NADA DE AMÉM

O destino insólito das igrejas de Norwich, cidade excomungada no leste da Inglaterra

Caio Mello (texto) e Ali Karakas (fotos) Colaboração para o TAB, de Norwich (Reino Unido)

Do lado de fora, os vitrais imponentes, a torre alta e as antigas paredes de pedra enganam os olhos: você poderia jurar que está diante de uma igreja, rodeada por lápides de gente que um dia frequentou o templo na cidade de Norwich, na Inglaterra.

Entretanto, há muito tempo ali não é lugar de amém. A luz que atravessa os vitrais e os janelões da antiga igreja de St. Peter Parmentergate ilumina skates, pôsteres de esportes radicais, bonés e araras com camisetas joviais.

"Vamos levar a loja lá pra cima no altar, perto de Jesus e os camaradas dele, e abrir espaço pra pista aqui embaixo", aposta Sam Avery, 44, dono da Drug Store, a loja instalada dentro da igreja, imaginando uma pista de skate no salão principal onde crianças dos colégios da vizinhança têm aulas de educação física.

Sam, um skatista nascido nos arredores de Norwich, é do tipo conversador que oferece bebidas aos visitantes e passa um bom tempo sentado, com os pés apoiados na cadeira, contando histórias. Para o empresário, a ideia é um uso adequado a igrejas, "já que é para isso que elas servem: para comunidades", afirma.

Perto da Drug Store de Sam, a igreja St. James Pockthorpe hasteia a bandeira LGBTQIA+ no topo da torre. Nas laterais, um letreiro informa: teatro de bonecos. O templo, construído no século 12, é palco para performances com marionetes desde 1978 — um dos três endereços dedicados exclusivamente a essa arte na Inglaterra. "Pinóquio" todo ano está em cartaz.

Na St. Miles Coslany funciona o centro de treinamento de artistas de circo, que se valem da altura generosa do pé-direito do edifício para se pendurar na estrutura de quase 8 metros, montada em frente ao antigo altar.

Foi a iluminação privilegiada dos vitrais gigantes da igreja St. Etheldreda que conquistou a artista Frances Martin, 54. Ela, que nem de longe é uma cristã praticante, segundo conta, diz adorar a energia do espaço, tanto que decidiu montar seu estúdio ali. "É relaxante e me traz paz."

Essas igrejas fazem parte da NHCT (Norwich Historic Church Trust, ou Fundo das Igrejas Históricas de Norwich), organização sem fins lucrativos dedicada a preservar e a promover o uso contínuo das construções. Muitas delas sobreviveram aos séculos, mas ficaram esquecidas, abandonadas por anos.

Desde 1970, a instituição tem buscado interessados em investir nos espaços, mediante um contrato de aluguel. Os inquilinos devem cumprir uma série de requisitos. O principal deles é o interesse público, pois "igrejas são essencialmente espaços comunitários", assinala Liam Salt, secretário da NHCT.

Natural de Norwich, Christopher Tubby, 39, conta que, apesar de as igrejas estarem ao seu redor no dia a dia, elas são mais vistas como ponto de referência e encontros com os amigos — e não como templos religiosos. "Para ser honesto, eu só vou a igrejas para casamentos e funerais", afirma.

Norwich fica no condado de Norfolk, no leste da Inglaterra. É uma cidade tranquila de 200 mil habitantes. Quem vem de Londres, a 1h30 de trem dali, é obrigado a desacelerar o passo para sintonizar um ritmo lento, uma atmosfera silenciosa, tão silenciosa quanto uma igreja.

"Norwich tem uma igreja para cada fim de semana e um pub para cada dia do ano", como dizem os moradores. Hoje, é a cidade com mais igrejas medievais urbanas ao norte dos Alpes — são 73 igrejas ativas (contando todas as vertentes cristãs) e outras 31 medievais desativadas, segundo dados do condado.

Na Idade Média, a construção das igrejas foi financiada pelas elites. Na época, era uma questão de status, quase uma competição entre os ricos para ver quem construía o maior e mais belo templo, conta Sandy Heslop, professor emérito de história da arte da Universidade de East Anglia e autor do estudo "Igrejas Medievais de Norwich", que encontrou o TAB na St. Michael-et-plea, hoje uma livraria.

Sandy conta que a relação entre os cidadãos de Norwich e a Igreja Católica foi marcada por conflitos ao longo da história: em 1272, a cidade inteira foi excomungada pelo papa após um confronto entre moradores e monges que resultou no incêndio da Catedral de Norwich. O papa não gostou e proibiu batismos e casamentos na cidade. O rei Henrique 3° também impôs uma multa aos revoltados, que precisavam construir um novo acesso à catedral que até hoje está de pé, o Ethelbert Gate.

Por volta de 1330, Norwich tinha 20 mil habitantes. Com a peste negra, pandemia que se estendeu de 1347 a 1353 e provocou milhões de mortes na Europa, a cidade minguou para 10 mil moradores, o que fez com que as igrejas ficassem sem vivalma. Com o tempo, elas foram perdendo o propósito religioso e muitas foram demolidas.

Hoje, Norwich é a cidade menos religiosa do Reino Unido: de acordo com o censo de 2011, o mais recente, 42% dos habitantes se declararam não religiosos. Entre os que professam alguma fé, 44% são cristãos, 2% se dizem muçulmanos e menos de 1% são hindus, judeus e agnósticos. 9% marcaram a opção "outros" e, entre eles, 783 se disseram seguidores de Jedi (sim, de "Star Wars") e 65 se declararam fiéis do heavy metal.

Construída em 1349, a sóbria St. Swithin's Church abriga o Norwich Arts Centre, a casa de shows mais tradicional da região.

No teto resistiram esculturas de anjos, cujas asas, porém, foram arrancadas durante a Reforma Protestante, movimento que abalou a Igreja Católica na Idade Moderna. No chão, tumbas de pedra formam a pista principal, de onde o público assiste às performances no palco que já recebeu Nirvana, Oasis e Muse.

"A gente não tem restrição nenhuma ao tipo de artista que toca aqui. Apenas evitamos noites de música eletrônica com DJs porque a igreja costumava ser bastante danificada", diz o gerente Bradley Glasspoole, coordenador da casa, cuja estrutura é mantida pela NHCT, que frequentemente busca especialistas para encontrar materiais originais para os restauros. "O custo de manter um lugar desses é altíssimo e a atividade do centro prioriza atender todas as regras para preservação", acrescenta Bradley.

Embora tenham sido dessacralizados há muito tempo, há quem considere uma heresia os usos alternativos dos edifícios. "Uma vez um senhor disse que eu ia pro inferno por ter uma loja aqui", lembra Charlie Robert, 60, da loja de antiguidades All Saints, na antiga igreja de All Saints Westlegate.

O antiquário, daqueles em que qualquer pessoa poderia passar horas zanzando e fuçando entre câmeras antigas e acessórios, não agrada a todos. No inferno, Charlie não bota fé. "Em Deus eu nem acredito, nem desacredito. Estou no meio do caminho", conta. Ao homem que o interpelou, respondeu que tinha conversado com o Senhor na noite anterior e estava tudo tranquilo.

"Igrejas eram lugares horríveis, onde as pessoas eram ameaçadas de condenação o tempo todo. Isso aqui não é mais uma igreja", diz Charlie, que toda vez que abre as portas espera oferecer um lugar mais acolhedor.

Nos arredores da St. John De Sepulchre, uma placa já avisa: "um lugar para cerimônias não religiosas". Desde 2019, ali funciona The Flint Room, fundada pela fashionista Lesley Durant, 63. Ela, que imprime seu estilo colorido na casa, já trabalhou de tudo, de cuidadora de idosos a vendedora de carros. "Até que tive uma ideia. E esse lugar é minha ideia realizada", conta, animada.

"Flint", a rocha muito presente no solo da região, é a matéria-prima para cobrir as paredes dessa e da maioria das igrejas medievais de Norwich. "Espero não desapontar, mas isso aqui, definitivamente, não é uma igreja", destaca Lesley, ao abrir a gigantesca porta de madeira na entrada.

De início, ela alugou o espaço para guardar uma imensa quantidade de tralhas acumuladas para transformar em itens de decoração. Quis abrir uma casa de eventos após enfrentar a epopeia de organizar e arcar com os custos do casamento de uma de suas filhas — "neste país, se a palavra 'casamento' é mencionada, os preços logo disparam". Assim, pensou em aproveitar o espaço para abrigar eventos com tudo incluído a um preço mais acessível. Construiu do zero um bar na entrada e repaginou móveis com seu estilo vibrante.

Ao lado de um antigo órgão fica o púlpito onde os casamentos são celebrados. "Ali fica o depósito", diz Lesley, questionada sobre o que esconde por trás do painel que serve de fundo para o púlpito. "Mas tem algo mais", sinaliza.

Ao se cruzar uma pequena porta, a resposta cai do céu: no diminuto depósito está o restante das obras sacras do altar da igreja. Certa vez, um noivo de Londres visitou a casa de Lesley à procura de um lugar para seu casamento. "Isso é ultrajante!", disse ele, ao ver o que era The Flint Room. "Ultrajante é uma ótima palavra. Simplesmente adorei", lembra ela, rindo.

Lesley já realizou ali o casamento de um casal queer que teve o pedido negado na igreja que frequentavam. "As pessoas devem ser aceitas como são. Aqui, não há espaço pra preconceito", afirma, lembrando que o lema da casa é "não tenha medo de ser diferente, tenha medo de ser comum".

Às 10h de uma sexta-feira de verão, TAB participou de uma missa na Catedral Católica de São João Batista, a segunda maior da cidade, logo atrás da icônica Catedral Anglicana de Norwich.

Cerca de 50 pessoas estavam na cerimônia no edifício de estilo gótico, construído entre 1882 e 1910. A luz da manhã invadia o ambiente. Era dia de ler o evangelho de Mateus, capítulo 10, versículo 16, onde Jesus, voltando-se aos discípulos, diz: "Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos".

Em Norwich, a frase parece ganhar um sentido mais amplo pelo equilibrado número entre cristãos e "pagãos". Mas há quem discorde das estatísticas. Tom, frequentador da igreja St. Alban's que não quis informar o sobrenome, não crê nos números que alçam a cidade à condição de menos religiosa do Reino Unido.

Ele conta que certa vez saiu para evangelizar nas ruas da cidade e converteu mais de 200 pessoas ao cristianismo num só dia. A St. Alban's fica num edifício anglicano, mas, segundo o missionário, é não denominacional — não há uma instituição por trás da fé. Na entrada, no hall principal, encontra-se o café The Sanctuary, onde Tom trabalha.

"As pessoas não são religiosas aqui. Existe até um pouco de preconceito", comenta o educador Fábio dos Santos, 41, paulista que vive há mais de dez anos na cidade, onde dá aulas para crianças e adolescentes de 11 a 18 anos.

Uma das disciplinas que já ministrou, acrescenta, aborda cristianismo, islamismo e hinduísmo, mas foca apenas nos aspectos culturais e não teológicos das religiões. No dia a dia, tampouco é comum usar palavras de cunho religioso. Quando estiver em Norwich, não precisa dizer "Graças a Deus".

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