Diário de uma turnê

Shows comemorando os 30 anos dos Racionais MCs têm Pai Nosso e puxão de orelha em bolsonaristas

Jeferson Delgado

Aqui é Jeferson Delgado, 21 anos, cria do Jardim Rosana, uma quebrada na zona sul de São Paulo, vizinha do Capão Redondo, base do grupo de rap que cresci ouvindo: os Racionais MCs.

Meu primeiro contato com eles foi quando meu pai fez um rolo em um celular que tinha MP3. Foi ali que ouvi pela primeira vez "Vida Loka Parte 1" e "Negro Drama". Eu era apenas uma criança, mas as letras representavam meu cotidiano.

O racismo não espera você crescer para vir até você. A realidade bate na sua cara quando seus amigos morrem, vão pra prisão e outros destinos tenebrosos. Por sorte, consegui percorrer outros caminhos e virei fotógrafo. Estava sem trampo, era camelô de bebidas e eis que a fotografia me dá uma esperança de profissão. Na correria, tive a chance de acompanhar a turnê de 30 anos dos quatro pretos mais perigosos do país. Encosta aí que o bagulho é louco, e o momento é histórico.

Florianópolis, dia 20 de julho de 2019. A turnê começou na capital do Estado em que apenas 1% da população é negra, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Mas a quebrada estava presente, o show estava lotado, com a energia intensa do começo ao fim. Isso me fez refletir que, apesar do grupo Racionais ser formado por pessoas negras, incluindo o pessoal da produção, pessoas de outras raças admiram a arte deles e aprendem sobre outras realidades.

Brasília, dia 3 de agosto. Aqui estou mais um dia ... na estrada. Do Capão até Brasília foram 14 horas de viagem. Dormia e acordava e não chegava nunca. O corre da produção é tão frenético que muitos trabalham dentro do ônibus em direção ao hotel.

No Distrito Federal, consegui ter um contato melhor com os caras. Fomos no quarto deles para gravar alguns takes e fotos para alimentar as redes sociais. Ice Blue estava acompanhado dos amigos em seu quarto, fazendo aquela famosa resenha, enquanto Brown curtia um som de sua playlist de funk. A passagem de som foi o momento perfeito para conhecer o local onde seria o show. O Ginásio Nilson Nelson ficou pequeno para a quantidade de fãs que o Racionais tem pela cidade.

No show, a comoção era tão grande que apareceu muita gente com discos de vinil. Cada um de uma fase - mas todas estavam devidamente representadas no setlist. É aquela coisa: "registre esse momento histórico, pois quem viveu, viveu". Racionais é um dos grupos de rap mais antigos do país. Eu sou da nova geração. Eu nunca fui a um show de rap onde os fãs levavam vinis. Foda demais.

Curitiba, dia 17 de agosto de 2019. Dessa vez, não tive a vivência de hotel e passagem de som. Estava em São Paulo, fazendo um trabalho. Cheguei em cima, e o clima do camarim era de concentração. Brown com sua caixa de som era quem comandava o som. Minutos antes de subir no palco, a banda toda se reuniu em um grande círculo para orar o Pai Nosso. O show em Curitiba foi marcado por um grande puxão de orelha de Mano Brown no público. Quando subiu um coro xingando o atual presidente, ele mandou: "Ninguém aqui votou no cara? Aí eu sou obrigado a acreditar no Ultraman, no Pato Donald, no Mickey. Tem que ser transparente parceiro, todo mundo erra", ironizou. E ainda mandou: "Qual cidade nós estamos mesmo? O juiz é da onde mesmo?". Dias depois, o vídeo viralizou.

Rio de Janeiro, dia 24 de agosto de 2019. Em todas as cidades que passamos, os Racionais arrastaram multidões. Mas o Rio foi de arrepiar com toda a energia. Marcado para começa à 1h da madrugada, a casa só lotou minutos antes, deixando a produção apreensiva. Havia muito trânsito na região por causa de outro show, o de Wesley Safadão. No minuto anterior do grupo subir no palco, era quase impossível transitar na pista.

Belo Horizonte, dia 14 de setembro de 2019. Eu pude entender por que a capital mineira é considerada como o celeiro do rap nacional. Não é à toa o apelido de "BH Compton", ligação com polo californiano de hip-hop, onde foram lançados artistas gigantescos como os americanos Ice Cube, Dr. Dre e Kendrick Lamar. O maior rapper de BH hoje é Gustavo Pereira, mas conhecido como Djonga.

Da primeira música, "Pânico na Zona Sul", até a última, "Vida Loka parte 2", a galera não parou de cantar. Era uma multidão contagiada pelo amor ao rap nacional.

Salvador, dia 4 de outubro de 2019. Foi o show mais doido da turnê. O público baiano é fervoroso. O show foi um Carnaval de emoções. Logo nos primeiros minutos já teve uma invasão de palco, que foi controlada pelos produtores. Mas como o próprio grupo canta, "não imaginavam o que estaria por vir".

Edi Rock foi o grande maestro da galera. Subindo sempre em uma caixa de som que estava em frente ao palco, o rapper fazia questão de pedir para galera que cantasse ainda mais. Na hora de "Vida Loka parte 2", ele abriu o champagne e comemorou o encerramento do show jogando bebida para cima, pique de piloto de Fórmula 1.

Segundos depois, só consegui ver os fãs pulando a grade para abraçar os integrantes. Nitidamente o amor lá pelos Racionais é gigantesco. E eu me vi em um certo momento de dúvida, não sabia se fazia fotos, ajudava o Edi Rock a voltar ao palco ou guiava o pessoal de volta para a pista. No final, deu para fazer os três.

Recife, 5 de outubro de 2019. O que dizer de Recife? Vou começar falando da recepção. Dezenas de fãs com camisetas e faixas esperavam o grupo no portão de desembarque. Foi a primeira vez que vivi isso e foi sem igual. Tinha até fã com caixa de som mandando a rima na hora, bagulho doido. Depois de autógrafos, fotos e abraços, conseguimos embarcar nas vans para o traslado até o hotel.

Mal deu tempo de desfazer as malas e corremos para passagem de som. Tudo isso em poucos minutos, pois o cronograma estava apertado. Mas nada saiu do controle, aqui o time joga com a marcação em cima, porém sabendo administrar a posse de bola.

Na hora do show, o negócio foi frenético. Era gente em cima das costas do outro, era fã cantando de olho fechado. Foi algo tocante.

São Paulo, dias 10, 11 e 12 de outubro de 2019. Nenhum lugar me deixou mais ansioso que São Paulo. Jogar em casa tem a pressão da torcida, né? Sabia que a responsa era maior: primeiro show foi a gravação do DVD dos 30 anos, algo histórico para todos. Dias após o último show, ainda não acredito que vivi esse momento. No segundo show, a vibe foi mais cabulosa ainda. Quem encostou nesse show foi o público que esgotou a primeira data antes da turnê começar.

São Paulo é foda, não tem como. Confesso que foi treta pra mim aceitar que estava chegando ao fim aquela fita. Foram tantas vivências, hotéis, camarins, check-ins, logísticas, fotos para as redes sociais em tempo real. É a definição da frase "quem viveu, viveu".

Quem comandou os bastidores e desbloqueou o caminho para a gangue passar: as mulheres. Comandadas por Eliane Dias, uma das maiores referências de mulher no mercado da música hoje no Brasil, todas minas da equipe se apresentaram para o público e foram aplaudidas calorosamente.

"Se for um sonho não me acorde nunca mais", conta Edi Rock na track "A vida é desafio". Essa frase resume muito bem o que foi essa turnê para mim: um sonho de moleque que jamais achei que iria realizar: fotografar a turnê completa do maior grupo de rap do país, os manos que melhor traduziram o Brasil verdadeiro. Um espaço de tempo vivido com todas as forças e sentimentos. Não é todo dia que se tem 21 anos e se vive um momento desses. Que fita!

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