SORTE OU REVÉS

Pachinko, casa de jogo que já foi controlada pela Yakuza, atrai apostadores brasileiros no Japão

Juliana Sayuri (texto) e Rodrigo Sicuro (fotos) Colaboração para o TAB, de Toyohashi (Japão) Rodrigo Sicuro/UOL

Todo domingo, por volta das 9h, senhores grisalhos se enfileiram diante de uma construção marfim de pé-direito alto em uma esquina nos arredores do porto de Toyohashi, na província japonesa de Aichi. Não fossem as bandeirinhas coloridas e o letreiro luminoso com a palavra "pachinko", o endereço passaria por um majestoso templo com fiéis à espera da missa dominical no Brasil.

"Pachinko" é um jogo presente em todo o território japonês — é o equivalente aos cassinos em outros países, mas com dois modelos de máquinas: o próprio pachinko, um tipo de fliperama vertical, e o "pachislot", uma máquina caça-níqueis.

A casa Ohta, no porto, abriu às 9h. Às 11h15 do sábado de Halloween, no fim de outubro, cerca de 150 das 293 máquinas já estavam ocupadas por apostadores, entre engravatados, operários e idosos que piscaram por um instante e viraram os olhos para a porta, ressabiados ao notar a presença da reportagem.

Apostar é ilegal no Japão, mas o "pachinko" se espreme em uma brecha legal, um jeitinho japonês para as cerca de 9 mil casas de jogos ativas no país até dezembro de 2020.

Nas próprias máquinas se insere dinheiro para comprar bolinhas ou medalhas de metal para jogar. Quem vencer pode trocar os totens por brindes triviais, como miojo e produtos de limpeza, ou prêmios mais interessantes (de airfryer e aspirador de pó a bijuterias, brinquedos, clássicos relógios G-Shock e isqueiros Zippo com a etiqueta "made in USA", personalizados com animes). O pulo do gato é a troca por dinheiro: como ela é feita em uma casinha fora dos salões, um puxadinho que às vezes fica no próprio estacionamento do endereço, não conta como aposta de jogo de azar e, assim, fica dentro da lei.

De fora do Ohta mal dá para imaginar a profusão de luzes de neon, a música estridente e o tilintar das bolinhas de metal que lembram uma chuva de granizo.

Há salões iluminados e brancos, com uma atmosfera de shopping center; em outros, porém, predomina um clima nebuloso, um tanto intimidador. Via de regra, as construções são equipadas com armários, fumódromos e uma série de "jidouhanbaiki", as máquinas automáticas que servem refrigerantes, energético e café. Funcionários transitavam com colete e gravata borboleta, ao estilo dos cassinos.

Em tempos de pandemia, não é raro encontrar termômetro digital na porta, totens de álcool em gel, máscaras descartáveis gratuitas nos tamanhos P, M e G, frascos de álcool em spray e uma divisória de plástico fumê em certas cabines.

"Shh, você está atrapalhando", disse um senhor japonês a Toshio*, 56, um paulista de Jaboticabal que perambulava pelos corredores do Meiho, "pachinko" mais ao centro da cidade. "Silêncio? Olha o barulho ao nosso redor, que silêncio é possível aqui?", retrucou Toshio, que continuou zanzando — segundo ele, é normal "ficar de olho" até escolher uma máquina.

"Às vezes é pegadinha: uma máquina pode 'comer muito' durante o dia, ficar só acumulando bolinhas, mas abre à noite, quer dizer, paga muito; ou pode ficar o dia todo no 'pinga pinga', deixando a gente ganhar só um pouquinho", teoriza Toshio. "Um corredor tá pagando; o outro tá comendo, tá cobrando."

No "pachinko", primeiro é preciso manejar a palheta para quicar as bolinhas de metal e acertá-las no buraco; acertando, um botão se acende e a máquina "roda" como um caça-níquel digital, mostrando no painel três números ou símbolos. Se forem iguais, a máquina libera bolinhas metálicas como recompensa — que podem ser trocadas por um tipo de cupom que, ao final, rende prêmios ou dinheiro. Atualmente, há máquinas em que uma bolinha custa um iene (R$ 0,049).

Toshio tinha 39 anos quando jogou pela primeira vez. Fazia pouco tempo que trocara Jaboticabal por Toyohashi e, certo dia, precisou esperar um amigo que estava no dentista ao lado de um "pachinko". Tinha 4 mil ienes no bolso e decidiu passar o tempo, sem saber direito as regras do jogo. Apostou três mil ao longo de uma hora e perdeu. Com os últimos mil, a sorte virou: saiu de lá com 90 mil ienes (R$ 4,3 mil).

Ele voltou muitas vezes — em uma delas, diz que faturou quase 500 mil ienes (R$ 24,3 mil). "Já fui quase viciado, mas não sou mais", conta. "Ficava das 10h da manhã até 10h da noite, só levantava pra ir ao banheiro. Hoje não vou tanto: é como se tivesse um ímã que manda a bolinha pra fora do buraco, você gasta mil ienes pra ter a chance de 'abrir' a máquina e ganhar uns trocados. Tá tudo travado."

No Brasil, Toshio jogava bilhar no boteco, sem valer dinheiro. No Japão, trabalhando como operário em uma fábrica de autopeças das 8h às 20h de segunda a sexta, às vezes sábado, viu-se sozinho num dia em casa, "os olhos até ardiam de tanto ver TV e não ter com quem conversar", e passou a frequentar "pachinkos". "Sempre fui pé no chão: primeiro, pagava as contas e todo santo mês mandava dinheiro para a família no Brasil", lembra.

O que ganhava no jogo preferia investir em presentes caros, como máquina fotográfica e filmadora, para evitar a tentação de torrar mais do que deveria na casa. "Dinheiro de 'pachinko' não é abençoado. Depois das contas e dos presentes, se sobrava um dinheirinho aí sim apostava de volta, era o trocado pra brincar. Se perdesse, azar."

Era noite de sábado e o Meiho, para marinheiros de primeira viagem, parecia bastante agitado. Para Toshio, porém, a casa estava vazia: nos melhores dias, não sobra máquina para sentar.

Na última década, o número de casas de jogos caiu de 11,7 para 8,7 mil. Em 2012, reportou a agência britânica BBC, o setor movimentava cerca de 30 trilhões de ienes por ano — 30 vezes mais que os emblemáticos cassinos de Las Vegas.

Inventada na década de 1920 como brinquedo de criança, a máquina se popularizou como jogo de azar na década de 1940 no Japão. Tornou-se um negócio dominado por imigrantes coreanos que, no pós-guerra, eram discriminados no território japonês e não tinham muitas oportunidades de trabalho, como retratou a jornalista coreano-americana Min Jin Lee no romance "Pachinko" (2017). Por muito tempo, quem controlou a troca de prêmios foi a Yakuza, a máfia japonesa.

Entretanto, o movimento caiu consideravelmente até chegar a 5,4 trilhões em 2020, parte por desinteresse de jovens, parte por causa da pandemia, ainda que, durante os estados de emergência, muitas casas tenham mantido as portas abertas — inclusive nas piores ondas de covid-19 no arquipélago, durante os Jogos Olímpicos. Segundo estimativas do governo, cerca de 3,2 milhões de pessoas têm problemas com jogos no Japão.

Não há dados destacados por nacionalidade, mas a questão também impacta imigrantes brasileiros, que inclusive se referem ao assunto com um neologismo próprio. "Já emprestei dinheiro pra amigo de fábrica e já vi pachinkeiro perder tudo, até a família", diz Toshio.

A arquiteta Ana*, 26, tinha 5 anos quando viu o pai ser espancado. Ele devia dinheiro para um agiota, um empréstimo que fizera para jogar — estava viciado em "pachinko".

"A gente passava dias sem comida na geladeira", relata ela, filha de brasileiros, nascida no Japão e hoje vivendo em Maringá (PR). "Meus pais se divorciaram, mas até hoje sinto que minha mãe tem vergonha. Não temos mais contato e não sei se ele continua jogando."

Durante o doutorado, o antropólogo paulista Victor Hugo Kebbe, 39, ouviu diversos depoimentos de brasileiros morando em Hamamatsu. Nos relatos, o assunto surgiu como um dos deslizes dos dekasseguis, os trabalhadores temporários no Japão.

"É a história: a família vai para ficar 2, 3 anos e vai ficando; com opções limitadas de lazer, há quem busque no 'pachinko' um hobby que não exige estratégia nem o domínio da língua japonesa", diz Kebbe. "Lembra o filme 'Tempos Modernos', de Charles Chaplin? Reflete um pouco a dimensão do trabalho no Japão: trabalhar como um robô e continuar reproduzindo movimentos mecânicos na hora do lazer."

Alex*, 44, gostava de jogar bingo no Brasil. Aos 20 e poucos, saiu de Sorocaba (SP) e cruzou o mundo para trabalhar em uma fábrica de reciclagem de tambor em Mie. "Diz a lenda dos pachinkeiros que a casa deixa os novatos ganharem. Na primeira vez, ganhei uns 15 mil ienes", relata. "Não teve jeito, viciei. Na fábrica todo mundo só conversava sobre jogo. Ia todo dia. Até num Réveillon saí de fininho da festa e fui jogar."

Depois de Mie, Alex morou em Hyogo e Fukui. Certa vez, viu-se em uma fila na frente do "pachinko". De chinelo e com uns tostões no bolso, estava procurando moedinhas na rua, até que a fila andou, alguém pisou no seu chinelo e ele, distraído, foi atropelado pelos outros apostadores. "Lembro que eles foram andando, meu chinelo ficou lá atrás, mas eu queria tanto entrar que fui em frente assim mesmo."

Por volta de 2002, um cunhado e uma sobrinha sofreram um grave acidente de carro. Abalado, trocou o "pachinko" pela igreja. "Fui ouvir a palavra de Deus e fui acolhido. Dali em diante, nunca mais joguei. Já são 19 anos de libertação", diz ele, que hoje trabalha em uma empresa de assessoria para estrangeiros em Kikugawa.

"Pachinko", diz o psicólogo mato-grossense Rangel Lisboa, 44, serve como um mecanismo de fuga da realidade dos imigrantes, que vivem uma dinâmica marcada por diferenças culturais, dores, estresse e frustrações ante as longas jornadas de trabalho no Japão.

"Nem todo mundo é viciado, dá pra jogar socialmente. O que difere passatempo de vício é o que está por trás: estou perdendo o controle como sintoma de uma crise depressiva, um conflito familiar, uma frustração ou uma série de relações tóxicas... 'Pachinko' é um tipo, mas poderia ser sexo, drogas, enfim, algo que o inconsciente usa para preencher um vazio", define.

Lisboa trabalha numa fábrica das 6h às 20h e faz 4 horas extras por dia, em Kani. Nos fins de semana, atende como psicólogo no projeto Tsuru, iniciativa que acolhe e dá orientação psicológica a brasileiros residentes no Japão — entre eles, famílias afetadas por jogos de azar.

Toshio, que pretendia trabalhar três anos no Japão, foi ficando, segundo suas palavras, por um tropeço atrás do outro: um irmão se acidentou, a sogra teve câncer, o negócio da família faliu, um amigo ficou mal, a filha entrou, mas trancou a faculdade — e todos receberam sua ajuda financeira. Foi como um lance de azar no "pachinko": a bolinha quicou diversas vezes sem vencer a máquina no jogo da vida real.

No Halloween, Toshio trabalhou até as 15h e foi ao "pachinko" no fim do dia. Não apostou nada. Andou pelos corredores compartilhando os truques que aprendeu com amigos pachinkeiros, contou causos, lembrou da família que ficou no Brasil e dos amigos que fez no Japão. "Isso é sorte", disse, pegando a bicicleta para voltar para casa.

*nomes trocados a pedido dos entrevistados

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