FIM DE FESTA

Sem celebrações, paróquias de SP se reinventam com delivery, lives e ações humanitárias

Marie Declercq (texto) e Felipe Larozza (fotos)

Quando a OMS (Organização Mundial da Saúde) decretou que o novo coronavírus estava fora de controle, cristãos pelo mundo todo ainda cantavam e celebravam a vida.

O sinal vermelho para as igrejas e denominações religiosas surgiu rápido. Na Coreia do Sul, cientistas detalharam o contágio de mais de 5.000 pessoas a partir de um único doente, a "paciente 31" — uma mulher de 61 anos que, já com sintomas de covid-19, recusou-se a fazer o exame e continuou frequentando a igreja cristã Shincheonji.

O distanciamento se fez necessário e virou matéria de discussão em toda parte. No STF (Supremo Tribunal Federal), no auge da pior fase da pandemia no Brasil, a maioria dos ministros decidiu que estados e municípios têm poder de vetar cultos. No estado de São Paulo, no entanto, a suspensão das atividades religiosas durou pouco. Com o fim da fase emergencial, em 9 de abril, igrejas abriram as portas mais uma vez. As opiniões sobre a volta se dividem.

Embora missas e cultos tenham acontecido ao longo do ano 1 da pandemia, festividades e atividades presididas por igrejas e comunidades católicas foram canceladas ou, no mínimo, drasticamente reduzidas. Além de serem uma das principais fontes de arrecadação das igrejas, também representam a união da comunidade. TAB ouviu três de seus representantes nas igrejas que frequentam, hoje vazias.

FÉ E DIFICULDADE

O Santuário Senhor Bom Jesus de Piraporinha, na zona sul da capital, recorreu ao sistema de delivery de quitutes para manter viva a tradição da festa junina e também a festa do Padroeiro Bom Jesus, realizada em agosto de 2020.

A festa do padroeiro literalmente parava o trânsito na região para receber mais de 20 mil pessoas, em um trecho da avenida Luiz Gushiken, em Chácara Santana. Para o pároco Adilson Ulprist, 49, o trabalho intenso era uma forma de juntar membros da comunidade e angariar fundos para o Santuário funcionar.

Tudo isso está suspenso e sem previsão de volta. Em 2021, a paróquia segue sem preparativos para festa junina.

Antes de entrar na fase roxa em São Paulo, o Santuário estava funcionando com capacidade reduzida. No enorme salão, onde cabem 1.200 pessoas sentadas, alguns fiéis de máscara sussurravam suas preces, espalhados em bancos da igreja. As confissões, conta Ulprist, são feitas de modo improvisado no salão, fora do confessionário claustrofóbico.

As missas começaram a ser transmitidas pela internet, as aulas de catequese foram suspensas e os batizados foram reduzidos a pais e padrinhos da criança. As missas, afirma o pároco, só podem receber 120 pessoas e contam com "fiscais de máscara", que pedem para que todos os frequentadores cubram o rosto da forma correta. "Já tivemos que pedir para uma pessoa se retirar porque ela não queria respeitar a regra", diz. "Aqui dentro, sou responsável pela vida das pessoas."

MENOS REZA, MAIS COMIDA

Ulprist conta que a receita da paróquia caiu quase 90% nos primeiros meses. O delivery serve como uma solução temporária para manter os custos do Santuário e pagar o salário dos funcionários. "As festas eram parte importante da nossa receita e ajudavam não só na parte financeira, mas também na parte emocional e sacramental", explica.

A receita diminuiu, mas o trabalho de caridade, segundo ele, dobrou. Antes, a paróquia atendia menos de 100 famílias com alimentos. Hoje, a doação chega a mais de 200.

Assim como as festas, a parte de caridade da paróquia também depende de voluntários e sai da própria receita do local. "É comum acharem que toda igreja é milionária, mas também passamos por dificuldades. Todo mês, fechamos quase no zero, e quando falta para o trabalho de caridade, tiramos da nossa própria arrecadação", diz.

"A igreja precisa se fazer presente na vida da comunidade, esse é o papel dela. Senão, é como se fosse um prédio qualquer."

OLHO NO OLHO COM DEUS

Para participar da festa junina da Igreja Nossa Senhora da Consolação, na região central, era preciso enfrentar uma fila longa — que muitas vezes virava a esquina — de senhorinhas católicas, hipsters moradores da região e jovens frequentadores da Praça Roosevelt.

"Essa paróquia tem uma vida comunitária muito rica. Não é uma paróquia de passagem, como às vezes pode aparentar", conta o padre Alessandro Enrico de Borbon, 46, responsável pela paróquia.

A festa junina adquiriu uma dimensão maior com os anos, mas sempre contou com a dedicação e empenho da comunidade, segundo Borbon. "Isso criava um espírito de ajuda ao próximo muito forte e era também uma oportunidade para as pessoas irem mais à igreja", conta.

Para arrecadar dinheiro, a paróquia seguiu a mesma solução temporária de muitos templos na cidade e montou um esquema de delivery para distribuir quitutes juninos, preparados na casa dos voluntários da paróquia.

Há mais de um ano, a igreja que divide espaço com a Roosevelt está silenciosa. Dentro dela, fiéis esparsos rezam nos bancos. Há fitas de segurança que impedem o acesso a alguns ambientes da igreja, para evitar aglomerações. As atividades clericais são feitas com parcimônia, seguindo, de acordo com o padre, "todos os protocolos".

Com a discussão sobre a reabertura, Borbon defende que elas sejam consideradas atividade essencial, desde que cumprindo as limitações impostas. Para ele, rezar em casa não é suficiente. "É preciso às vezes vir, tocar, estar olho no olho com Deus. É claro que faz falta. As igrejas são lugares de acolhimento e a parte boa de tudo isso é que as pessoas valorizam mais o ato de vir à igreja."

DE COSTAS PARA A SÉ

A Igreja do Rosário dos Homens Pretos, no bairro da Penha, na zona leste, parece modesta, mas guarda histórias que datam de mais de 200 anos, desde que a Irmandade dos Homens Pretos conquistou o espaço para construir uma capela, em 16 de junho de 1802.

O prédio demorou mais de 100 anos para ser construído. Foi inaugurado na época em que duas igrejas da mesma irmandade, todas construídas por homens pretos, foram demolidas. Pelos vários percalços e impedimentos que séculos de escravidão e racismo causaram, a fachada da igreja não é voltada para a catedral da Sé, como outras edificações da época eram.

"Foi um protesto. A igreja está de costas para a Sé, mas de frente para a periferia da zona leste, o fundão", conta Carlos Eduardo Casemiro, 60 anos, membro da Comunidade do Rosário, responsável pelo funcionamento da igreja e pela organização de eventos.

Apesar de fazer parte da Diocese Leste, o funcionamento da igreja é diferente das demais e é mantida pela comunidade que foi criada nos anos 2000 para preservar a igreja e seu patrimônio histórico e cultural, especialmente celebrando a ancestralidade africana dos que levantaram a igreja do zero.

Festas e celebrações são o carro-chefe do templo: a comunidade organiza rodas de samba, o Cordão de Carnaval Dona Micaela (uma homenagem à parteira que viveu no bairro da Penha) e uma união de maracatus e congadas, junto com a liturgia católica, em um só lugar.

Por causa da covid-19, a Comunidade do Rosário cancelou todos os festejos previstos no calendário, transferindo todas as apresentações musicais para transmissões ao vivo nas redes sociais. Também conseguiu fechar parceria com uma empresa para distribuir cestas básicas pelo bairro durante cinco meses.

SENSO DE PERTENCIMENTO

Os avós maternos de Casemiro trabalharam como zeladores da igreja, da década de 1930 ao começo dos anos 1960. Foi também no Rosário que Casemiro conheceu Selma Matias, 60 anos, sua esposa.

Com saudade e orgulho, os dois relembram da pracinha de frente à igreja, adornada para receber mais de mil pessoas, locais e fiéis de outras cidades, para a Festa do Rosário e a Festa de São Benedito, que acontecem desde 2013 durante todo mês de junho.

Apesar de as festas serem fundamentais, Casemiro afirma que a Comunidade do Rosário conseguiu manter o legado, em grande parte, porque sua história é levada adiante por crias da igreja, como as Pastoras do Rosário, grupo formado por mulheres de mais de 60 anos que se reuniam nas rodas de samba organizadas no local, o cordão de carnaval e a união de artistas, acadêmicos, escritores, músicos e membros de pastorais afro, que querem manter a única igreja em São Paulo construída por pretos que segue de pé.

"Descobrimos o apoio enorme da comunidade quando transmitimos nossas festas pela internet", conta Casemiro. No entanto, o contato físico na pequena igreja onde cabem pouco mais de 40 pessoas ainda é insubstituível.

"Nas segundas, tocamos o sino às 10 horas para anunciar a missa. Meia hora antes, já víamos as pessoas descendo as ruas, chegando de carro e ocupando os lugares até encher", conta Casemiro. "Isso faz muita falta para nós e para todo mundo ao redor."

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