NA PELE INDÍGENA

Um tatuador escolhe abandonar a cidade e viver com os Guarani Mbya no Pico do Jaraguá, em São Paulo

Letícia Naísa (texto) e Caio Guatelli (fotos) Caio Guatelli/UOL

Daniel Santos, quando criança, vivia admirando a vista do Pico do Jaraguá pela janela. Curioso, perguntava o que teria ali no meio daquele mato. Olhava e achava fascinante. Diziam que o lugar era protegido por indígenas.

Hoje, aos 35 anos de idade, Daniel vê da janela de casa um muro vazio. É sua vista sagrada. Há tempos fica namorando a parede, pensando no que pode pintar ali. Além do muro, que limita o espaço de uma cozinha comunitária, ele observa a casa de reza.

O Daniel adulto vive no mesmo Pico do Jaraguá que admirava quando criança, em Barueri, cidade onde cresceu. Há dois anos e meio, ele deixou tudo para trás, fechou seu estúdio de tatuagem e foi viver com os indígenas da etnia Guarani Mbya na parte de trás do pico. Ita, em guarani, significa pedra, e kupe, costas. Daniel deu as costas para a selva de pedra e recomeçou sua vida na Tekoa Itakupe.

A aldeia é uma das menores entre as seis que circundam o ponto mais alto da cidade de São Paulo, um dos últimos locais onde resiste um naco de Mata Atlântica. A missão de seus habitantes é preservar o que resta do bioma e impedir a devastação. Daniel decidiu mudar radicalmente para lutar ao lado dos indígenas.

"Levanta que você vai receber seu nome." Naquele dia, na aldeia, o tatuador soube que Nhanderu (Deus) lhe chamava de Werapoty (pronuncia-se uerapotã).

Tudo foi meio de supetão. Daniel já frequentava a terra indígena no Pico do Jaraguá e tinha sido convidado para um casamento. A festa estava marcada para um domingo, mas o tatuador confundiu a data e apareceu no sábado — naquela dia, haveria uma cerimônia de batismo das crianças Guarani Mbya e ele ficou para assistir.

Com a voz abafada pelo som da chuva fina batendo no teto, Daniel contou à reportagem do TAB que o mensageiro foi o atual cacique, Matheus. "Eles rezaram e sentiram. Acabei me entregando", relatou, levemente emocionado.

Como muitos brasileiros, Daniel não conheceu seu pai. Tudo que sabe sobre ele são histórias que, com relutância, sua mãe, Dirce, lhe contou. Ela dizia que sua avó paterna tinha cabelo liso, poderia ser "meio indígena". Ele se classifica como mestiço: tem origem africana — está estampada em sua pele — e algum ancestral indígena. O fenótipo dos povos originários se perdeu ao longo do tempo, mas Daniel sabe de onde vem seu espírito.

Aos poucos, o inhanderecó (modo de viver dos indígenas) tem entrado em sua vida. Werapoty está aprendendo a falar guarani: consegue compreender e reproduzir muitas palavras, mas ainda não é fluente. Seus professores, muitas vezes, são as crianças. Ele, que ainda não é pai, tem a casa sempre cheia de filhos da aldeia. No útero de sua mulher, cresce seu primeiro filho biológico.

Enquanto conversava timidamente com a reportagem, Lucas Augusto, 20, arava a terra e colhia batata-doce do chão, batendo a enxada no solo de forma ritmada. O trabalho toma todo o tempo dos jovens da aldeia. Além do manejo da terra, eles constroem e reparam casas quando é preciso, e atendem todas as necessidades da comunidade.

Como todo jovem do século 21, no entanto, Lucas tem celular e gosta de jogar "Free Fire". Também gosta de festas (não só das tradicionais de seu povo). Não como tantos outros jovens, Lucas já é pai de duas crianças e é casado há quatro anos com Mônica, indígena como ele. Ele é um dos filhos de Geni Para Yry, ex-cacica da Tekoa Itakupe. Na aldeia, todos chamam Geni de mãe, então é difícil para juruás (não indígenas) diferenciarem quem é filho biológico de quem não é.

Na semana anterior à visita de TAB, Geni passou o bastão para Matheus, aquele que batizou Werapoty. Conseguiu tirar férias, brinca Geni. Ela saiu da liderança, mas a liderança não saiu dela, comentam os amigos próximos.

Sentada confortavelmente no sofá para nos receber, ela diz que acordou se sentindo um pouco doente. É quase meio-dia e a casa já cheira a comida. Seu marido comanda as panelas enquanto ela conversa. Como todas as casas da aldeia, a de Geni tem chão de terra batida e um entra-e-sai constante de crianças e cachorros.

A colheita e o plantio são os principais referenciais da passagem do tempo. Por isso, Geni não sabe precisar por quanto tempo foi cacica. Assumiu entre 2016 e 2017. O sistema de escolha do próximo líder é horizontal: toda a comunidade deve entrar em consenso. Mesmo assim, existe politicagem, uma das coisas que mais a desgastava. Ser cacica, diz Geni, é igual a ser prefeita. Seu papel é organizar limpeza e retirada de lixo, montar cronograma de plantio e rituais e controlar entrada e saída de estranhos. É preciso governar para todos.

No inhanderecó, as percepções sobre dinheiro, rotina e tempo são completamente diferentes daquelas de quem vive na cidade. Dinas Miguel, artista que nos guiou pelo local e um dos idealizadores do projeto Aldeia 360, tinha avisado antes de marcarmos a visita que o tempo ali era diferente.

"Ainda estou me adaptando", confessa Werapoty. "Nossa rotina é conforme Nhanderu permite." Antes de ser Werapoty, Daniel foi office-boy, motoboy, bartender e firmou-se em São Paulo como tatuador. Carrega em seu corpo o mesmo número de tatuagens que tem em anos de vida.

Sua favorita é a frase "Close your eyes and look deep in your soul" (Feche os olhos e olhe profundamente sua alma, em tradução livre), de uma música da banda Slayer. Quando Daniel abre os braços, feito Jesus na cruz, as palavras ficam evidentes.

Desenhar lhe era natural desde pequeno. Aos 14, começou a rabiscar sua primeira tatuagem, feita aos 16. Aos 20, passou a frequentar um estúdio para aprender o ofício. De dia, se dedicava à tatuagem — usava os amigos e sua própria pele de cobaia. "Tinha uns doidos que topavam me deixar fazer", brinca. De noite, trabalhava em um bar.

Em meados dos anos 2000, fez parte da Mancha Verde, a torcida organizada do Palmeiras. Ali, conheceu outro tatuador. Foi quando se profissionalizou. Dividiu o aluguel de uma sala na zona oeste com outro amigo e começou a tatuar pra valer. O negócio desandou quando a esposa do amigo, que assinou o contrato de aluguel, quis a chave do espaço de volta depois da separação.

Na época da torcida, começou a questionar suas origens e a se afirmar como indígena. "Começou a dar briga, as pessoas se incomodavam", relembra. Ali, viu a violência da torcida. Foi isso que o impulsionou a se aproximar dos povos do Pico. "É uma ligação de espírito", explica. Foi há seis anos que ele começou a se desprender da cidade e buscar sua verdadeira identidade.

Para viver na aldeia, Daniel deixou muita coisa para trás, mas em 2020, montou mais um estúdio, chamado Estúdio 7, dessa vez ali na mata, anexo à casa onde mora. O espaço é decorado com telas que também representam momentos de sua vida, igual às tatuagens. Uma delas está em construção. É seu filho sendo gestado ainda no útero. Werapoty quer terminá-la quando a criança nascer.

Desde que inaugurou o espaço, tatuou alguns indígenas. Para a família da aldeia, Werapoty dá as tatuagens de presente. Para os juruás, cobra um valor simbólico.

Apesar de não pagar aluguel, precisa manter a geladeira cheia para as crianças e um trocado para ajudar a comunidade. "Meu ganha-pão é Nhanderu que decide", diz. "Não tenho mais o que eu quero, tenho o que eu preciso", afirma. Werapoty reza todos os dias e pede para Nhanderu não deixar faltar nada para ele e sua família da aldeia. "Quando a gente precisa, Nhanderu traz."

O dinheiro virou uma necessidade quando a mata passou a ser devastada. Não fosse o desmatamento, haveria peixes suficientes nos lagos, espaço para caçar e terras férteis suficientes para plantar. Naquele pedaço de mata, muito ainda se planta, mas a comunidade não é de subsistência. Precisa de recursos para se alimentar e depende de doações. Muitos vivem da arte e do artesanato.

Com a pandemia, os eventos organizados para turistas e visitas guiadas pelas trilhas cessaram. Na Tekoa Itakupe, houve 11 casos de covid-19, nenhum deles grave. Como as casas são afastadas umas das outras, o distanciamento social não foi difícil de adotar. Nós, os visitantes de fora, éramos os únicos que usavam máscaras. Todos os membros das aldeias já foram vacinados. Por ali, é quase como se a pandemia não existisse. Quando estávamos partindo, o sol se abria nos arredores da casa de Werapoty. Assim como a Mata Atlântica, aquele povo resiste, faça chuva ou faça sol.

Desde que foi morar na aldeia, Daniel não marca sua pele. Sua última tatuagem foi um símbolo merkabah na cabeça, invisível por causa do cabelo que cresceu. O desenho cabalístico marcou exatamente como estava a cabeça de Daniel naquele momento: em busca de uma conexão.

Pergunto a ele se não dói tatuar a cabeça e ele diz que não. "A dor está na cabeça", responde, apontando para a própria. "Assim como o frio. Não estou com frio, é psicológico. Para pra pensar, os indígenas viviam sem roupa e viviam bem. Existe um preparo xondaro (guerreiro) que ensina isso", conta.

Mesmo com uma temperatura amena no dia da visita, Werapoty vestia apenas camiseta e bermuda e estava descalço, com os pés em contato com o chão de terra batida, enquanto eu vestia um casaco sobre uma blusa de manga longa, calça jeans e tênis, em total contraste.

A "reprogramação" é um processo demorado. Dói, é difícil, e é diário. Às vezes, ele pensa em recomeçar mais uma vez, mas encontra forças em Nhanderu e nos ensinamentos dos guerreiros indígenas. "Entro na casa de reza e sinto que não é hora. Esse lugar é sobre resistência. Eles estão resistindo e estão nos ensinando a resistir, então tenho que aprender com eles."

Cario Guatelli/UOL Cario Guatelli/UOL
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