A LUTA DA RAINHA

Crise arruinou 3 dos 7 estabelecimentos da empresária Lilian Gonçalves em SP. Agora, ela luta por reconquistas

Marcus Couto (texto) e Carolina Valentim (fotos) Colaboração para o TAB, de São Paulo

Enquanto caminha pelo interior da Japan Tower, edifício de cores nipônicas no número 78 da rua Canuto do Val, em São Paulo, a empresária Lilian Gonçalves, 70, identifica desordens mínimas em seu reino de bares e restaurantes.

"Precisamos cobrir isso com tinta", disse a uma de suas parceiras de longa data, apontando para furos de parafuso à vista na parede de um dos andares superiores do edifício.

Pouco antes, ela havia pedido mudanças nas flores que decoram as mesas. Dois funcionários se questionavam onde exatamente ela queria que estivesse posicionado o dispensador de álcool em gel - um metro antes ou depois da porta de entrada?

Desde 2020, um agente microscópico vem desafiando a forma com que Lilian controla seu império do entretenimento, um dos mais famosos do centro de São Paulo, que incluía os bares Biroska e Coconut, famoso pelas salas de videokê.

O Sars-CoV-2, vírus causador da covid-19, acertou em cheio os negócios da filha do cantor Nelson Gonçalves. Com as restrições de circulação e aglomeração, suas casas, sinônimo de aglomeração em São Paulo, precisaram fechar. Biroska, Tudo Com Banana e Coconut, com capacidade para até 3,5 mil pessoas somadas, foram permanentemente desativadas, e os espaços alugados para um sacolão, que pretende ampliar sua oferta de frutas e legumes sobre as antigas salas de videokê.

Cerca de 300 pessoas foram demitidas. Outras tiveram suas rotinas de trabalho alteradas. "O que você tem na sua frente é uma empresária desesperada", disse a mineira na primeira conversa com o TAB, cobrindo o rosto com uma máscara de tecido brilhante, numa mesa do lado de fora da Japan Tower. "Tenho 51 anos nessa rua, de noite, e em nenhum momento passei por uma situação tão grave, com tantas dores, temores. O maior medo é não saber o que vai acontecer."

Quando ficou sabendo que havia um bar à venda na esquina das ruas Veridiana e Canuto do Val, no bairro de Santa Cecília, algum tipo de intuição motivou Lilian a fazer uma oferta pelo lugar -- hoje, algo em torno de R$ 10 mil.

Ela mal chegara aos 17 anos, e o dono não deu a menor confiança ao que ela dizia. Perguntou onde estavam seus pais. "Expliquei que era eu mesma quem estava comprando. Ele disse que não ia negociar comigo, que era uma criança. Mas insisti, disse que ia pagar direitinho." Foram 72 prestações.

Em 1970, ainda adolescente, Lilian não era empreendedora de primeira viagem. Ela já tinha o bar Toca da Angélica, na avenida de mesmo nome, ali perto.

"A Canuto do Val era uma rua bastante deserta, escura, abandonada. Largada, mesmo. O bairro também não era muito popular em 1970. Mas uma coisa espiritual me falou para insistir nessa casa, que ela seria o meu sucesso." Surgia aí o bar Biroska, conhecido até o fechamento como "Casa dos Artistas".

"Uma sequência de ideias inovadoras", segundo ela, manteria vivo o interesse do público e da imprensa pelo Biroska: comandas individuais, mesas externas, petiscos como mandioca frita, caldos e espetinhos.

Outro fator para o sucesso foi o acolhimento da classe artística, desde o começo. A cantora Edith Veiga, por exemplo, sucesso nos anos 1960 com músicas como "Faz-me Rir", foi uma das que manteve contato com seu público nas casas da Rede Biroska.

Ela conta que conheceu Lilian nos bastidores da TV, e que formaram uma amizade que dura até hoje. Edith cantava no Bar do Nelson, inaugurado em 2007 também na Rua Canuto do Val, como homenagem de Lilian ao pai, até a interrupção das atividades por causa da pandemia.

O bar está voltando aos poucos, e Edith diz que também está ansiosa para voltar. "Sinto que nunca saí daqui", diz Edith, sentada em um dos sofás do Bar do Nelson, iluminada pelas luzes azuis e vermelhas do interior da casa.

O músico Maruan Jamal Khalil, 45, encontrou emprego nas casas de Lilian Gonçalves em 2000 — primeiro como cantor, depois como diretor musical, até ocupar o cargo de diretor de marketing do grupo.

O fechamento o afetou emocionalmente. "O Biroska era o meu xodó. Naquele palco passou tanta gente importante. Pode parecer uma coisa besta, mas eu não entrei no Biroska ainda."

O interior do Biroska e do Coconut estão cobertos de entulhos, enquanto não começam as obras de expansão do sacolão. Espalhadas, memórias de noites cheias - paetês brilhantes, flyers de festas e, no caso do Coconut, estátuas de vacas coloridas da Cow Parade, adquiridas por Lilian, presas ao teto por cabos de aço, sobre pilhas de cacos de concreto. O neon do Biroska repousa sobre o palco.

O anúncio dos fechamentos foi feito em março, num evento para funcionários, que ouviam da calçada a própria Lilian falar do lado de fora da Japan Tower, com auxílio de sistema de som, conta Maruan. Os cerca de 300 funcionários dispensados foram avisados de seu desligamento individualmente.

A amizade formada com a dona ao longo dos anos é uma das coisas que ainda o motivam. "Às vezes ela me liga e fala, 'Maruan, meu karaokê parou de funcionar'. E no fim é só um cabo solto. Existe uma amizade além do profissional. São muitos anos de Lilian Gonçalves." Hoje o músico trabalha parte do tempo na rede de Lilian, mas complementa renda como motorista de aplicativo.

O cantor e ator Tainan Miguel Porcel, 34, tem trabalhado na portaria do Parque da Aclimação, aferindo a temperatura dos visitantes e lhes oferecendo álcool em gel. Foi a forma que ele encontrou de continuar trabalhando depois que suas apresentações como parte do elenco do musical "A Bela e a Fera" foram canceladas.

Tainan era um dos atores teatrais que aproveitavam os generosos descontos oferecidos pela Rede Biroska em suas comandas, quando suas peças estavam em cartaz. "Toda peça de teatro tem apoio da Rede Biroska", diz Tainan. "Nesse sentido, a Lilian é muito importante para o artista. Depois de todas as peças de estreia, íamos para o bar dela. Todo final de temporada, a mesma coisa. Nos encontrávamos lá. No Brasil, esse apoio ao teatro é difícil, e ela sempre nos apoiou."

Sua casa favorita é o Frango Com Tudo, também na Canuto do Val, que ainda funciona e aos poucos retoma as atividades, com as flexibilizações da prefeitura. O nome do restaurante é uma referência a um prato criado pela própria Lilian. "As festas de aniversário aconteciam no segundo andar, que tem karaokê. Já cheguei a encontrar lá a Claudia Raia, o Miguel Falabella...", diz Tainan. Quando saía das aulas em uma escola para atores, do outro lado da rua, o Frango também era destino certo da cerveja à noite.

Tainan é parte do grupo dos cantores de karaokê que ficaram órfãos do Coconut com seu fechamento. Foi lá que ele venceu um dos seus três campeonatos de karaokê. O ator conta que começou a aprender a cantar ainda na igreja evangélica que frequentava, e que usou o dinheiro conquistado em um dos torneios para bancar a ida de um cantor gospel para sua igreja.

"O som do Coconut era muito bom", explica ele em entrevista por telefone para o TAB. "Eu gosto de ir no karaokê porque lá é diferente de um show, não tem a mesma cobrança. Você não tem que cantar perfeitamente, interagir perfeitamente com o público, estar sempre sorrindo. É menos profissional, você pode se divertir, dar risada com os amigos."

A primeira máquina de karaokê da Rede Biroska foi instalada dentro do bar Espetinho, em meados dos anos 1980. Faz sentido que, em 2010, o mesmo Espetinho desse lugar ao enorme Coconut, um complexo de 4 mil m² com salas que abrigavam até 100 pessoas, divulgado como "o maior videokê da América Latina".

Mendel Bialowas, 60, é representante de vendas de doces mineiros e de uma cocada recheada de Petrolina (PE). Mas ele sustenta, também, uma identidade alternativa - bem conhecida pelos funcionários e por quem frequentava as casas de Lilian Gonçalves: a de assíduo cantor de karaokê.

O carioca conheceu o hobby num momento difícil de sua vida, em que passava por um divórcio. Foi na cidade de Teresópolis, em 2001, que ele teve a "revelação".

Andava pelas ruas de Teresópolis quando avistou um bar, no estilo de um pub inglês. No andar superior havia várias mesas com cadeiras e um palco. Um rapaz colocava as músicas. Foi ali que aprendeu a cantar. "Virei um rato de karaokê", conta.

Depois de se mudar para São Paulo, em 2007, foi cantar em bares coreanos no bairro do Bom Retiro -- o único ocidental, lembra ele. "Você entrava e tinha um painel do Rio de Janeiro lindo. O pessoal cantando só em coreano?" Mas, numa noite, o bar estava fechado para a realização de uma festa de casamento. A dica que Mendel recebeu do porteiro foi procurar um tal de Coconut, perto do metrô Santa Cecília. Foi e nunca mais deixou de frequentar. A relação durou até o fechamento da casa.

Sua sala favorita era a Hebe, que segundo ele, tinha de longe a melhor acústica. "Era extensão da minha casa", diz. Entre suas melhores memórias, ele conta do suco de morango com leite condensado, e da vez em que recebeu um beijo na boca de uma mulher desconhecida, depois de cantar uma música.

O desmonte do Coconut foi um dolorido processo de seis meses. Lilian também estava lá para apagar as luzes do gigante da Canuto do Val.
"Participei ativamente. Todo mundo que estava lá tinha que ajudar. Era muita coisa, e vendemos muitas delas, até os fios. Foi uma surpresa. Não imaginava que alguém compraria fios velhos. Fizemos R$ 30 mil só vendendo fios", conta Lilian.

Apesar de todos os problemas que a pandemia trouxe para seus negócios, Lilian diz que ainda se considera afortunada, por ter conseguido alugar os imóveis.

Sobre a possibilidade de sair de cena no pior momento da pandemia, Lilian diz ter considerado essa alternativa. "Pensei que talvez tivesse chegado minha hora. Estou com horas extras garantidas, sempre trabalhei. Pensei, 'quer saber? Vou fechar tudo'. Mas é mais forte do que eu. Nunca desisti de nada, nunca aceitei perder nada."

Na última entrevista que ela concedeu à reportagem, Lilian já comandava as movimentadas reaberturas do Frango Com Tudo e do Bar do Nelson, ambos com capacidade para 250 pessoas, sempre seguindo as orientações da prefeitura, ela faz questão de frisar. Desses dois, apenas o Frango tem videokê, mas este ainda estava desativado.

A Rainha da Noite faz planos. Fala em focar no público jovem, pois considera que muitos dos mais velhos, depois da covid-19, não voltarão a frequentar seus bares como antes. Restaram Bar do Nelson, Siga La Vaca, Japan Tower e Frango com Tudo.

Quando começou na Canuto do Val, Lilian chamou atenção por dar o nome de Biroska à casa. Quem sabe seu próximo empreendimento não será o Siga los Cringes? "Eu sou noite", diz Lilian. "Sou entretenimento."

Topo