O novo psicodelismo

Música de rezo e ayahuasca dão força à nova busca por equilíbrio e formas de terapia

O som sai da caixa e chega ondulando até meus ouvidos. Com a consciência expandida pelo chá de ayahuasca, meu corpo todo vibra na frequência de canções que falam sobre amor, respeito e gratidão. Deitado em um colchonete, eu danço com deuses que nunca ouvi falar. Quando os músicos cantam "sinta a vibração do seu coração", meu batimento cardíaco se equaliza com o barulho dos instrumentos. Quando os músicos cantam "sinta o pulsar do Grande Espírito", sinto o movimento frenético de cada célula do meu corpo. Em um ritual com a medicina sagrada dos indígenas, você não ouve a música: você é a música.

"Sinto que a gente faz esse tipo de som para nos transformar e para transformar a realidade em que a gente vive", explica o músico Vini Cousso, da banda Madre Terra. "As pessoas que nos ouvem também estão dispostas a isso", completa. O grupo de São Paulo não está sozinho. Ele faz parte de um gênero tímido, a música de rezo, que tem ganhado espaço por meio de ações como o Movimento Canarinho Branco.

Ao lado de veteranos como Leal Carvalho e Chandra Lacombe, o maestro Ale de Maria, formado em composição e regência pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), reúne santos, devas, totens e orixás em suas composições. Foi ele que idealizou o termo e o movimento, em Florianópolis, em 2011.

A música de rezo é uma música para os altares. E o altar é o próprio coração

Ale de Maria, maestro

Ale de Maria lembra que músicas do tipo sempre existiram. "Fazendo um recorte moderno, podemos encontrá-la dentro das práticas de umbanda e Santo Daime, que são religiões genuinamente brasileiras, mas também na MPB, com artistas como Dorival Caymmi, Ari Barroso, Gil, Caetano, Milton Nascimento", explica. É possível também notar o rastro deixado por Roberto Carlos, em canções que abordam Jesus Cristo ou Nossa Senhora Aparecida, e em artistas contemporâneos como Serena Assumpção e Luedji Luna. A diferença para os artistas do movimento, segundo o músico, é que para eles a conexão espiritual vem em primeiro plano, seja falando de deuses hindus, entidades da umbanda, ou tudo junto, por exemplo.

Por meio de mensagens positivas, o maestro acredita que a música de rezo tenha a capacidade de promover uma faxina no inconsciente, limpando e rompendo padrões que fazem mal. Para isso, conta com a ajuda do chá indígena feito a partir do cipó jagube e das folhas da planta chacrona: a ayahuasca. A bebida, que tem o uso religioso garantido por lei desde 1986, contém um psicoativo chamado DMT, a dimetiltriptamina. É ele que faz com que as pessoas consigam expandir a consciência e surfar em ondas sonoras sem soar como metáfora. Mas os efeitos do chá vão além das mirações psicodélicas de mandalas, fractais e luzes coloridas comumente relatadas.

REZO NA CIDADE

CURA DO ASTRAL

Em junho de 2018, a equipe da pesquisadora Fernanda Palhano, do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), publicou um estudo no periódico Psychological Medicine sobre o rápido efeito antidepressivo que a ayahuasca tem em pacientes com depressão profunda e que não respondem a tratamentos convencionais.

"Senti a força da ayahuasca me preencher por inteiro, integrei partes que eu nem sabia que existiam em mim", afirma Vini Cousso, que passou por episódios de depressão antes de fazer uso regular do chá e entrar para a Madre Terra. Pensar na possibilidade de cura para o mal que afeta mais de 300 milhões de pessoas no mundo, segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), não é exagero para os cientistas.

"Substâncias psicodélicas como a ayahuasca têm um impacto enorme porque trazem soluções a sofrimentos psíquicos para os quais não existem respostas na psiquiatria tradicional, e nem creio que vá ter", afirma o neurocientista Sidarta Ribeiro, vice-diretor do Instituto do Cérebro. De fato, a última grande novidade da psiquiatria foi a fluoxetina (Prozac), de 1986.

A psiquiatria vai ter que começar (e já está) a abraçar a psilocibina [dos cogumelos], o MDMA (metilenodioximetanfetamina), o LSD (ácido lisérgico) e o DMT para tratar de depressão, ansiedade, pessoas com traumas ou próximas do suicídio

Sidarta Ribeiro, vice-diretor do Instituto do Cérebro da UFRN

Em 2016, os Estados Unidos liberaram os estudos de fase 3 do MDMA, a substância presente no ecstasy, para o tratamento do transtorno de estresse pós-traumático em pacientes como veteranos de guerra e vítimas de abuso sexual. É a última etapa antes da aprovação para uso terapêutico, que deve acontecer em 2021. Até lá, mais pesquisas com seres humanos devem ser feitas, inclusive no Brasil, onde a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) já aprovou os estudos.

Além disso, pesquisadores da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e da USP (Universidade de São Paulo) fazem pesquisas com ibogaína, substância encontrada em uma raiz africana usada pelos pigmeus em seus rituais, para o tratamento de dependentes de crack, cocaína e álcool. Não à toa, o Brasil tem se tornado referência no que os cientistas vêm chamando de renascimento psicodélico, após essas substâncias voltarem a receber atenção - os estudos foram proibidos nos EUA em 1971, como parte da política de guerra às drogas do então presidente americano Richard Nixon, e a medida acabou adotada no resto do mundo.

AS DICAS DO GURU

Mas para o chá (e qualquer outra substância psicodélica) surtir efeito transformador é preciso tomar algumas medidas. Antes de ser expulso da Universidade de Harvard, em 1963, por fazer estudos sobre psicodélicos com alunos e de se tornar o guru da contracultura norte-americana, o psicólogo Timothy Leary criou os conceitos de "set" e "setting", usados até hoje. Para ele, os efeitos benéficos das substâncias dependem do estado mental da pessoa, do seu repertório e do seu humor, ou seja, do "set", bem como do ambiente em que vai acontecer a experiência, o "setting". 

É por isso que casos como o de Cadu, que assassinou o cartunista Glauco e seu filho em 2010, se mostram problemáticos - o uso do chá é contra-indicado para pessoas diagnosticadas com esquizofrenia, como o próprio Cadu, com bipolaridade ou que fazem uso de antidepressivos com inibidor de monoamina oxidase (IMAO). É por isso também que as substâncias só devem ser ingeridas em contexto ritualístico ou terapêutico - nunca sozinho ou em festas. Alguém que saiba preparar o ambiente faz toda a diferença. Não por acaso a música é uma peça importante em todas as religiões ayahuasqueiras: das mais tradicionais, como o Santo Daime, a União do Vegetal e a Barquinha, até os rituais indígenas e o xamanismo praticado nas cidades, nos quais a música de rezo cantada por grupos como Madre Terra, União do Arco Íris, Dois Sóis e Saravashivaya se firma.

A música é moduladora, ao mesmo tempo em que conduz a experiência, ela cria um setting que ajuda a proteger, delimitar e acolher. Ela faz parte do cenário, traz riqueza e, no caso do Brasil, traz uma cor cultural muito específica em cada uma das tradições. É uma beleza dentro do campo da ayahuasca

Luis Fernando Tófoli, psiquiatra da Unicamp e estudioso do chá de ayahuasca

O psiquiatra Luis Fernando Tófoli lembra dos estudos feitos com LSD pelo neurocientista Mendel Kaelen, do Imperial College London, que demonstram que a música funciona como o mapa da jornada a ser explorada durante a experiência psicodélica, evocando sensações de êxtase e transcendência. Tudo isso porque áreas que normalmente não se ligariam no cérebro passam a fazer conexões. 

"Quando a gente pensa nessa hiperconectividade do cérebro psicodélico -  e temos evidências de que isso aconteça no caso da ayahuasca -, essa modulação musical pode fazer brotar memórias, sentimentos, visões e conexões que podem ter um contexto transformador, ou, no caso dos transtornos mentais, pode ser até terapêutico", afirma Tófoli, que foi responsável pela playlist do estudo da UFRN. "É importante a gente pensar que, mesmo no setting científico de pesquisa, existe um lugar para a música na ayahuasca", completa.

O SENHOR DA GUERRA NÃO GOSTA DE LSD

A questão que se apresenta ao se aprofundar no assunto é: se as substâncias psicodélicas são tão eficientes assim, por que são tão marginalizadas? Para Sidarta Ribeiro, uma das respostas pode estar na falta de interesse da indústria farmacêutica. "Essas substâncias vão agir a partir de uma, duas ou três doses, então não há um negócio da China aí. Quem vai ganhar dinheiro com isso não são as grandes farmacêuticas, mas sim, no máximo, alguns poucos terapeutas. Será que interessa para a indústria que as pessoas parem de se tratar com remédios diários?", questiona o neurocientista. 

Junta-se a isso a eficiência ideológica da guerra contra as drogas, que colocou substâncias do tipo ao lado de narcóticos destruidores como a cocaína e o crack. Mas o preconceito não é recente. "Muitos povos antigos já se entregavam a longos períodos de êxtase, ao dançar e cantar para viajar no tempo e no espaço aos reinos profundos e além da imaginação", explica o xamã Léo Artese, que há 28 anos desenvolve trabalhos na área, em eventos e festivais.    

Ao longo da história, esse estado de êxtase guiado pela música foi interpretado como ameaça por muitos governos, com menção especial aos colonizadores europeus que viam com escárnio qualquer manifestação "não civilizada". No livro "Dançando nas Ruas" (Ed. Record), a escritora Barbara Ehrenreich lembra que, em 1884, por exemplo, autoridades britânicas baniram o uso dos tambores em Trinidad e Tobago, por considerarem-no subversivo, proibindo também a dança, as procissões e as assembleias com mais de 10 pessoas "munidas de paus ou outras armas". Em 1902, as forças de ocupação americanas vetaram os tambores de origem africana em Cuba, ampliando o veto a "todas as danças cerimoniais afro-cubanas" por "serem símbolo de barbárie e perturbadoras da ordem social".  

No fim do século 18, os taitianos usaram uma de suas festas tradicionais para zombar de padres que haviam tentado convertê-los. Décadas depois, eram os padres quem comemoravam a contenção da "leviandade natural dos nativos". Em 1820, os taitianos já usavam roupas europeias e não dançavam, nem cantavam. A eles, só restava beber licor, que também tinha sido oficialmente proibido. Eram os tristes trópicos lamentados pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss, nos anos 1950. "Um cenário de culturas rotas, economias arruinadas e populações melancólicas dispostas ao suicídio e entregues ao alcoolismo", escreveu Ehrenreich.

NÃO DANCE, TRABALHE

Para o teórico alemão Max Weber, um dos pais da sociologia, a resposta para as proibições está no surgimento da industrialização e do então novo mercado de trabalho. Como conta Ehrenreich, "as classes médias tinham que aprender a fazer cálculos, poupar e 'adiar a gratificação'; as classes baixas precisavam ser transformadas em uma classe trabalhadora disciplinada e sempre alerta - o que significava muito menos feriados e a nova necessidade de se apresentar sóbrio e na hora certa ao trabalho, seis dias por semana". Para uma população acostumada a trabalhar pesado, mas apenas em surtos sazonais, de acordo com as colheitas, a necessidade da labuta incessante foi um choque. 

Na França, a administração do rei Luís 14 reduziu os feriados e dias santos por conta de preocupações econômicas. Na Inglaterra, no fim do século 17, um economista estabeleceu que cada feriado custava 50 mil libras à nação, principalmente por causa da perda de horas de trabalho. Por fim, a reforma protestante também foi de grande ajuda na concepção da ideia de que, enquanto o trabalho eleva a alma, as festas a levam direto para o inferno. Não à toa, no Brasil, festividades como o Carnaval foram confinadas a poucos dias no ano. 

Além disso, o surgimento de uma cultura aristocrática, com artes "comportadas" como a música clássica e o balé, aumentaram o abismo entre os nobres e os pobres vulgares que se prestavam a episódios de "barbárie". Quando se está em êxtase, as barreiras sociais são dissolvidas -  uma rápida olhada nos Carnavais e festas de rua, em que "tudo é permitido", comprovam isso. O êxtase é, portanto, inconcebível para a manutenção da hierarquia social. Como escreve Ehrenreich: "Quando uma classe ou um grupo étnico subordina uma população a suas regras, passa a temer os rituais que fortalecem os subordinados como uma ameaça à ordem civil". 

Logo, aos poucos, a era moderna estabeleceu essa nova modalidade de espetáculo em que, em vez de participar, o público só podia assistir em estado de atenção congelada. Mas o desequilíbrio que se encontrava a sociedade norte-americana nos anos 1950 ajudou a derreter esse gelo. Como observa o sociólogo Daniel Bell, ao mesmo tempo em que as pessoas eram induzidas a trabalhar o tempo todo e a poupar, elas também ouviam o chamado da publicidade para gastar e aproveitar o aqui e agora.

AUMENTA QUE É ROCK'N'ROLL

Quem mais se aproveitou desse carpe diem social foi um ritmo recém surgido que escandalizava os adultos e encantava os jovens na mesma proporção, durante a década de 1950, o rock, que mais a frente iria culminar no surgimento da revolução psicodélica servida na bandeja da filosofia hippie. Mesmo sem saber, as primeiras pessoas que se permitiam levantar de suas cadeiras e dançar ao som do rock estavam anunciando o retorno dos rituais extáticos reprimidos séculos antes - a histeria beatlemaníaca que o diga.

"Transbordando dos teatros, o rock conduziu os fãs a locais mais expansivos e apropriados - 'salões psicodélicos' com luzes estroboscópicas, e os festivais de rock ao ar livre de Monterey a Woodstock. Nesses cenários, os jovens começaram a reunir os antigos ingredientes do Carnaval: 'fantasiavam-se' com calças jeans rasgadas e camisetas desbotadas, vestidões, plumas e cachecóis ondulados", escreve Ehrenreich. 

Para esses jovens, os momentos de encontro não eram só a interrupção temporária de uma vida dedicada ao trabalho, eram também a certeza do surgimento de uma nova cultura que daria lugar à repressão potencializada ao longo de anos. E os psicodélicos tiveram um papel importante nessa tomada de consciência. Foi por esse motivo que, no contexto da Guerra do Vietnã, o psicólogo e rei dos psicodélicos Timothy Leary foi tachado pelo então presidente Nixon como o homem mais perigoso dos Estados Unidos. Ao seguir o lema de Leary "turn on, tune in & drop out" (algo como "se liga, entra na onda e cai fora [do sistema]"), os jovens que tomavam LSD não queriam lutar em guerras que não fossem as suas.

VIAGEM AO CENTRO DA MENTE

Apesar das constantes tentativas de reprimir esses impulsos de celebração, eles persistem, como uma mancha gigante e impossível de limpar no modelo conservador de sociedade. Quando o Irã, por exemplo, um país longe do ideal de liberdade ocidental, se classificou para a Copa do Mundo de 1998, o que se viu foi algo inédito. Segundo a revista "Newsweek", "as mulheres rasgaram os véus obrigatórios, os homens distribuíram vodca em copos de plástico até para adolescentes que dançavam pelas ruas, sendo essa bebida terminantemente proibida".  

O fascínio pelo êxtase e pela exploração da consciência sempre encontram formas de se manifestar. Assim, o interesse cada vez mais crescente pelos modernos rituais psicodélicos, sobretudo aqueles com ayahuasca praticados no Brasil ao som das músicas de rezo, surgem como uma espécie de resposta ao ritmo acelerado de uma sociedade que beira o desencanto. 

E, ao falar sobre amor e desapego em um momento no qual o discurso de ódio se destaca e em que as posses se sobrepõem às virtudes, os rezadores adquirem um status punk de subversão. Ou como escreve o ídolo new wave David Byrne, em "Como Funciona a Música": "Parece que os detentores do poder não querem que gostemos de fazer coisas por nós mesmos - eles preferem estabelecer uma hierarquia cultural que desvalorize nossos esforços amadores e estimule o consumo em vez da criação ".

Essa mudança de percepção sobre a realidade reflete em vários aspectos. "Hoje, na banda, todo mundo é vegetariano, por exemplo, porque a gente caminha para isso: para o consumo consciente, boicotando coisas que a gente não acredita", explica Beto Yamani, da Madre Terra, seguindo um raciocínio recorrente em quem faz uso frequente do chá. "A cura não é só tomar a medicina, a cura é você se cuidar, é você mudar seus hábitos." Ou como explica Endy Maghin, também integrante da banda: "As pessoas falam: 'Ah, você vai lá, toma o chá e volta iluminado'. Mas você não volta outra pessoa, você só expande a consciência para ver coisas que antes não via, a manutenção disso é o mais importante".

Se o uso da ayahuasca exige preparação mental e física, o consumo da música tocada nos rituais dispensa contra-indicações. "Qualquer pessoa pode ter o conhecimento da música de rezo. E sem as medicinas da floresta você também pode mergulhar nisso. É só parar, respirar e entender o que a música quer passar. Porque a chave são as mensagens que vão destravar os medos", diz o músico Rodolfo Mazzotta, também da Madre Terra.   

Para Joy Trajano, da banda Vozes de Gaya, o gênero musical da qual ela faz parte surge como um travesseiro em que a cabeça cansada da sociedade pode repousar. "Não é uma música que está no rádio, que está na televisão, mas é uma música que já está fazendo parte e despertando muita gente", explica. "As pessoas estão cansadas dessa correria, principalmente quem vive em grandes metrópoles. Elas estão procurando coisas que as deixem mais tranquilas. Acho que é por aí que a música funciona."

Um conhecido ditado indígena usa dois lobos como metáfora para descrever os conflitos internos de todo ser humano. Um é o lobo do ódio, o outro do amor. "Ambos disputam o poder sobre mim", diz a passagem. "E quando me perguntam qual é o lobo vencedor, respondo: 'Aquele que eu alimento'." Assim como os sentimentos e as emoções, a música não é algo que se possa pegar com a mão. Ela adquire a forma da intenção que é colocada nela. Logo, no caso da música de rezo (em companhia das medicinas tradicionais da floresta), a música se torna justamente o alimento que vai fortalecer o lobo responsável por guiar os seres humanos a uma jornada infinita para dentro da mente.

Curtiu? Compartilhe.

Topo