Hoje, Perón está resguardado atrás de outro vidro blindado, em um mausoléu protegido a sete chaves — até a limpeza do local requer autorização. Carunchio defende que o cadáver de Evita, depositado no cemitério da Recoleta — já sequestrado, agredido, urinado e desaparecido por quase duas décadas, após o golpe contra Perón, quando foi enterrado sob outro nome na Itália —, seja colocado ao lado do ex-presidente. Uma minissérie recente trata da saga impressionante sobre o corpo (e o mito) de Evita.

Invocações de Evita e Perón são "uma forma de voltar a um passado que era muito melhor que o presente", segundo Negrete. A mesma coisa acontece com Gardel: "Nós dizemos que ele 'cada dia canta melhor'", explica ele, pontuando que o cantor virou um ícone da Argentina exitosa e de uma glória que o país perdeu.

Não longe do mausoléu de Gardel, em uma tarde invernal de sábado, um grupo conversa animadamente entre sepulturas. Esse é provavelmente o corredor mais animado e florido do cemitério da Chacarita. Lá está o corpo de Gilda, cantora argentina de cumbia que morreu no auge do sucesso, aos 34 anos, em um acidente rodoviário. O local da tragédia que matou Gilda, na província de Entre Ríos, virou santuário, e os visitantes podem entrar no ônibus onde ela, sua filha, sua mãe, músicos e o motorista do veículo deram seus últimos respiros, há 26 anos.

Paola Martini chorou muito na primeira visita ao santuário. Com o tempo, o local deixa de ser tão impactante. "Porque sabemos o que acontece depois. Ela vira angelical, aparece nos nossos sonhos quando temos um problema, nos acompanha. Muita gente faz pedidos, vai até lá e os desejos são realizados. Gilda ficou muito mais conhecida após a morte", conta ela, que hoje organiza viagens até o santuário em Entre Ríos.

Paula também frequenta o cemitério portenho, e conta que até já comemorou seu próprio aniversário ao lado da gaveta mortuária da cantora. Ao som das músicas de Gilda, ela e um grupo de fãs costumam se reunir no local todos os sábados para bater papo, tomar mate e comer. Uma bandeira com o rosto de Gilda é colocada na entrada do local para avisar que é naquele ponto que está a cantora.

Para outros, a tradição é silenciosa. Uns chegam e fazem um sinal da cruz e tocam a porta da sepultura, em uma reza inaudível. Outro costume comum é fãs darem leves batidas com os ossos dos dedos na porta, como se chamassem a cantora para conversar baixinho. Também deixam rosários, cartas e presentes.

As oferendas são tantas que um cartaz no local pede que os visitantes não deixem objetos para ela, para a filha e a mãe, que morreram no mesmo acidente, fora daquele corredor. Mesmo assim, o grupo espalha as flores artificiais deixadas lá por todas as gavetas vizinhas, alegrando todo o ambiente, sempre ao som da voz da cantora.

Rara é a estrada na Argentina que não tenha um altar para Gauchito Gil. Considerado um Robin Hood local, Antonio Mamerto Gil Núñez viveu no século 19 e até hoje é figura de devoção popular na Argentina. Há diferentes versões sobre sua vida, como as de que liderou greves e movimentos revolucionários, desertou na Guerra do Paraguai e foi preso por roubos e brigas. Era, entretanto, protegido pela população porque era visto como um benfeitor da época.

Diz a lenda que ele acabou capturado e, no caminho para o julgamento, acabou pendurado de ponta-cabeça e assassinado. Antes, alertou que o filho do comissário que o mataria estava muito doente. Para salvá-lo, seu executor deveria rezar em nome de Gauchito Gil. E, segundo os argentinos, assim foi: o comissário chegou em casa e encontrou seu filho doente, mas conseguiu salvá-lo após rezar para o homem que acabara de executar.

Dois séculos depois, Gauchito Gil é idolatrado como um santo ao redor de toda a Argentina. Seus altares, que não são poucos, estão sempre lotados de oferendas, principalmente bebidas alcoólicas. Quando os caminhoneiros passam na região do seu santuário em Corrientes, a terra natal do ídolo, têm de buzinar três vezes para proteção.

Os altares nas estradas são de tamanhos variados, mas sempre pintados de vermelho-vivo e reconhecidos à distância pelas várias bandeiras vermelhas que os rodeiam, amarradas em árvores, e que, segundo devotos, representam seu sangue escorrendo. Na crença popular argentina, Gauchito Gil realiza desejos.

Marcelo Damian Tacain, 30, tem essa certeza marcada no peito, onde há uma enorme tatuagem de Gauchito Gil diante de uma cruz. Após um pedido e uma promessa, fez tratamento e se livrou da drogadição. Anos depois, viveu outra vez o que considera um milagre concedido pela figura que enxerga como um amigo: após a namorada perder dois bebês, ela deu a luz o pequeno Mateo em 7 de setembro. Como promessa, o casal vai todos os domingos a um pequeno santuário de Gauchito Gil, também no bairro de Chacarita, em Buenos Aires.

"Agora sinto que não preciso de mais nada na vida", diz o argentino de 30 anos. A namorada Ariana o acompanha no ritual. Durante a gestação, ela acendeu velas e exibiu a barriga grávida para Gauchito. "Faça chuva, faça sol, relâmpagos, sempre encontro tempo no domingo para ir", conta Marcelo, que também fez a promessa de ir ao santuário de Gauchito Gil na província de Corrientes, antes de Mateo completar dois anos.

No altar para Gauchito ao lado da cama de casal há uma imagem do ultrassom do bebê. Pela casa, pelo carro e em seus objetos, abundam imagens do personagem argentino. Sempre que pode, Marcelo acende uma vela vermelha em casa.

"Minha crença começou há mais de 10 anos como algo muito pequeno, mas depois virou algo enorme na minha vida. Ele cumpre a função de um amigo, de um confidente, falo com ele como se fosse uma pessoa, e quando estou triste, me sinto acompanhado. Depois da gravidez, essa crença foi a melhor coisa que poderia ter acontecido comigo."

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