Paz e diversidade

Quem são os iraquianos que sonham com uma vizinhança feita de muçulmanos, judeus e cristãos

Em um sábado chuvoso de maio, dezenas de jovens de Mossul disputavam logo pela manhã um lugar em um dos micro-ônibus que fariam uma viagem de 40 minutos até Nimrud, cidade de maioria cristã no norte do Iraque. Eles estavam felizes pela chance de participarem de um programa especial. Pela primeira vez, Nimrud teria um festival da paz. A cidade havia sido devastada pelo grupo terrorista Estado Islâmico, que dominou a região entre 2014 e 2017. Agora, começava a ser reconstruída. O monastério local, que é do século 4 d.C, estava reaberto. Para lá se dirigiram os ônibus repletos de estudantes, em sua maioria muçulmanos de Mossul – a terceira maior cidade do Iraque também fora controlada pelos extremistas até julho de 2017, quando foi libertada pelas forças de coalizão, lideradas pelos Estados Unidos, e pelo exército iraquiano.

“Para nós é muito importante ter a oportunidade de participar de um festival como esse, num templo cristão, porque precisamos restabelecer a coexistência entre pessoas de diferentes religiões e etnias”, diz Ahmed Ibrahim, 24, estudante de biologia. “Não queremos que atos radicais, como os cometidos pelo Estado Islâmico, voltem a acontecer”, completa.

No monastério, cristãos (ortodoxos sírios), muçulmanos e líderes tribais estavam lado a lado para ouvirem os discursos de um padre e de ativistas que pregam a união e a tolerância. “Durante muito tempo nos demos bem aqui. A quem interessa a desunião e o conflito?”, perguntou o líder religioso durante a cerimônia. “Aos políticos, que fazem uso dessas disputas para ganhar votos, dizendo que vão defender os interesses do seu grupo”, afirmou. Todos os pronunciamentos seguiram esse tom, fossem de integrantes de ONGs (organizações não governamentais), representantes dos jovens ou autoridades locais. Durante o almoço, gratuito, os participantes dividiram pratos de dolma – o charutinho de folha de uva –, pão árabe e sucos. Na volta a Mossul, um clima de alegria tomou conta os micro-ônibus, com músicas típicas cantadas a plenos pulmões e dancinhas improvisadas.

UM VIZINHO DIFERENTE

Em meados de 2017, uma cena como essa seria impensável. Durante o domínio do Estado Islâmico, que chegou a controlar um terço do território iraquiano e parte da Síria, ouvir música era proibido. Tocar um instrumento ou cantar podia levar à morte. As mulheres não podiam sair sem uma companhia masculina e os homens precisavam deixar a barba no cumprimento determinado pela polícia moral dos terroristas. Quem fugisse à regra estava sujeito a chibatadas em público ou a ter a cabeça cortada, conforme o grau da desobediência. Fumar também estava fora de questão, assim como usar celular ou acessar mídias sociais. “Voltamos à Idade Média”, afirma Ibrahim. “O trauma foi tão grande que agora estamos fazendo de tudo para aceitar as diferenças e nos unirmos”.

O geólogo Khaled Saleh, 46, conta que gostaria que não só os cristãos, perseguidos pelos extremistas, voltassem para a região, mas também os judeus, que deixaram o Iraque há mais de 60 anos. “Isso seria muito importante para a diversidade e fundamental para o nosso crescimento como povo e nação”, diz. Ele lembra que o judaísmo nasceu no sul da Mesopotâmia, no atual Iraque. Até a criação de Israel, em 1948, havia cerca de 150 mil judeus vivendo em várias partes do país. Muitos moravam em cidades como Bagdá e Mossul e faziam parte da elite econômica e intelectual.

“A convivência nem sempre foi pacífica, mas piorou depois do estabelecimento de Israel porque os judeus passaram a ser identificados com o Estado judaico, o que provocou ressentimentos na população árabe”, diz Fernando Brancoli, professor de relações internacionais da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). As três grandes religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo –, nasceram no Oriente Médio. Segundo a tradição, Abraão, o patriarca judeu, era de Ur, fazendo do Iraque dos um berços da religião judaica. O islamismo teve origem na Arábia Saudita e o cristianismo, na Palestina.

“Era normal ter um vizinho judeu, outro cristão e um muçulmano. Vai ser ótimo recuperar esse espírito, embora isso ainda possa parecer algo um pouco distante”, diz Saleh, enquanto toma um chá no Book Forum, café recém-aberto na cidade. Ele divide a mesa com um professor da Universidade de Mossul e alguns estudantes. “Meu sonho é que os judeus voltem para Mossul, porque isso vai contribuir muito para a diversidade”, completa Walled, que é muçulmano.

GENTE DE MOSSUL

Pelo menos uma vez por semana são realizados nesse café debates e palestras sobre a história, legado cultural e produção acadêmica do Iraque e de Mossul. Em maio de 2018, foi lançada ali a primeira revista voltada aos moradores locais, chamada “Gente de Mossul”. Há também apresentações de música. Não raro, alguém pega o alaúde, instrumento de corda típico da região, e começa a tocar. “Resolvi abrir o café para estimular a discussão e a troca pacífica de ideias”, diz o engenheiro Farah Sabah. “A dificuldade em aceitar as diferenças pode levar a conflitos graves como o que vivemos, de consequências devastadoras”, completa.

O músico Khaled Walled, 27, está sempre no café. “É muito bom poder fazer o que eu gosto sem sustos”, afirma. Ele precisou tocar escondido durante os três anos da ocupação do Estado Islâmico. Fechava as cortinas da sua casa, que divide com os pais e os irmãos, e tocava bem baixinho, para não ser ouvido pela polícia moral dos extremistas que patrulhava as ruas. “Se não pegasse o alaúde, instrumento que eu adoro, a vida não teria mais sentido”, diz. Pouco antes do fim da guerra pela libertação de Mossul, em julho de 2017, Khaled formou uma banda com três amigos, a Awtar Nergal, que se apresenta em vários locais públicos de Mossul e em festivais. Os músicos só não estiverem presentes no festival da paz de Nimrud porque estavam em turnê pela Jordânia e pela Bélgica. “Foi uma experiência incrível e pudemos contar um pouco da história da Mossul, que sofreu tanto com o extremismo e a guerra”, afirma Walled.

Enquanto conversa com o TAB, o músico se prepara para acompanhar um poeta que vai declamar seus versos no palco do Book Forum, seguindo uma antiga tradição do Oriente Médio, onde sempre foi comum unir poesia à música. As pessoas fazem silêncio para ouvir. Depois de tanto tempo sem nenhum tipo de atividade cultural ou diversão, cada segundo da apresentação é apreciado como se fosse um presente. “É gratificante ver a vida voltar”, comenta Walled.

No bairro onde fica o café, na parte leste da cidade, a reconstrução acontece a passos largos. Lojas e restaurantes já voltaram a funcionar. A Universidade de Mossul também segue a todo o vapor. É verdade que os alunos muitas vezes assistem às aulas em salas ainda com buracos de tiros e marcas do incêndio que tomou o local. “O importante é seguirmos em frente. Não há mais tempo a perder”, diz o professor de geologia Nizar Khazat.

Há um mês, o parque de diversões da cidade, às margens do Rio Tigre, foi reinaugurado. A pequena ilha no meio do rio, com roda-gigante, brinquedos para as crianças, cinema 3D e espaço para piquenique também voltou a funcionar. No dia da reabertura, os barcos que levavam os moradores para a ilha ficaram lotados. Do outro lado do rio, na cidade, as luzes se acenderam e, pela primeira vez em muito tempo, as pessoas puderam admirar uma paisagem acolhedora, pontilhada pelas águas calmas do Tigre.

CIDADE MINADA

Não muito longe dali, no entanto, o cenário é bem diferente. Na Cidade Antiga, na parte oeste de Mossul, mais atingida pela guerra, centenas de corpos ainda permanecem sob os escombros. A Defesa Civil alega falta de pessoal e equipamento para dar conta da retirada dos restos humanos. Entre os empecilhos, estariam os explosivos deixados pelo Estado Islâmico, que podem ser detonados a qualquer descuido.

“Pelo menos parte da área é um campo minado”, diz Pehr Lodhammar, gerente sênior no Iraque da divisão da ONU (Organização das Nações Unidas) para a retirada de minas e explosivos. Desde o fim de 2017, foram removidos 33,5 mil minas terrestres e explosivos de Mossul.

Mas a dificuldade em limpar o terreno não se resume aos perigos que circundam a área. Em alguns locais, o trabalho das Nações Unidas já foi finalizado. Mesmo assim, pedaços de corpos, carcomidos pelo tempo e o clima quente e seco do lugar, repousam nos escombros. “Esses aqui são cadáveres dos terroristas”, diz o químico Khaled Salah, 28, morador da Cidade Antiga, na parte oeste de Mossul.

O TAB percorreu os escombros com Salah. Ele ainda não se conforma com o grau de destruição dessa parte de Mossul, onde a luta homem a homem foi tão feroz que em um certo momento as forças de coalizão decidiram simplesmente lançar um grande número de bombas para matar os extremistas e acabar com aquilo. As baixas entre as forças iraquianas, que lideraram o combate nessa parte da cidade, chegaram a até 50% em algumas ações, quando o esperado é no máximo 20%. As batalhas nas ruas perto do Rio Tigre, que divide a cidade em duas partes, foram as mais sangrentas. 

“Meus olhos não podem acreditar no que estão vendo”, disse Salah enquanto apontava para os destroços. Coletes usados como detonadores pelos homens-bomba do Estado Islâmico estão por toda a parte. De repente, um pé, com uma botina militar, desponta no meio dos escombros. Logo ali, aparece uma mão erguida, esturricada, de alguém que deu o último suspiro em meio à batalha. Uma cabeça surge acolá.

Depois de tanto tempo, quase um ano depois do fim da guerra, só restam pedaços dos corpos. O clima da região, com um verão em que as temperaturas chegam fácil aos 50ºC e o ar é bastante seco, fez com que os cadáveres ficassem praticamente mumificados. Para muita gente, os militantes do Estado Islâmico não merecem uma sepultura. “O que eles fizeram foi inominável”, diz Ibrahim.

UNIÃO CONTRA O EXTREMISMO

Faltam também recursos para a reconstrução dessa parte da cidade. Na visão dos moradores, as poucas verbas que chegam acabam sendo desviadas pelos políticos. Não que esteja chegando muita coisa. Dos US$ 100 bilhões em investimento pedidos pelo Iraque para reconstruir a infraestrutura das áreas mais atingidas pela guerra, apenas uma pequena fração foi obtida durante uma feira internacional realizada no início do ano, no Kuwait, que tinha justamente essa finalidade.

Como o dinheiro não chega, os próprios moradores assumiram a missão de restaurar o que foi perdido e prestar assistência ao restante da população. Sempre que pode, Salah leva galões de água potável para a Cidade Antiga. O professor de árabe Farah Yousif, 29, e o farmacêutico Ayoob Tenon, 27, que são amigos, usam um carrinho de mão para ajudar a tirar os escombros nos finais de semana. “As pessoas precisam voltar a morar aqui e trazer a vida de volta para cá”, diz Yousif.

Muitos ainda têm medo – e não só os cristãos, que abandonaram a cidade há quatro anos devido às perseguições do Estado Islâmico, mas outras minorias religiosas, como os yazidis, que têm uma crença originada no zoroastrismo.  Ahmed Zaidan, um poeta muçulmano de 29 anos, escapou em 2013 e por enquanto não pensa em voltar para Mossul. Formado em literatura, ele começou a trabalhar em uma emissora local em 2009, como apresentador de um programa sobre poesia. Logo começou a receber ameaças. “Os radicais já estavam em Mossul, embora não tivessem o nome de Estado Islâmico, e começaram a patrulhar os moradores”, conta. “Criação literária era algo que eles não gostavam”, completa. Nessa época, Zaidan diz que vários jornalistas foram assassinados. Ele mesmo perdeu alguns amigos que trabalhavam em canais de TV. Antes que fosse o próximo da lista, decidiu pedir asilo político. Foi aceito pela Finlândia, onde mora até hoje, trabalhando como escritor.

Embora o Estado Islâmico tenha sido derrotado na região, ainda paira o fantasma da volta do extremismo. Apenas nas duas últimas semanas de maio de 2018, as forças de segurança prenderam mais de oito pessoas acusadas de fazer parte do grupo terrorista. Em Kirkuk, área rica em petróleo a 177 quilômetros de Mossul, militantes do grupo conseguiram concretizar um ataque a estações de energia elétrica, deixando alguns bairros sem eletricidade durante 24 horas. No fim de maio, 11 extremistas foram mortos quando tentavam dominar vilarejos na região.

Enquanto isso, acontecia pela primeira vez, em 16 anos, o Festival da Primavera de Mossul, com um desfile de carros alegóricos em uma das principais avenidas da cidade, além de danças folclóricas e uma parada militar com vários destacamentos das forças armadas e do aparato especial de segurança. Famílias, jovens e crianças acenavam para os militares e as pessoas que estavam se apresentando. “Toda guerra é traumática e queremos superar o que passou”, diz Yousif. “Disso vai depender nossa capacidade de união e a vontade política”.

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