Os últimos vaqueiros

As comitivas pantaneiras somem junto com a paisagem devastada pelas secas, incêndios e desmates

A água manda e desmanda no Pantanal. Na cheia, vira um mar sertanejo, que espelha o céu e deixa os bichos e os homens ilhados. Na vazante, os rios voltam para suas calhas, e a pastagem natural se oferece para a boiada. Mas outra mudança está acabando com essa soberania líquida. A maior planície inundável do mundo perdeu 30% de sua superfície alagada nos últimos 30 anos. As secas e incêndios em 2020 e 2021 escancararam a situação. A pecuária tradicional, com os comissários tocando boi há mais de dois séculos pelos charcos, está sendo substituída pela criação intensiva para exportação, com gado confinado comendo ração de soja e milho.

"Antes era o boi que puxava o carro, agora é o carro que puxa o boi. De moleque, eu caía nesse mundão guiando boi cargueiro pra levar mercadoria pro povo no meio da água. Não tinha rodovia transpantaneira, não. Fui um pouquinho na escola, mas minhas férias eram no lombo de um cavalo. Aos oito anos, acompanhei a tropa do meu avô e do meu pai até o Sararé [em Mato Grosso]. Hoje, tenho 60 anos e não sei se meu filho vai seguir. Aqui na região não tem mais comissário de comitiva. Os jovens não querem a responsabilidade de andar pelo estradão com um milhão de reais em cabeça de gado. O Pantanal não vai voltar ao que era. Está acabando, como a gente."
Depoimento de Ezequiel da Silva Campos, o Gil Maravilha, comissário de comitivas de bois

Desde 1740, colonos portugueses introduziram a pecuária no Pantanal. Ao longo das gerações, as raças europeias se adaptaram ao clima e aos banhados, desenvolvendo o boi tucura e o cavalo pantaneiro, criados na região que é um mosaico de três biomas nacionais: o Cerrado, a Floresta Amazônica e a Mata Atlântica. A boiada se alimentava dos pastos silvestres e bebia a água levemente salgada da área. Mas tudo mudou a partir da década de 1970, quando o governo militar deu incentivos para a ocupação do Centro-Oeste, alastrando o desmatamento até o Pantanal. Pelo porte maior, os zebus foram ganhando espaço na pecuária local. As fazendas foram automatizando o transporte do gado, embarcado nos caminhões.

"Boi bravo fica olhando por cima dos outros, cabeça alta. Não está acostumado com a gente e sai correndo. Não é grito nem laço que resolve. É jeito. A pega é de madrugada. 'Arrudeia', conversa com os bois. Dependendo da precisão, a gente dorme no meio do mato. Quando clareia o dia, a gente entra no meio dos fujões. Acomoda bem, aparta e dá uma disciplinada. Ele já volta com a cara baixa e vai pra junto da boiada. Se não fizer isso de saída, o gado fica ligeiro e escapa no meio da comitiva. O mais difícil são as travessias de rio. Você precisa avisar o canoeiro pra ele montar a equipe dele. Não tem mais essa história de boi de piranha. A gente só atravessa se o cardume já passou. Se perder uma cabeça, quem paga é a gente."

Na comitiva, o berrante fica com o ponteiro, bem lá na frente da boiada. Berranteiro bom sabe mais de 20 toques. Avisa até quando tem enxame de abelha na estrada. Os fiadores ficam olhando o ponteiro e próximos aos bois. Os meeiros cuidam do meio para trás. Já o condutor fica na culatra. Esse, em geral, é o comissário, dono da tropa de cavalos, das ferramentas dos peões e até das tralhas do cozinheiro. O primeiro a acordar e o último a dormir nas comitivas é o cozinheiro. Ele sai primeiro, com três burricos. Em um vai ele. Nos outros dois, os mantimentos e as panelas. Quem acha que o rancho é só feijão tropeiro está enganado. Até macarrão à bolonhesa ele faz — afinal, tem viagem de mais de três meses.

"Uma vidente daqui, a Doninha do Caeté [1919-1974], teve visões que o Pantanal ia secar. Depois falou que 'ia ter muito dinheiro, mas não ter o que comprar'. Outra frase dela foi que ia ter 'muito pasto, mas pouco rasto', que os bois iam sumir do Pantanal. E não é que está virando verdade? A gente imagina tudo para melhor, né? Mas ficou pior. Rio aqui é cerca que divide propriedade, mas secou tudo, e os bois vão de um lado pro outro. Antes era uma fartura de água. A água limpava tudo, trazia vida. Hoje, tudo está queimado e sujo. E tem as hidrelétricas, que cortaram o forte da água. Desse jeito, daqui uns cinco anos, vai ficar só a lembrança das comitivas, como história antiga de contar pros outros."

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