DEPOIS DA CURVA, O PASSADO

O que mudou na paleontologia brasileira após um ex-bancário descobrir ossos de dinossauro em Marília (SP)

Luiza Pollo (texto) e Flávio Moraes (fotos) Colaboração para o TAB, de Marília (SP) Arte/UOL

Muito natural que todo apaixonado por dinossauros estivesse contando os dias para ver a estreia de "Jurassic Park", em 1993, mas não era bem esse o caso do ex-bancário William Roberto Nava. Ele até gostava do assunto, mas a realidade superou e muito a ação que veria no cinema naquele mês.

Na época, Nava tinha 39 anos e estava desempregado. Para espairecer, saía para observar as rochas do planalto onde fica Marília, no interior de São Paulo. Desde menino, esse era um hábito frequente — a única coisa que mudou foi a bicicleta, trocada por uma moto quando adulto. O fascínio pelas rochas continuou o mesmo.

Em 11 de abril de 1993, um domingo de Páscoa, o ex-bancário rumou para uma estrada de terra perto do aeroporto da cidade. Embicou a moto na curva e notou algo diferente. Grande, com um metro de comprimento, o objeto não identificado na terra parecia madeira fossilizada.

Nava fotografou a esquisitice, revelou o filme e, com a imagem em mãos, decidiu ir atrás de quem pudesse confirmar se era delírio. Cerca de um mês antes, havia lido uma reportagem na revista Manchete que citava Antonio Celso de Arruda Campos, professor do Museu de Paleontologia de Monte Alto (SP).

Foi até a sede da antiga Telesp, pegou uma lista telefônica e folheou até encontrar o contato do professor. Achou também o de Sergio Mezzalira, geólogo de São Paulo, que Nava já conhecia de nome.

Depois de conversas ao telefone e troca de correspondências, ambos confirmaram: aquele era um osso de titanossauro.

Dois meses mais tarde, Campos viajou até Marília para ajudar Nava, que não tinha nenhuma experiência com escavação. Na empreitada, o professor de Monte Alto escavou o fóssil e ainda desenterrou mais um pedaço de osso e uma costela bem preservada.

Exatos 63 dias antes da estreia de "Jurassic Park" no Brasil, Nava havia encontrado seu primeiro dinossauro.

NOME NO JORNAL

Do nada, o osso colocou Marília, cidade de pouco mais de 200 mil habitantes no centro-oeste paulista, no mapa da paleontologia brasileira. "Meu nome foi pronunciado pelo Cid Moreira e o Sérgio Chapelin no 'Jornal Nacional': 'William Nava, ex-bancário em Marília, descobre dinossauro'. Sabe essas coisas que ficam? Pra mim foi uma glória", conta ele, por chamada de vídeo.

A descoberta de 1993 foi o início formal de uma carreira que havia começado nos passeios de bicicleta. Nava virou paleontólogo, coordenador de museu e descobridor de alguns dos fósseis mais importantes do país, como a de ossos dos crocodilos Mariliasuchus no vale do rio do Peixe, em 1995, e do dinossauro Brasilotitan, em Presidente Prudente, em 2013, ambos no interior paulista.

O olhar treinado pelos anos de escavações junto a pesquisadores ajudou a forjar o que Nava chama de "tripé da paleontologia" em sua vida: trabalho, sorte e intuição.

"Era muito gostoso achar um fóssil. Eu descia a serra, ia ao vale do Rio do Peixe, chegava na pedreira e já tinha fóssil lá, parece que me esperando: 'oi, William, tudo bem?'. Felizmente fui presenteado com essas descobertas."

A estabilidade profissional chegou em 2004, quando o projeto de construir um museu de paleontologia em Marília saiu do papel. Atualmente, os dias de Nava se dividem entre a exploração em campo e a coordenação do museu.

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O DINO TITÃ

Há 12 anos, o professor Rodrigo Miloni Santucci, da UnB (Universidade de Brasília), debruça-se com uma equipe de alunos sobre outra ossada encontrada por Nava em 1° de abril de 2009, pertinho de Marília, na beira da estrada.

Busco no Google Maps o barranco que fica na altura do km 303 da rodovia SP-333 para visualizar o local que Nava e Santucci descreveram por telefone — o sítio paleontológico Dino Titã. Navego alguns minutos pela estrada de duas mãos, capturada em foto num dia ensolarado de 2018. Campos verdes abertos e árvores esparsas, um pouco de grama a cortar. Nada extraordinário.

Quando chego ao km 303, comparo com uma foto, vejo o formato do barranco. Parece ser ali. Na beira da estrada, sem nenhuma indicação, fica um terreno de 20 x 35 metros que abrigou, por aproximadamente 80 milhões de anos, a ossada quase completa de um Titanossauro.

Foi seguindo a intuição que Nava chegou ao barranco do km 303 da naquele 1° de abril de 2009 e encontrou vários ossos fossilizados expostos. Em dois anos de trabalho junto de uma equipe da UnB, liderada por Santucci, eles escavariam ossos de dois indivíduos milenares, levando Marília de volta aos noticiários — e desta vez até o Projac, o estúdio de gravação de novelas da Rede Globo.

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NOVELA E LABORATÓRIO

O autor Walcyr Carrasco, que cresceu na cidade, se inspirou na descoberta para criar o roteiro de "Morde & Assopra", novela de 2011. A projeção do sítio paleontológico rendeu até mesmo a expansão do Museu de Paleontologia gerido por Nava. "Tive a oportunidade de falar com o prefeito na ocasião — e de falar da importância científica e até no turismo desse sítio paleontológico", confirmou Carrasco ao TAB, por meio da assessoria de imprensa da TV Globo.

Santucci quer voltar a visitar o sítio em Marília, mas diversas tentativas acabaram frustradas na pandemia. As escavações e os trabalhos de campo no país estão parados desde 2020, conta Max Cardoso Langer, professor do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP (Universidade de São Paulo).

Mesmo antes disso, o professor afirma que as coisas não iam tão bem. Os cortes de verba na ciência atingiram também a biologia e a geologia — áreas em que a paleontologia se desenvolve.

É preciso muito suor para virar paleontólogo no Brasil, destaca Langer. E não falamos só das escavações sob o sol. São geralmente mais de dez anos de estudo para aprender a lidar com fósseis milenares, sejam eles de dinossauros ou de outras criaturas.

"Isso que vou dizer é um tabu, mas eu odeio dinossauros", diz aos risos Renato Ghilardi, presidente da SBP (Sociedade Brasileira de Paleontologia). "Brincadeiras à parte, eles ajudam muito na divulgação científica da área, mas não se pode esquecer do resto."

Encontrar um dinossauro — ou qualquer outro fóssil — pode nos dizer muito sobre como o planeta Terra era no passado, mas ajuda também a prever o futuro.

"Vou puxar uma fala filosófica aqui", diz Aline Ghilardi, professora de paleontologia na UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), criadora e co-diretora da iniciativa de divulgação científica Colecionadores de Ossos (apesar do sobrenome, ela não tem parentesco com Renato). "Entender o que aconteceu com esses e outros animais nos permite acumular conhecimento sobre, por exemplo, mudanças climáticas e grandes extinções."

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TRÁFICO DE FÓSSEIS

Das pequenas conchas e exoesqueletos estudados por Renato Ghilardi a ossos maiores de dinossauros como os encontrados por Nava, fósseis são achados em todo o Brasil, com destaque para o interior de São Paulo, o Rio Grande do Sul e a bacia do Araripe, no Ceará.

Esse último concentra os fósseis mais bem preservados do país, e é também o que mais sofre com o tráfico. "Boa parte dos fósseis aqui são encontrados completos, articulados. Isso ocorre em pouquíssimos lugares no mundo", diz Flaviana Lima, professora na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).

A lei sobre os fósseis no Brasil é de 1942 e ocupa menos de uma página. Define apenas que os materiais pertencem à União e que é preciso pedir autorização para extraí-los — pesquisadores ligados a museus e universidades precisam apenas comunicar suas atividades em um sistema da ANM (Agência Nacional de Mineração), antigo DNPM (Departamento Nacional da Produção Mineral).

Traficantes que retiram esses materiais do Brasil indevidamente costumam alegar que os fósseis descobertos foram tirados do país antes da lei de 1942, conta Aline Ghilardi, que frequentemente se posiciona sobre esse problema. "Eu brinco que traficante de fóssil no Brasil tem um supertrunfo. Você nem abriu a boca e ele já falou que saiu daqui antes de 1942."

Santucci, que trabalhou no extinto DNPM até 2009, conta que a falta de pessoal faz com que a fiscalização seja focada principalmente na extração mineral feita por construtoras. Não sobra tempo nem pessoal para fiscalizar toda a extração que é feita.

O Ministério Público e a Polícia Federal até ajudam na apreensão, mas Renato Ghilardi afirma que a SBP ainda recebe incontáveis denúncias de tráfico e venda. "Todo mês tem gente vendendo fóssil brasileiro no eBay. A gente (SBP) não tem poder de polícia ou de fiscalização, mas faz um trabalho de tentativa de conscientização do vendedor. Na grande maioria das vezes eles retiram o produto, ou pelo menos não ficam expondo de uma maneira deliberada."

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CIÊNCIA ESPALHADA

Quem passa pela av. Sampaio Vidal, no centro de Marília, vê o antigo prédio da biblioteca — ocupado agora pelos dinossauros — fechado temporariamente. Mas é por um bom motivo.

O Museu de Paleontologia está em reforma. Deve reabrir ainda em 2021, se a pandemia permitir, com óculos de realidade virtual e mais interatividade. Nava diz que não vê a hora de voltar a receber público.

Para todos os entrevistados, reduzir o problema do tráfico e fomentar o investimento na área tem tudo a ver com manter a paleontologia atrativa. Museus, filmes, palestras e eventos culturais ajudam a lembrar a população da importância de se preservar o patrimônio que esses seres milenares carregam.

Quando a própria população valoriza a ciência e suas descobertas, cresce a receita em turismo de regiões como a Bacia do Araripe e o interior de São Paulo.

"O investimento em ciência no nosso país precisa continuar existindo para que descobertas incríveis sejam feitas por cientistas daqui e possam trazer retorno para a gente", defende Aline Ghilardi. "Espero que a gente perceba que a ciência não é só descobrir uma vacina — esse é o topo da torre da ciência. E não existe o topo da torre se você não tem a base."

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