PARIS EM CHAMAS

Anfitriã dos próximos Jogos Olímpicos, capital francesa vive tempos de intensos protestos políticos

Stephanie Tondo Colaboração para o TAB, de Paris

Paris pega fogo há semanas com protestos contra a reforma da previdência promulgada pelo presidente francês, Emmanuel Macron. Manifestantes voltaram às ruas da capital e das principais cidades nesta terça-feira (6), desta vez para pressionar parlamentares que vão discutir um projeto de lei alternativo à reforma. Mundo afora, as imagens dos atos podem surpreender. Para os franceses, não é nada fora do comum.

A chique cidade de Bordeaux, por exemplo, viralizou no fim de março com um vídeo que ilustra bem um protesto à francesa: um casal compartilhava um vinho tinto na área externa de um restaurante, enquanto uma barricada era queimada a poucos passos deles — nas palavras do gerente à TV francesa: "A vida continua, é o paradoxo francês; é a revolução e você ainda vai bebericar uma taça de vinho na 'heure de l'apéritif'", o happy hour.

Entre bom humor e revolta, causas nobres e não tão nobres assim, os protestos franceses têm longa história. No Brasil, o imaginário é tão forte que uma página do Facebook se tornou um meme "hors concours" nesse quesito: "Sou fã dos franceses porque qualquer coisa eles vão lá e queimam carros".

Entretanto, para muitos franceses, protestar faz parte de uma cultura aprendida desde cedo.

Filha de sindicalista, a organizadora de eventos Céline Briens, 35, desde criança ia com a mãe a manifestações. Na adolescência, passou a frequentar protestos de movimentos estudantis. Céline critica atos de vandalismo, mas diz que o atual governo não tem levado a sério os protestos pacíficos.

Na Place de la Nation, onde membros da realeza foram guilhotinados durante a Revolução Francesa, ela aponta para uma pichação que diz: "Não existe paz sem violência". Neste ano, conta que viu vários manifestantes desfilando com guilhotinas nas ruas.

"É uma imagem forte, mas muito significativa", diz ela, que foi a três protestos contra a reforma. "Há uma história na França que faz com que a gente saiba que, quando o povo se une, consegue reverter as coisas."

Não é "uma história" apenas, mas "A" história: a Revolução Francesa (1789-1799), com o famoso lema "liberdade, igualdade, fraternidade", derrubou a monarquia absolutista e instaurou a república.

Mais de duzentos anos depois, a ideia ainda aquece corações. "A revolução é a primeira coisa de que me lembro das aulas de história. Ainda é muito presente. Os protestos são a forma com que nos expressamos", conta a estudante Samantha Pilon, 19.

Junto à amiga Tosca Bracchi, 18, de coturno e gravata, Samantha foi às ruas na marcha de 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Elas caminharam da Place de la Republique até a Nation, um trajeto de cerca de 40 minutos. Protestar, dizem as estudantes, é tradição. "Desde a queda da Bastilha", brinca Tosca.

Maio de 1968, movimento marcado por greves gerais e ocupações estudantis, foi outro capítulo importante. Os protestos começaram com alunos da Universidade de Paris, em Nanterre. Após forte repressão e violência, em que alunos responderam lançando paralelepípedos contra os policiais, espalharam-se por outras universidades francesas e chegaram às classes trabalhadoras.

"Nós conquistamos muitos direitos sociais no passado", comenta o geofísico Guillaume Gigou, 33, para quem franceses como ele compreendem os inconvenientes de paralisações em prol de causas maiores. "Mas o mundo está se tornando mais global, e tem sido cada vez mais difícil manter esses direitos. Nossa luta é para não perdê-los", pondera ele, que nunca participou de um protesto.

Gigou não está errado quando diz que os franceses são compreensivos com os percalços de protestos. Depois de março, mês marcado por incêndios, e abril, com invasões de lojas de luxo e da Euronext (a bolsa de valores francesa), um levantamento da consultoria Odoxa-Backbone para o jornal Le Figaro indicou que cerca de 65% da população continuava a favor das manifestações.

No 1º de maio, 2,3 milhões de manifestantes participaram de 310 atos e comícios, o auge dos protestos contra a reforma da previdência que elevará a idade mínima de aposentadoria de 62 para 64 anos. Foi um recorde de mobilizações de trabalhadores desde 2009, segundo a CGT (sigla francesa para Confederação Geral do Trabalho).

Paris quase parou. Além dos protestos tomando as ruas, desde março há paralisações de trens e metrô. Quase 3.500 voos foram cancelados. Garis também fizeram cerca de 20 dias de greve. As toneladas de lixo acumuladas deram ares apocalípticos à cidade-luz.

O que se ouve nos protestos, além de brados contra a reforma da previdência, são reclamações sobre o alto custo de vida no país, que registrou recordes de inflação, especialmente nos alimentos — os preços vêm escalando desde janeiro e tiveram alta de 16% em março. A cesta básica na França custava em abril 108,28 euros (cerca de R$ 570), segundo cálculos da NielsenIQ — aumento de 17,6% em um ano.

O governo pediu para as lojas reduzirem as margens de lucro para manter os preços mais acessíveis. Supermercados populares aceitaram o pedido, assim como as "boulangeries" (padarias francesas), que têm evitado repassar ao consumidor os aumentos.

Mas, se o governo imaginou que a população se frustraria com os inconvenientes dos grevistas, "errou o cálculo", diz o jornalista norte-americano Cole Stangler, radicado em Paris. "Os sindicatos foram capazes de convencer o público de que estão defendendo o interesse de todos", diz ele.

"Todos os sindicatos foram unidos", impressionou-se Marc Babic, 34. Capitão de um barco turístico em Paris, ele só participou de um ato contra a reforma.

"Não sou do tipo que protesta muito, mas me parece um momento único na França. A forma como essa lei foi aprovada foi antidemocrática e mostra a fragilidade do governo, que não consegue obter maioria parlamentar", afirma, referindo-se ao fato de que o presidente, sem apoio do Congresso, invocou o artigo 49.3 da Constituição francesa, que lhe permitiu aprovar o PL sem passar pela Assembleia Nacional.

Fundador do partido La République En Marche (hoje Renaissance), considerado centro-liberal, Macron não é o único alvo dos protestos. O que está por trás da indignação de muitos franceses é a ideia de que o governo vem tentando reduzir direitos com uma justificativa econômica.

Nas ruas, espalharam-se cartazes com as frases "Macron, presidente dos ricos", "Macron e seus patrões" e "quando o cargo já não tem voz, é o dinheiro que reina".

No fundo, diz o sociólogo francês Michel Villette, indignar-se contra os poderosos é uma questão moral — a ideia de moralidade que levou a população a decapitar membros da monarquia durante a Revolução Francesa. Para Villette, o que se questiona agora é a incapacidade do presidente de agir "como um bom rei capaz de proteger os cidadãos contra o horror econômico".

O sociólogo italiano Francesco Saraceno, do Observatório Econômico Francês da Sciences Po, concorda. "O problema não é aumentar a idade mínima da aposentadoria; o problema é que esse dinheiro deveria estar vindo de outros lugares, dos mais ricos", diz. E ironiza: "Cada país tem particularidade. Na Itália, a população 'protesta' sonegando impostos. Os franceses têm o hábito de cortar a cabeça do rei".

Entretanto, nem todo coquetel molotov tem uma chama revolucionária contra os ricos e os poderosos. E nem todo cartaz empunhado na avenida Champs-Élysées é especialmente democrático — ou até moral.

Recentemente, a polícia de Paris e o Ministério do Interior francês foram criticados por autorizar uma manifestação neonazista na capital, levantando discussões sobre os limites da manifestação política no país.

Segundo o departamento de polícia parisiense, não havia "risco à ordem pública", por isso eles não poderiam interromper a marcha dos neonazistas, que já aconteceu em anos anteriores, sem incidentes.

Desta vez, depois da pressão popular, o ministro Gérald Darmanin pediu para os prefeitos proibirem atos de ultradireita. "Vamos deixar que os tribunais decidam se a jurisprudência permite essas manifestações", disse à Assembleia Nacional.

O posicionamento provocou faíscas, principalmente porque as forças de segurança não têm tratado assim os protestos contra a reforma, inclusive nos panelaços - diferentemente do Brasil, onde as panelas retumbam nas casas, na França as "casserolades" ocorrem nas vias públicas. Nos atos de março, policiais foram gravados ameaçando até quebrar as pernas de manifestantes. O Conselho da Europa chegou a denunciar a violência policial nas manifestações.

Anfitriã da Olimpíada de 2024, Paris também tem sido palco de protestos contra os jogos e contra a participação dos atletas russos nas competições, devido à guerra na Ucrânia. Na internet há manifestantes se organizando para se inscrever como voluntários e depois boicotar o voluntariado, deixando os jogos desfalcados. A depender do desenrolar das "manifs", a chama olímpica pode dividir atenções com outras flamas até lá.

Procurado pelo TAB, o Comitê Olímpico Internacional não se manifestou.

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