País sem sintonia

Depois de integrar o Brasil por décadas, o rádio vive mudanças que podem provocar o efeito contrário

Clarice Nunes, 58, é cabeleireira. Ela mora no sítio em que nasceu, em Mairiporã, cidade da Grande São Paulo. O radinho na tomada e o volume no máximo garantem a trilha sonora enquanto trabalha no salão de beleza e cuida da casa. O marido, que é pedreiro, leva o outro aparelho para as obras. “Desde criança, com meu avô, o que gente escuta é AM. As FMs não pegam bem aqui. E tem até AM que anda sumindo”, conta Clarice. “Esse negócio de escutar no celular com fone [de ouvido] é ruim para trabalhar. Não sei se vou me acostumar”, completa. Seus comunicadores favoritos falam com ela pelo ar, através de ondas que saem do centro paulistano e viajam 60 quilômetros até aquela área rural. Mas, nos próximos anos, isso vai mudar.

Essas mudanças vão atingir também o Pantanal, a Amazônia, os sertões e muitos outros lugares onde não chegam televisão nem celular: só o rádio AM. Ao contrário da TV, a digitalização do rádio travou cinco anos atrás. Houve um choque de interesses entre as emissoras comerciais, de um lado, e as estações públicas e especialistas em comunicação, de outro. O impasse político virou estagnação tecnológica, e surgiu a alternativa da migração em massa para o dial de FM. A ideia dos empresários, com o aval do governo, é dar maior qualidade de som e mais conectividade com celulares e carros. E, com isso, ter melhor retorno de publicidade. O efeito colateral é que a mudança ondulatória da amplitude modulada (AM) para a frequência modulada (FM) vai diminuir drasticamente o alcance, abandonando justamente o público mais dependente desse modelo: as populações das pequenas cidades, campo, sertões e florestas. Ou seja, mais convergência e menos abrangência.

“A AM entra pelos igarapés até as comunidades ribeirinhas. Nas casas de farinha, o som é do radinho. Ele fortalece nossa identidade e traz conhecimento. Na Amazônia, ela é tão primordial como o WhatsApp para as pessoas da cidade”, afirma a radialista e pesquisadora Rejane Soares, que circulou muito rio acima e abaixo no Amapá. “Nas rádios pantaneiras ainda tem o tradicional programa de recados. Pessoas avisando que vão chegar de viagem, quem morreu, quem nasceu. O rádio é essencial ali, e a mudança para a FM vai prejudicar essa população”, conta Daniela Ota, professora da UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul) que estudou as rádios da fronteira brasileira com Paraguai e Bolívia.

A GUERRA ESTÁ NO AR

Ainda não inventaram um imposto sobre a respiração, mas o ar é tão estatal como o subsolo nacional. Por meio de outorgas, o Governo Federal permite a utilização por parte de empresas e entidades das frequências que atravessam a atmosfera. Onde a maioria enxerga o vazio, existe uma batalha econômica que tende a aumentar nos próximos anos. As ondas invisíveis são disputadas por grandes redes nacionais de rádio e TV e pelas multinacionais de telefonia e suas bandas largas, além de satélites, radares, antenas parabólicas etc. A mudança já começou com as TVs em UHF dando lugar ao 4G de internet, além da digitalização da TV ter aberto espaço para estender o dial de FM e albergar as emissoras migrantes que vão sair do AM.

Quando as antenas de 5G se multiplicarem na paisagem brasileira na próxima década, o conflito de interesses vai estar estabelecido definitivamente. Isso porque essa quinta geração de tecnologia precisa de bandas extensas e estáveis não apenas para acelerar a internet do consumidor final, mas também para conectar as máquinas de produção da indústria 4.0 das grandes corporações. Já há um forte lobby sobre o MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações) e a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) tanto para destinar mais espaço para o 5G quanto para não mexer na sintonia das TVs e rádios.

Por enquanto em estado de espera, o rádio com transmissão digital pode voltar à agenda em um futuro próximo - afinal, usa de forma mais eficiente esse espectro radiofônico tão concorrido por todas as formas de comunicação. A Noruega já desligou suas estações nacionais analógicas em 2017. A Inglaterra e a Dinamarca marcaram para 2019 a digitalização total das emissoras. Até 2025, Alemanha, República Tcheca, Suíça e Suécia vão completar o processo. Na Índia, a principal rádio do país, a estatal All India Radio, tem 420 estações (AM e FM) que atingem 99,2% da população e 92% de seu território. Tudo digital e em um país com dimensões continentais como o Brasil, que prefere atualmente diminuir a área de cobertura de suas rádios com a migração analógica. 

AS VOZES QUE CAEM DO CÉU

O rádio foi o primeiro veículo integrador do Brasil. Naquela década de 1930, o plano do então presidente Getúlio Vargas era centralizar o poder no Rio e no Governo Federal e reduzir a influência de poderosos locais. Depois, o aparelho valvulado invadiu a sala dos brasileiros e se transformou no centro da vida cultural, esportiva e política do país nos anos 1940 e 1950, durante a chamada “Era do Rádio” ou, se preferir, “era da comunicação de massa”.

Dois efeitos disso são conhecidos. Os times de futebol do Rio e de São Paulo ganharam muita torcida no Nordeste devido às transmissões que cruzavam o território. Por outro lado, os ritmos nordestinos ficaram populares no Sudeste graças ao sucesso de Luiz Gonzaga nos auditórios da rádio Nacional e em outras emissoras, trazendo a cultura do sertão antes mesmo que as levas de retirantes viessem ser mão de obra na industrialização dos anos 1960 e 1970 e misturassem os costumes regionais.

“Agora o rádio está cada vez mais segmentado. Cada um escuta seu podcast preferido e monta listas de música nos serviço de streaming. Antes o público era fiel às emissoras”, afirma Magaly Prado, professora e autora do livro “História do Rádio no Brasil”. Nesse meio tempo, o país deixou de de ser rural para virar urbano. Em 1940, 70% dos brasileiros moravam no campo. Hoje, são 16%, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Um outro levantamento, feito pela economista e cientista social Tania Bacelar, calcula em 36% a população agrária – isso se contarmos os municípios com menos de 5.000 habitantes, que podem ter áreas urbanas, mas que dependem do trabalho da terra. É nessa parcela dos brasileiros que a migração para o FM será especialmente impactante.

Com 650 estações já migradas, o desligamento de muitas dessas antenas de AM teve literalmente um último suspiro. Em Irati (PR), a locutora ficou com a voz embargada na última emissão da Najuá AM. “Olá, ouvintes. Nem vou falar muito porque eu estou muito emocionada mesmo...” A voz teimava em não sair da boca. Minutos depois foi a vez da antena ser calada. No lugar, surgiu a Super Najuá FM. A história se repetiu quando Rádio Clube de Guaxupé (MG) apagou o transmissor que emitiu aquela frequência AM por 70 anos. “Olha, difícil falar... [o radialista tira com o dedo a lágrima do rosto] Trocaria tudo na vida por continuar no AM com a felicidade que ele nos proporcionou.” O sinal AM costuma percorrer, em média, o dobro ou o triplo do alcance que o FM tem - à noite é ainda maior a diferença, por conta das ondas médias baterem na ionosfera (camada que está a partir de 60 quilômetros de altitude) e voltarem para o chão.

AS ONDAS E SEUS ABISMOS

O que acontece no rádio é tendência no mercado de comunicação. A TV e a internet também estão se aglutinando nos grandes centros, seguindo o mantra comercial de investir onde há retorno. Tanto é assim que o próprio presidente da Anatel, Juarez Quadros, disse que as comunicações por satélite ainda vivem na era do Tratado de Tordesilhas, por privilegiar as regiões próximas à costa. “Hoje temos 44 satélites sobre o país. Os de nova geração ainda são poucos. Em função da concentração econômica no litoral e no máximo no Centro-Oeste até Brasília, os satélites cobrem plenamente essa área. A medida que avançamos para oeste isso vai diminuindo”, afirma. No extremo oeste do Brasil, por exemplo, só há disponibilidade de banda larga digital por meio de um satélite da estatal Telebras.

Já quanto a TV digital, os kits gratuitos de conversão, distribuídos pelo governo para 12 milhões de famílias de baixa renda (apelidado de “bolsa novela”), priorizaram cidades até 100 mil habitantes. Por seu lado, o sinal analógico deve continuar para municípios com até 20 mil moradores em 2019, ano que marcaria a digitalização total no país.

Um levantamento do Atlas da Notícia mostrou que existe um deserto informativo no Brasil: 25% dos municípios brasileiros não têm emissoras locais de rádio e TV e, consequentemente, não possuem um noticiário regional. Dessa forma, o conteúdo consumido nessas áreas também é centralizado, vindo de Rio, São Paulo ou da capital estadual. A tendência disso é aumentar, afinal, muitas das emissoras da migração interior afora devem virar retransmissoras de redes paulistanas ou cariocas, interessadas em expandir suas marcas após a diminuição de alcance provocada pela troca de AM para FM. “Produzir conteúdo é caro. E quem tiver o melhor conteúdo vai se estabelecer nesse FM com mais emissoras”, afirma Paulo Machado de Carvalho Neto, diretor da Rede Jovem Pan e presidente da Aesp (Associação das Emissoras de Rádio e TV de São Paulo). 

O CORONELISMO WIRELESS

O canto da sereia do FM é o aumento da qualidade do som e, em consequência, a maior atratividade para os anunciantes. O rádio tem, em média, apenas 4% do chamado “bolo publicitário”, com 13 de cada 14 ouvintes preferindo o FM, segundo pesquisa do Ibope. O maior exemplo de sucesso desse processo foi uma estação de Lajes (SC) que aumentou em 700% seu faturamento depois de migrar.

Com o avanço tecnológico, as metrópoles ficaram poluídas de sinais radioelétricos que interferem nas ondas médias. Cercas elétricas, aparelhos de ar-condicionado, fios de alta tensão e até controles remotos atrapalham o caminho do AM rumo aos ouvintes e anúncios. Mas há emissoras de AM que não querem sair de onde estão. Um caso é a Mirante AM, de São Luís (MA). Ela pertence à família Sarney, assim como uma FM, uma rede de TV e um jornal. A cobertura da estação AM abarca boa parte do Maranhão, estado que o clã está acostumado a dominar politicamente. Como o conglomerado de mídia já tem uma FM na capital, transformar sua AM em FM seria reduzir sua amplitude e sua influência na região.

Esse é um exemplo do que academia e imprensa chamam, desde o fim do século 20, de “coronelismo eletrônico”. Muitos políticos são donos de rádios comerciais e controlam estações comunitárias nas cidades medianas do interior – a fórmula de domínio inclui por vezes TVs, universidades privadas, hospitais e outras atividades econômicas do local. Em geral são famílias tradicionais da região, que elegem prefeitos, vereadores, deputados estaduais e federais – e estes pressionam o governo por mais outorgas, concessões e mais leis que os beneficiem.

SÓ O RÁDIO NÃO É DIGITAL

A política travou no Brasil a existência do rádio digital, que era uma alternativa para o meio não perder abrangência e importância. Inclusive, essa tecnologia pode servir como uma internet sem cabo, transmitindo, além do som em multicanais, dados, textos, interatividade, imagens e vídeos por ondas no ar para regiões em que a fibra óptica não chega.

Após a definição em 2007 de que a TV digital adotaria o padrão japonês, o Ministério das Comunicações recebeu forte lobby norte-americano para aceitar o padrão de rádio digital dos EUA, o que seria uma forma de compensação pela derrota na disputa televisiva. As grandes redes de rádio também eram a favor desse padrão, porque mantinha as mesmas frequências do analógico. Mas as rádios públicas e os pesquisadores de mídia eram contra — afinal, era mais prático, barato e convergente adotar o padrão europeu DRM. O então ministro das Comunicações Hélio Costa publicou em seu último dia de mandato (30 de março de 2010) uma portaria que instituiu o Sistema Brasileiro de Rádio Digital, sem especificar o padrão a adotar. Resultado: o rádio digital deu tilt no país. As comissões que discutem sua implementação ainda existem, mas não se reúnem desde 2013.

O rádio não virou uma internet. Mas ele foi parar na web, com a popularização dos podcasts e dos serviços (pagos ou não) de streaming de música. Até no WhatsApp surgiram programas radiofônicos. Propagada desde Itaperuna (RJ) por 15 grupos, a “Rádio Web Clube Sertanejo” chegou a mais de 3.000 ouvintes com programas de quatro minutos, com música e notícias sobre esse nicho. Há exemplos similares no interior de São Paulo (cidades de José Bonifácio e Barretos) e em Fortaleza (CE).

Os smartphones têm chip e antena para receber FM sem precisar de conexão paga ou wifi, mas alguns fabricantes não habilitam o serviço. É o caso dos tão celebrados iPhones. A Apple, que produz o aparelho, está sendo pressionada nos EUA para disponibilizar o rádio, e o principal argumento é que essa mídia tem mais estabilidade e cobertura durante os desastres naturais do que o sinal de celular, o que poderia auxiliar nos resgates e evacuações.

“O grande problema é que o serviço de rádio é gratuito. Quando ele vai para a internet, ele passa a ser pago porque você precisa manter uma linha e um pacote de dados. E isso faz parte de uma tendência de que tudo passe a ser pago nas comunicações, deixando de lado a lógica social de aumentar o acesso à informação”, analisa André Barbosa, especialista em rádio que já foi professor da USP e da Universidade Metodista.

O SINAL SE EVAPORA

Ao sintonizar o AM, fica claro a onda que emerge e submerge na atmosfera ao mais leve toque. Ao mexer no volume, o alto-falante crepita. Tudo isso parece um eco do passado, mas ainda há uma força residual entre a população das classes C, D, E e nas faixas etárias acima dos 50 anos. “Eu sou escutado por 160 mil pessoas por minuto. E eles têm muita confiança e fidelidade. É o povão da Grande São Paulo. Nos Jardins, Pinheiros, Perdizes (bairros nobres da zona Oeste), ninguém me escuta. O que eu falar eles seguem. Por isso, eu tenho que ter muito cuidado com o que eu falo. Não vendo remédio porque eles vão lá e compram”, conta Paulo Lopes, radialista há cinco décadas.

Nazilda Santana é a presidente do fã-clube de ouvintes de AM em São Paulo, conhecido como “as nanazetes”. Ela trouxe de Canavieiras (BA) o vício do barulho mono. A empregada doméstica fica com o rádio ou o celular ligado 24 horas no AM, mesmo trabalhando e dormindo. “É meu companheiro de todos os dias. Não consigo ficar em silêncio. Sou muito agitada. Converso sozinha com o rádio e adoro mandar mensagens com as minhas opiniões, até de madrugada”, conta a ouvinte que se considera amiga dos locutores cultuados.

Os efeitos da migração nas emissoras e audiências ainda não foram totalmente sentidos. Mas um grupo de 110 pesquisadores, capitaneados pelas professoras Nair Prata e Nélia Del Bianco, estão pesquisando as mudanças em todos os Estados e vão publicar em livro o levantamento.

O rádio AM analógico é aquele senhor centenário que muita gente já julgava morto. Ele próprio sabe que seus dias estão no fim e se vê como um fóssil vivo ou uma peça de museu. Seus espectros de onda, porém, ainda cruzam os ares, lembrando que há muitas coisas que existem e não se vê. Não por nada, ainda tem muita gente que coloca um copo de água em cima do rádio para ser abençoada pelas dezenas de padres ou pastores radiofônicos.

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