OS NOVOS PORNÓGRAFOS

Como as redes sociais e o smartphone criaram uma nova era de produção pornográfica na internet

Marie Declercq (texto) e Carine Wallauer (fotos)

Mel Yasmin Freitas descobriu logo cedo que encontraria muita porta fechada na vida. Ainda adolescente, morando em Fortaleza, começou sua transição de gênero. Era um sonho, mas com ele veio o estigma. A transfobia sofrida na escola a fez abandonar o ensino médio. O jeito foi trabalhar logo cedo.

A recepcionista de hotel mal tinha completado 18 anos quando recebeu uma proposta pelo Instagram. Um desconhecido ofereceu R$ 100 por 25 fotos sensuais. Até então, Freitas nunca ouviu falar em pack de nudes ou qualquer coisa do gênero. Tirou as fotos com seu celular de câmera de baixa resolução, sem entender muito bem como deveria fazer. Fez. Mandou. Em menos de uma hora, o dinheiro estava na conta. Para ela, era uma fortuna. "Em minutos, ganhei uma quantia que meu pai, que vive de salário mínimo, demoraria muito mais para conseguir", relembra.

Foi assim que a jovem percebeu a chance de ganhar dinheiro e sair do salário mínimo. Ela passou a pesquisar perfis de garotas que vendiam conteúdo sensual e notou a ausência de mulheres trans na área. Aos poucos, a jovem de 19 anos foi se profissionalizando. Investiu em luz, um celular melhor e roupas mais elaboradas. Também migrou das fotos sensuais para conteúdos mais pornográficos. Também resolveu se mudar da sua cidade natal para a capital de São Paulo.

Em pouco mais de um ano, Mel conseguiu alugar um apartamento na região central de São Paulo, bancar-se sozinha e até mandar dinheiro para a família no Ceará. Não é um trabalho empoderador nem glamouroso, como ela mesma gosta de esclarecer, mas foi uma forma eficiente de hackear os estigmas da sociedade em relação às transexuais.

"A sociedade quer que as mulheres trans façam programa na rua ou fiquem lavando cabelo de madame no salão", critica. "Se você não estiver fazendo uma dessas duas coisas, vivendo só com o básico, sempre à mercê da morte e da violência, vai causar indignação."

PACK DE NUDES

A história de Mel é apenas uma dentre milhares de brasileiras, em sua maioria mulheres, que se sustentam produzindo pornografia de forma independente, sem vínculo com produtoras de filmes adultos.

Há várias formas de vender fotos ou vídeos eróticos. Alguns produtores vendem em troca de uma assinatura mensal em plataformas específicas. E quando as transações não ocorrem em sites, não é incomum que o negócio seja feito por mensagem direta de Twitter ou via WhatsApp ou Telegram. Para muitos desses produtores, a invenção do Pix democratizou ainda mais a transação.

O pornô independente apenas acompanha o que se vê acontecer no ramo do entretenimento, qualquer que seja: influenciadores digitais falam para a câmera, mostram fragmentos da intimidade nas redes sociais e se dirigem diretamente aos seguidores. Antes, os "amadores" eram vistos como produtores de nicho. Hoje a estética da exclusividade e da intimidade sobrepujou a pornografia tradicional.

Foi assim que o OnlyFans adentrou a cultura pop. Criado em 2016 como site de venda de conteúdos diversos, a plataforma britânica virou a feira digital moderna para ver e comprar foto de gente pelada — e não apenas entre os anônimos. Até celebridades do calibre de Anitta postam conteúdo sensual na plataforma.

Com a pandemia, o tráfego do OnlyFans explodiu, tanto por parte de quem quer vender conteúdo quanto por quem busca consumir, movido pela solidão do isolamento social. Em 12 meses, o número de usuários sextuplicou: foi de 20 milhões para mais de 120 milhões. Só em 2020, mais de US$ 2 bilhões foram movimentados na plataforma. A empresa come uma fatia de 20% de todas as assinaturas e transações do site — valor baixo, se comparado a sites de webcam, que cobram entre 40% e 60%.

DUPLA JORNADA

Os vendedores de conteúdo adulto não possuem um perfil único, apesar de grande parte ser do gênero feminino. No caso de Letícia Sanseverini, 33, publicitária, a decisão de vender nudes começou com um golpe. Em 2017, ela quis mandar um ensaio erótico para o site Suicide Girls, conhecido pelo elenco de modelos "alternativas".

Na época, era comum que modelos do site recrutassem novatas em troca de uma comissão. Pensando estar falando com uma, Sanseverini enviou fotos nuas como "teste". Logo descobriu que tinha enviado material para um homem que aplicava golpes em outras garotas.

Sabendo que "cairia na net" a qualquer momento, não foi difícil resolver abrir uma conta no OnlyFans anos depois. "Pelo menos agora eu cobro", conta, rindo. A publicitária também sabia que teria pessoas dispostas a pagar por suas fotos. "Estou na internet há muito tempo, sou um pouco conhecida. Já sabia que teria público garantido."

Ao contrário de Mel Freitas, Sanseverini não depende da venda de conteúdo para se sustentar, mas a renda extra compensa. Ela conseguiu se planejar melhor financeiramente, trocar de celular e até comprar um jogo de jantar, seu sonho de consumo.

SE NÃO TRABALHA, NÃO GANHA

Todos os criadores de conteúdo erótico ouvidos pelo TAB possuem metas, estilos e opiniões divergentes sobre vender conteúdo, mas são unânimes em dizer: não é um trabalho fácil.

Expectativa de dinheiro rápido, horários flexíveis e histórias de sucesso lembram o canto de sereia que seduz motoristas e entregadores de aplicativo a dedicarem sua força de trabalho ao enriquecimento de empresas de tecnologia, mas essa solução salvadora está longe de ser real.

Nas redes sociais, Mel é incisiva ao lembrar seguidores que não se limita a tirar fotos no quarto. "Parece bobo, mas não é", adverte. Para lucrar, é preciso adotar um conceito neoliberal: tornar-se a própria empresa, ser seu próprio produto.

Além de lidar com a concorrência, um criador precisa administrar redes sociais, falar com clientes, investir em equipamentos de qualidade e produzir tudo que deseje vender. "Todo tempo que tô acordada, eu tô trabalhando", conta Freitas, que relata momentos de exaustão mental e psicológica devido à carga de trabalho.

Quando se está atrelado ao OnlyFans, sem uma base fiel de clientes, pode levar semanas, até meses, para receber algum pagamento da plataforma. Com o valor mínimo de US$ 4,99 (R$ 25,15) pela assinatura mensal, a empresa só libera as transferências para a conta bancária do criador depois que uma quantia mínima é acumulada.

Visto que a carga de trabalho é muito maior que a de um emprego em regime de CLT, muita gente que começa a trabalhar se assusta com o nível de dedicação e talento que a venda de conteúdo pornográfico exige. "Quem fala que é exploração é porque descobriu que não é tão simples como julgavam ser", diz Mel.

TRADICIONAL PAGA MENOS

Mesmo com o boom da venda direta de conteúdo erótico, a pornografia tradicional está ainda na ativa e concorrendo quase que diretamente com essa modalidade de pornô. Ainda é alto o tráfego de usuários em sites de streaming, e produtoras pornô do mundo inteiro seguem gravando suas cenas.

Ser independente, no entanto, é cada vez mais rentável entre quem já trabalhava com isso. Na pequena indústria brasileira, de regulamentação quase inexistente, a possibilidade de fazer filmes para ficar rico já deixou de ser um sonho há mais de uma década. Gravar cenas com produtoras conhecidas serve mais como vitrine para performers aumentarem o cachê de outros trabalhos sexualis.

Vender vídeos e fotos exclusivas no OnlyFans salvou o ator Lucas Scudellari, 26. Com gravações suspensas e a impossibilidade de fazer programas, Scudellari usou a base de fãs que conquistou com o pornô gay e investiu tudo no digital.

Apesar de ainda gravar com produtoras, Scudellari sente que o cachê pago é menor que a rentabilidade de um vídeo no OnlyFans. "Com um único conteúdo amador, já cheguei a ganhar de três a quatro vezes mais do que com uma cena. Também sente que está mais no controle quando produz suas próprias cenas. "Faço o que eu quero e exploro até mais fetiches."

CONSUMO CONSCIENTE

A pirataria ajudou a naturalizar a ideia de que não faz sentido pagar por algo que pode ser encontrado no XVideos. As pessoas tendem a achar que quem paga pelo que consome é, em português claro, otário.

Mas a proximidade entre consumidor e produtor tornou menos abstrata a transação financeira. Em vez de pagar para uma produtora que você mal conhece, você está comprando diretamente de quem produz. Segundo consumidores ouvidos pelo TAB, pagar mensalmente pelo acesso é mais satisfatório do que passar horas vasculhando pornografia gratuita atrás de alguma coisa que chame atenção.

Na opinião de Cristiano*, 33, pesquisador em administração pública, o conteúdo que assina no OnlyFans não é tão superior ao que se consegue encontrar de graça em sites de streaming, mas há outras vantagens.

"[O conteúdo tem] potencial de ser produzido de maneira mais ética que na indústria tradicional, sobretudo porque no sexo a gente mexe com fantasias que muitas vezes passam por dominação, submissão e outras coisas que, acho, precisam ser produzidas com muito cuidado."

PEDAÇO DE CARNE

Na produção de conteúdo pornô, as promessas de "ser seu próprio chefe" e a dependência de plataformas digitais, que estimulam a concorrência entre criadores, são abstratas. Mesmo com a liberdade de produzir pornografia de forma autônoma e de ter mais controle sobre o que está fazendo, a rotina de trabalho sem hora para acabar e o estigma que vem de fora desse universo recaíram forte sobre Mel Yasmin Freitas.

Semanas após a entrevista, a jovem avisou que a venda de seus conteúdos tem data de validade. Depois de meses de trabalho interminável, vazamentos constantes e a forma com que é tratada a fizeram repensar.

"São 24 horas sendo vista como um pedaço de carne. Tive até problemas para alugar uma casa, porque assim que falava minha profissão, as pessoas achavam que eu ia fazer programa. Está me esgotando muito, mental e fisicamente."

Ela pretende parar de vez até o fim do ano e se dedicar à sua marca de roupas, que deu mais certo do que imaginava. "Prefiro ganhar menos com um negócio saudável para minha cabeça do que trabalhar nisso." Apesar da exaustão, Freitas diz não ter arrependimentos. "Foi o que me fez mudar de vida."

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