O TEMPO E O VENTO

Campeonato de pipas reúne adultos com mais de 30 e paixão por linha e papel de seda em Guarulhos (SP)

Felipe Pereira Do TAB

O programa de sábado de um bando de marmanjos é acordar com as galinhas e dirigir um tempão até se embrenhar num mato na periferia de Guarulhos (SP). Depois, eles torcem para São Pedro mandar vento, e assim poderem passar o dia empinando pipas.

O compromisso é sério. Vandré Amato, 40, chegou ao ponto de encontro às 6h45 e ouviu maledicências e deboches dos companheiros a respeito do atraso. A essa hora, uma fileira de carros já estava estacionada na lateral de uma estrada de terra. Ela passa no meio de matagais com o triplo do tamanho de um campo de futebol, onde foram colocadas quatro barracas.

A agitação espantou os cavalos que pastavam. Neste sábado há mais expectativa: é dia de campeonato de pipas. Será descoberta qual equipe corta mais linhas adversárias. O time de Vandré é um dos favoritos. Gilberto Bortoliero Filho, 31, conta que veio de Ribeirão Preto (SP) para competir contra o "Messi" da pipa.

Sua participação envolve negociação trabalhista. Empregado de uma fábrica de uniformes esportivos, Gilberto pede ao chefe para não receber em dinheiro as horas extras que faz. Prefere pegar em folga, que tira às sextas-feiras, quando vem a São Paulo para empinar pipa.

PRÁTICA DIÁRIA

Vandré entende bem o sentimento. É alucinado pela modalidade desde pequeno. Morador de prédio na infância, subia na cobertura do edifício para empinar pipas. Quando tirou carteira de motorista, andava com linhas, varetas e papel de seda no porta-malas do carro. Funcionário do setor de distribuição da empresa do pai, fazia uma pausa no trabalho se cruzasse um local com pipas no céu.

"Ele reclamava e a gente brigava, mas ele tinha razão. Falava que eu fazia isso porque era filho dele. Se fosse empregado, estava demitido. Ele estava certo, e eu, errado."

Vandré logo entendeu que não podia deixar as obrigações de lado, mas continuou soltando pipa numa frequência absurda. Ele conta que, dos 18 aos 33 anos, praticava todo santo dia. Tanta entrega formou um campeão de uma modalidade tratada como esporte por todos naquele matagal, nos confins de Guarulhos

NA ALEGRIA E NA TRISTEZA

Mais comedido hoje em dia, Vandré garante que a paixão não esfriou. Usa o roteiro da vida como álibi. Namorando há sete anos, ele flerta com o casamento e sabe como quer inserir as pipas na cerimônia: vai prendê-las no teto da igreja e, quando o padre consumar a união, elas descerão com as alianças.

A promessa é ficarem juntos — ele e a pipa — até que a morte os separe. Vandré não tem testamento, mas fez dois pedidos para quando morrer. No velório, quer que as pessoas amarrem uma pipa na alça do caixão e ser enterrado com a camisa do Corinthians.

"Sou corintiano doente. Às vezes falo que não vou assistir jogo, mas vou ao estádio como um idiota. Mas eu gosto mais de pipa que do Corinthians", explica.

Até a namorada Tatyane Ferreira, 29, futura mulher, precisa se adequar. Ela curte, sim, diz ele; já foi a campeonatos com Vandré e fez vídeos, "vibrando como se fosse um gol". Mas todo começo de ano, ele passa a lista dos finais de semana com os campeonatos de que vai participar. A pipa é o único assunto na relação que não tem margem para DR.

"A gente já conversou e eu disse a ela: 'Você pode falar de tudo, mas não fala ou eu ou a pipa que você vai perder'. É uma questão resolvida."

LUA DE MEL NOS ARES

André Moraes Borges, 30, que também é de Ribeirão Preto, teria mais facilidade no começo do casamento se tivesse tido conversa semelhante.

A noiva marcou a cerimônia com seis meses de antecedência. A lua de mel em Ubatuba, litoral de São Paulo, estava paga. Mas organizadores de festival de pipas em Jaú (SP) atrapalharam os planos: marcaram um evento para o dia seguinte ao casamento.

André casou no sábado e domingo estava empinando pipa longe da praia. A mulher passou a lua de mel com a mãe.

A pipa atrapalhou o casamento, mas os dois se acertaram. Ele abriu mão de várias coisas de que gostava e a mulher aceitou que o técnico em radiologia saia de plantões às 6 da manhã e vá direto empinar pipa.

CLIMA DE INTERIOR

Um campeonato de pipas consiste em cortar a linha do adversário. No sábado em questão, as equipes eram trios. O time de Vandré se chama Terminal porque eles costumam praticar no terminal de cargas da rodovia Fernão Dias. André e Gilberto são da equipe Palácios, que já tem até categorias de base: três moleques iniciantes compõem a Palácios Junior.

Na hora da competição, os times ficam sobre uma lona e três pipas ganham o céu, uma de cada integrante. A batalha dura três minutos e o número de linhas adversárias cortadas dá a pontuação. Os juízes pedem para os rivais irem para o ataque, igual UFC.

Neste campeonato, havia 96 atletas distribuídos em 32 equipes. Cada time pagou R$ 200 de inscrição e teve direito a um vale-alimentação individual de R$ 15. Naquele fim de mundo, a única opção de refeição era o Barbosa Lanches. Recrutado pela organização do evento, o casal estacionou uma van na estrada entre os matagais. Do veículo carcomido de ferrugem e com jeito de carrinho de porta de estádio saíam oito tipos de sanduíches, todos compostos de um hambúrguer fino, enfiado num pão massudo, que não custava mais que R$ 10.

A lonjura do lugar do campeonato também produziiu cenas inusitadas. De repente, uma frase conhecida por quem toma ônibus foi pronunciada pelos organizadores: "Um passinho para trás, por favor, para dar espaço?". Quem vinha lá era um homem de galocha, conduzindo uma carroça puxada por dois cavalos. Ele agradeceu a gentileza e seguiu a vida na direção das chácaras ali por perto.

CEROL NA MÃO

Como várias atividades ao ar livre, os pipeiros estão submetidos ao tempo. O vento parou por volta das 10h e os competidores foram para baixo das lonas contar causos, grandes feitos na pipa e fiascos de atletas. Se o autor da bobagem estivesse presente, melhor ainda. Enquanto a roda de conversa ficava animada, assuntos do coração eram tratados na paralela. "A vida está enrolada porque eu ainda gosto da minha ex", confessava um competidor ao integrante do time adversário.

A prosa ajuda a passar as horas, mas ninguém queria estar de conversinha. A cada dois minutos, um dos pipeiros consultava a previsão do tempo. Eles também mandavam mensagens para amigos, perguntando como estava o vento em outras partes da Grande São Paulo. Um áudio dizendo que o vento da serra estava entrando animou a todos.

"É o vento vindo da Serra do Mar, que é constante", explica Vandré.

O assunto "pipódromo" vira pauta. Eles reclamam que a atividade é marginalizada e os praticantes precisam se enfiar em quebradas afastadas. Vandré gostaria de um local para soltar pipas de forma segura e sem colocar ninguém em risco. "Eu não quero a liberação do cerol [proibido por lei federal], mas a regulamentação." Aficionados por velocidade vão a autódromos ver carros a 300 km/h. Há estandes e clubes para quem gosta de atirar, mas para pipa não se reserva um local apropriado, argumentou.

Como São Pedro resolveu colaborar, a roda se desmancha. Pipas disputam o céu com aviões, partindo do principal aeroporto brasileiro ao fundo. O sol castiga, o mato suja pernas e bermudas e a alimentação é de qualidade duvidosa. Mas a decisão de dar valor a alguma coisa é particular. Aqueles 96 homens partilham o mesmo gosto e não estão nem aí para quem diz que não tiveram infância.

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