À MARGEM

Pandemia agrava desigualdade entre os que vivem no entorno do principal ponto turístico de Fortaleza

Ideídes Guedes (texto) e Marília Camelo (fotos) Colaboração para o TAB, de Fortaleza Marília Camelo/UOL

Para quem vive na região da Praia do Futuro, em Fortaleza, o nome tem pinta de sarcasmo. Futuro assim, maiúsculo, não se vê. O mar, para alguns, nem sempre esteve para peixe. A pandemia acentuou ainda mais o já notável contraste entre ricos e pobres em um dos pontos turísticos da capital mais rica do Nordeste.

Ocupada ainda na década de 1940, a região abrigava casarões em loteamentos largos, debruçados de frente para a praia. O adensamento veio a partir dos anos 1980 com a verticalização: a classe média, que não queria estar longe de Aldeota e Meireles, os bairros mais prósperos da cidade, acabou povoando a Praia do Futuro. Junto com ela também foram atraídos trabalhadores do interior do Ceará e de outras regiões do país, buscando emprego na praia ou no asfalto. O entorno dos prédios foi sendo tomado de casebres e o abismo foi crescendo.

A área, que engloba nove bairros, convive com desigualdades e segregações. Em De Lourdes, vila com 3.370 habitantes, por exemplo, 3,5% dos moradores recebem mais de 30 salários mínimos (renda per capita), mas a maior parte dos 96,5% restantes vive em condição de miséria. A comunidade do Cajueiro, entre os bairros de Praia do Futuro 1 e 2, foi erguida sobre um antigo lixão.

A reportagem especial de TAB percorreu os bairros e as comunidades de Vicente Pinzón, Praias do Futuro 1 e 2 e De Lourdes, e ouviu cinco mulheres que se encontram, literalmente, à margem, em território frequentado pela elite da cidade e por turistas do mundo todo. Elas residem por trás de muros do outro lado da rua, e espreitam o mar e os apartamentos de cobertura. Nada daquela bonança parece real.

A história de Francisca Erlândia da Cruz Ribeiro, 45, foi construída sobre as perdas. A cada mudança de bairro, uma fuga da dor. Na infância, na Praia de Iracema, perdeu o pai para a tuberculose. Na adolescência, no Castelo Encantado, viu a mãe morrer de câncer. Em 2019, no Vicente Pinzón, enterrou uma filha, envolvida com o crime.

Cinco anos atrás, Negona (apelido com o qual ela mesma se apresenta) e a família foram expulsos do barraco onde moravam, devido ao envolvimento da filha com uma facção. Sem poder levar nada, conseguiram abrigo numa casa de dois cômodos cedida por uma amiga, na comunidade do Cajueiro. "Tenho medo de, a qualquer hora, ser despejada daqui também."

Negona conheceu o atual companheiro nos trabalhos com reciclagem, há doze anos. Queria ser amada e, até hoje, comemora o sumiço daquele que a abandonou com três filhos e que lhe causava dor física e psicológica. Ela tem certeza de que foi Deus.

No lar vivem nove pessoas. Ainda falta reboco nas paredes e as redes coloridas, penduradas nos armadores, servem como decoração. O único armário tem dupla função: é utilizado tanto para guardar as roupas como para acomodar a televisão de quatorze polegadas. O ventilador fica em cima do aparelho de som, que fica em cima de uma caixa de isopor. Falta espaço, sobram dificuldades.

Com a pandemia, Negona viu a renda de cerca de R$ 1 mil mensais desaparecer. Nos últimos meses, a família sobreviveu ora com cestas básicas doadas, ora pela graça divina. Ela se preocupa com os próximos seis meses: o marido está impossibilitado de trabalhar, convalescendo de uma cirurgia — ele foi atropelado em dezembro de 2020.

A mulher tem pão e arroz para o dia, comprados com os R$ 10 doados pelo pastor da comunidade. Amanhã, já não sabe. Nos dias em que não tem nada para comer, Negona pede. Quando consegue alguns trocados, compra massa para cuscuz. Depois reparte, priorizando os mais novos. "A gente come menos, caso eles sintam fome mais tarde."

Maria Lúcia da Silva, 62, avisava a assistente social sobre o paradeiro da filha Beatriz, 31, quando a reportagem de TAB a encontrou sentada à sombra da lona da única mercearia de Cajueiro. A filha fora presa. A fala tinha tom de alívio: a mulher que vive a rotina de lutos consecutivos.

Dos dez filhos que teve, quatro morreram: dois foram assassinados, um cometeu suicídio e o outro faleceu de cirrose, mesmo destino do marido. Lúcia compartilha a vida com os netos Douglas, 16, e Ana Ketlyn, 7. "Eles só têm a mim. Se Deus me levar, não terá ninguém por eles."

Encostada à porta, Lúcia lembra do assassinato de Wilton, 26, em agosto de 2020. Viu tudo e nada pôde fazer. A poucos metros de casa, onde agora está sendo construída uma igreja evangélica, presenciou o filho implorando para não ser morto. Foram doze tiros.

Tentou esquecer aquelas cenas indo morar em Mossoró, no Rio Grande do Norte, mas, sem condições de pagar aluguel, voltou. A idosa sobrevive com um salário mínimo recebido pelo neto, beneficiário do BPC (Benefício de Prestação Continuada).

Para incrementar a renda, Lúcia e o neto passavam o dia vendendo água na praia, mas pararam devido às medidas de isolamento. "A vida de vendedor é assim: um dia a gente ganha bem e, no outro, não consegue nem o dinheiro do café."

O medo de Lúcia não é morrer de covid-19, mas de fome. As contas não fecham e a dívida na mercearia já toma mais da metade do benefício. A idosa também não está bem de saúde. Os problemas nas articulações a impedem de realizar atividades simples, como lavar um prato e varrer a casa. Os cabelos são penteados por Ketlyn e os dedos da mão esquerda ficam sempre na posição de quando se pega um cigarro.

Luciana Vitorino, 33, apoia a cabeça sobre a sinuca que fica no alpendre da casa, na comunidade Raízes da Praia. As dores de cabeça são fortes, sequelas da covid-19 que teve em abril de 2020. Quando fala na doença, lembra dos 26 dias internada e do medo de morrer. Desde então, toma onze comprimidos diariamente. Às vezes, esquece. O alarme do celular lembra. Os quatro filhos gritam.

Luciana costuma passar o dia todo olhando inconformada para o calçadão da praia, do outro lado da avenida Clóvis Arrais Maia, onde ficava seu ponto de venda de espetinhos. "Vinha gente de todo jeito, até turista. Mas eu percebia o olhar diferente de alguns ricos que moram aqui mesmo na região." Não sabe quando irá terminar de pagar os R$ 2 mil pedidos no início da pandemia a um agiota. Com os bicos como ajudante de pedreiro de Luís, seu marido, a família consegue comer. Luciana acabou tomando para si a missão de juntar o dinheiro para quitar a dívida. Fez um empréstimo e montou uma vendinha em casa. "Ontem mesmo a polícia veio mandar fechar. Recebi o pagamento, passei o troco e coloquei o povo que estava jogando sinuca pra correr."

Quando a situação aperta mais, recebe a ajuda de Tia Rosa, 64, principal referência da comunidade. Durante quinze anos, Rosa luta por melhorias no local. Já conseguiu aterrar o buraco que ficava na entrada do lugar e, agora, monta um viveiro para criação de tilápias, que servirá de renda e alimento às 86 famílias que vivem em Raízes da Praia.

Tia Rosa e Luciana parecem mãe e filha. O carinho e a preocupação de uma em relação à outra amenizam o sofrimento. Tia Rosa sempre tem uma palavra de conforto ou uma gargalhada para melhorar o dia. Acredita que Luciana seguirá o mesmo caminho, o de cuidar dos mais novos.

Fernanda Célia, 42, chega ofegante para pegar os salgados que encomendou no dia anterior. A mulher vende lanches e água de coco em frente a uma das maiores barracas da Praia do Futuro, local que usufrui apenas para trabalhar. O que já foi a principal renda da família hoje não paga os R$ 250 do aluguel da casa de dois cômodos na comunidade Luxou. O expediente diminuiu, mas, de certo modo, entende o porquê de a praia estar vazia.

A história de Fernanda se assemelha à da mãe. O amor pelos maridos definhou com o tempo. As duas tiveram nove filhos e viram os companheiros abdicarem da função de pai. Fernanda ficou mais forte e compreendeu que precisava seguir em frente, sem depender da possível volta do homem com quem havia escolhido viver. A cada retorno, uma decepção vinha junto.

Fernanda culpa o último companheiro por precisar levar as crianças à praia. Quando ele telefona, despeja toda a raiva acumulada. Entretanto, sabe que sucumbirá ao sentimento que ainda resiste aos intervalos.

Marilene da Conceição de Almeida, 45, não sabe quando foi a última vez que comeu carne. Acredita que possa ter sido nos primeiros meses de auxílio emergencial. Recebeu quatro parcelas de R$ 1,2 mil e, com o dinheiro, conseguiu comprar "um bocado de comida" e um botijão de gás. O estoque acabou. Hoje, só tem duas salsichas e meio pacote de macarrão para aguentar o dia. A geladeira que ganhou recentemente está desligada para economizar energia.

Marilene é como passarinho. Mora em um ninho rodeado de plantas e flores, na comunidade Luxou. Não por viver em um lugar pequeno, sem espaço, espremido entre muros e becos de um dos maiores redutos de facções criminosas da região, mas por se comportar como tal. Da entrada da casa feita de pedaços de madeira e papelão, se pergunta quem são aquelas pessoas que descem dos "aviões", como ela se refere aos helicópteros, que pousam na parte superior das mansões que ficam na outra esquina. "Dizem que é de jogador de futebol, mas não sei. A gente não consegue ver. É alto, né?".

Em 2020, levou um tombo enquanto voltava da reciclagem. Teve a perna fraturada e, desde então, acompanha o marido e a filha Iasmin, 12, na garupa da bicicleta. Os três saem ainda na madrugada, antes que os carros da coleta cheguem, em busca dos cerca de R$ 500 por mês. Marilene ainda acredita em um futuro melhor, ali na Praia do Futuro, mesmo que a realidade esmague os sonhos diariamente. "Eu só queria que não faltasse comida", diz, com a voz baixa.

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