NUDEZ DE CORPO E ALMA

No onsen, as águas termais no Japão, toma-se banho nu naturalmente ao lado de conhecidos e desconhecidos

Roberto Maxwell (texto) e Carlos Kato (foto) Colaboração para o TAB, de Kusatsu (Japão)

Às 4h40 de uma manhã de junho, início do verão japonês, o sol já nasceu entre as montanhas de Kusatsu, a cerca de 180 km de Tóquio. Num hotelzinho barato na província de Gunma, é possível contemplar os raios do sol alaranjado por entre as folhas das árvores e um quê diferente no ar. O odor é de enxofre, um dos elementos presentes nas águas que jorram das várias fontes termais da cidade.

Entre as pedras há uma pequena piscina a céu aberto. Fora, fazia 14°C; dentro, a água beirava os 40°C. Entro aos poucos, recosto o corpo nas pedras, com água quente até os ombros. Fecho os olhos e é como se estivesse envolvido em uma manta.

De repente entra um senhor japonês idoso e muito bem disposto. "Bom dia", diz, sentando-se lentamente ao meu lado. Conversa vai, conversa vem, ele me pergunta de onde eu sou. "Do Brasil", digo. O senhor então começa a lembrar do recente amistoso Brasil-Japão, diz que gosta muito de futebol e ficou feliz pelo fato de o Japão ter pedido apenas de 1 a 0. Estávamos nus.

"Hadaka-no-tsukiai" é uma expressão em japonês que define esses momentos. Quer dizer "amizade pelada". Significa uma relação honesta, sem coisas a serem escondidas. O termo vem justamente dos banhos coletivos nas águas termais, os onsens, que os japoneses historicamente compartilham assim, como vieram ao mundo.

No Brasil, banho coletivo é comum em praias e piscinas, mas subentende-se sempre o uso de uma peça de roupa, por menor que ela seja. No Japão, no contexto do onsen, a nudez é encarada com muita naturalidade.

"As águas termais estão muito próximas do cotidiano dos japoneses", conta a jornalista japonesa Miyuki Uetake, especializada em onsen — palavra, aliás, usada para se referir tanto aos banhos de águas termais quanto às fontes.

Há onsens em casas de banho, hotéis e ryokans, as pousadas japonesas. As melhores casas costumam ter pelo menos um banho interno e um ao ar livre. Kusatsu tem casas reservadas apenas aos moradores e outras comunais e abertas para todos, onde a entrada custa entre 600 e 1.000 ienes (R$ 23 a R$ 38). Também há um banho a céu aberto público num pequeno vale com acolhedores "ashiyu", escalda-pés de uso gratuito onde se pode relaxar ao som do canto dos pássaros e com o verde exuberante dos arredores (ou a neve no inverno).

Num onsen há três áreas: o vestiário, a ducha e os ofurôs. A maioria é separada por sexo, mas ainda há, até hoje, os mistos. Deixam-se os sapatos para trás na entrada — um ato de higiene cuja eficácia ficou bem clara quando visitei uma casa de banhos na Itália onde era impossível pisar descalço no chão de um vestiário todo emporcalhado.

Passada a entrada, despe-se totalmente nos vestiários, deixando roupas e demais pertences em armários trancados com uma chave atrelada a uma espécie de pulseira. Do vestiário só se leva uma pequena toalha, que costuma ser usada para tapar as partes pudendas, por quem assim desejar, ou para deixar o corpo mais enxuto quando se volta ao vestiário para ir embora.

Antes de entrar nas águas termais é preciso tomar um bom "banho de caneca" para tirar o suor e a sujeira do corpo. Senta-se num banquinho de madeira ou de plástico (japoneses costumam tomar banho sentados) e, de frente para um espelho, faz-se essa primeira limpeza, tida como um ato de higiene e de respeito com os outros.

Só depois se entra no onsen. Essa é uma das regras de etiqueta para a experiência — normas não ditas entre japoneses, embora haja hotéis com cartazes com orientações em inglês para quem tiver dúvidas. Dentro da água não se pode pular, nadar ou molhar ou torcer a toalhinha, que deve ficar na borda do ofurô ou na cabeça. A ideia é entrar com calma e escolher um lugarzinho tranquilo para ficar ali crocodilando.

"O onsen não é um espaço individual", lembra Uetake. "Por ser compartilhado, é preciso usar o banho de um modo que não seja desconfortável para os outros."

Há quem tome um banho-banho antes de entrar no ofurô, o combo completo com sabonete líquido, shampoo e condicionador, mas a melhor hora para isso (e para fazer a barba e se depilar com gilete ao lado de conhecidos e desconhecidos) é depois da imersão nas águas termais, quando os poros estão mais abertos.

Não há restrição de tempo para ficar no onsen, mas, apesar de tentadora, não é boa ideia ficar dentro do ofurô por longos períodos: é melhor entrar por uns cinco minutos, sair um pouco para deixar a pele respirar e a temperatura do corpo equilibrar, aí entrar de novo.

Enquanto a nudez não incomoda os japoneses no onsen, tatuagens não são lá muito bem-vindas até hoje, pois os desenhos no corpo são associados à máfia japonesa.

É uma discriminação arcaica, mas amparada por um fundo legal ainda atual: estabelecimentos que atendem criminosos podem ser penalizados. Com o aumento do turismo nas últimas décadas, alguns onsens passaram a permitir pessoas tatuadas, mas a maioria ou proíbe ou pede para que as tatuagens sejam cobertas por fitas adesivas e afins. Kusatsu, uma cidade de cerca de 6.000 habitantes, recebe cerca de 3 milhões de turistas por ano e só tem um único banho público que recebe pessoas tatuadas, o Ohtaki no Yu.

O Japão está num encontro de quatro placas tectônicas, pequenas bombas-relógio que liberam energia em diferentes proporções. Essas pedras às vezes se trombam, às vezes se afastam. É dessa dança que surgem terremotos, vulcões e, direta ou indiretamente, as águas termais. Mais precisamente, 30 mil fontes, espalhadas por 2.971 localidades japonesas — nenhum outro país chega perto: a gigantesca China, na vice-liderança, tem cerca de 3.000 fontes em uma área 25 vezes maior que o arquipélago.

Registros de banhos com águas termais aparecem desde o Kojiki, considerado o mais antigo livro histórico do Japão, publicado em 712. Entre eles, há histórias que envolvem guerreiros feridos no campo de batalha. "No passado, quando não se fabricavam antissépticos, as águas termais eram usadas para desinfetar machucados, por exemplo", explica Uetake.

No budismo, religião que acabou sendo adotada por muitos samurais, as águas termais faziam parte dos rituais de purificação. Era uma forma de curar as feridas do corpo e da alma.

Casas de banho eram populares apenas entre nobres, mesmo quando não eram usadas águas aquecidas naturalmente. Eles organizavam eventos em que os banhos eram uma atração e a nobreza fazia caridade com as águas termais: no século 8, por exemplo, a imperatriz Komyo banhava os pobres e desafortunados na antiga capital, Nara.

Devido ao potencial terapêutico das águas, a imersão ainda é muito comum entre os japoneses, conhecidos pelas longas e exaustivas jornadas de trabalho. "Muita gente entra na banheira todos os dias. Atualmente, tem gente que é muito ocupada e acaba tomando apenas uma chuveirada, mas a maioria tem ofurô em casa e o usa para aliviar o cansaço", conta Uetake.

Como as banheiras das residências costumam ser muito pequenas, muitos sentem necessidade de um banho de imersão completo e, por isso, vão a banhos públicos (com água aquecida artificialmente) ou aos onsens, ocasionalmente.

No centro de Kusatsu, as pousadas ficam no entorno do Yubatake, uma imensa estrutura de canaletas de madeira, construída em 1975, que conduz as águas da maior das fontes da cidade até uma queda de cerca de 3 metros de altura. A estrutura serve para resfriar a água que sai da fonte a mais de 50°C, que dali é canalizada diretamente para hotéis e pousadas.

Antes do Yubatake, no entanto, a resfriagem era feita manualmente por mulheres — era tida como um trabalho doméstico atribuído a elas. Utilizando tábuas de madeira e entoando cantigas laborais que enalteciam as belezas da cidade e dos onsen, elas movimentavam a água dos banhos até que ficassem na temperatura "ideal" de cerca de 40°C. O serviço era chamado de "yumomi" e, para manter viva a memória da prática, o Kusatsu Onsen aproveitou o espaço de um antigo banho termal para organizar performances para turistas.

"No Japão, os onsens não são apenas águas que jorram da terra. Os japoneses imprimiram valores culturais a elas. Isso só existe aqui", considera a jornalista japonesa Mayumi Yamazaki, famosa no arquipélago pela especialização no assunto — onsens são tão importantes para o país, cultural e economicamente, que há dezenas de publicações impressas e centenas de websites dedicados ao tema; há até cursos para "sommeliers de onsen".

Em seu livro mais recente, Yamazaki aborda tradições do ryokan, inclusive as "okami", mulheres que cuidam do serviço de quarto desses empreendimentos. O café da manhã é servido entre 7h e 9h; o jantar, entre 18h e 19h; o momento perfeito para o banho é antes do desjejum e à noite, depois do jantar.

Inaugurado no século 19, o Yamamotokan é uma dessas hospedarias tradicionais, em frente ao Yubatake. As águas quase leitosas se destacam no revestimento em madeira do ofurô compartilhado, que fica no subterrâneo da construção de três andares, tombada como patrimônio cultural pelo governo japonês na década de 1930.

Natural da província de Niigata, uma das mais frias do Japão, Yamazaki cresceu visitando banhos de águas termais com os pais e os avós. A mãe vinha tentando engravidar sem sucesso até que foi orientada a visitar um banho quente conhecido por ser "kodakara no yu", um "facilitador" da gestação.

"Depois da visita, minha mãe engravidou de mim", conta a jornalista de 51 anos. Filhos gerados assim são chamados de "onsen no moshiko", ou seja, crianças que foram "dádivas" dos onsens. Daí surgiu a inspiração para seu trabalho de informação acerca dos banhos termais, uma forma de gratidão.

A autora perdeu o pai há pouco tempo e mora distante da mãe. Sempre que pode, viaja à terra natal para visitá-la, quando aproveitam a oportunidade para ir a um onsen juntas. "Nuas, entramos na água relaxante e conversamos sobre nossas vidas. Agora, minha mãe mora sozinha e ainda está com o coração machucado. No onsen, ela fala do papai, fala do futuro. Ali conseguimos ter conversas sinceras, sem segredos", diz.

Meus olhos se enchem d'água. Lembro das inúmeras vezes em que encontrei num onsen amigos rindo juntos, o pai banhando cuidadosamente o filho com deficiência, a pessoa sozinha que solta um longo suspiro ao submergir o corpo na água quente, o idoso que puxa assunto com um estrangeiro desconhecido (eu). Nus, todos são iguais e buscam um banho que sirva não somente para lavar o corpo, mas a alma.

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