Rebobinando o streaming

Videolocadoras resistem, se reinventam e ainda têm clientela fiel na cidade de São Paulo

Letícia Naísa e Daniel Lisboa Do TAB Reinaldo Canato/UOL



Mildredes, Luiz e Trajano fizeram uma aposta para ver qual deles seria o primeiro cliente da videolocadora que abriria na esquina. O ano era 1987.

Mildredes foi a cliente número 001 da Relax Vídeo Locadora porque tinha uma vantagem: morava bem em frente. Todos os dias, olhava pela janela para ver se já estava aberta — assim ganharia a corrida de Luiz e Trajano, os clientes números 002 e 003. "Quando chegava lançamento, os três ficavam de prontidão na porta", conta Paulo Bueno, 51, farmacêutico e herdeiro da carteirinha 001 de Mildredes,75, sua mãe.

Todo Natal, Bueno é lembrado de quando alugou um filme que horrorizou sua avó. "Estava todo mundo reunido em casa e me pediram para buscar um filme policial. Não lembro o nome do que eu peguei, mas tinha uma cena em que o policial pegava a esposa o traindo na cama. Minha avó ficou muito irritada e saiu da sala, achou um absurdo", conta, dando risada por trás da máscara. "Lembra do filme que você alugou para a vovó?" é a frase que ouve pela vizinhança, sempre que a história é recontada.

Na mesa do lado de fora do salão da Relax, hoje atendendo como Suprema Pizza Cine, Maria Amélia de Toledo, 59, e Vera Lúcia Pataquini, 58, as proprietárias, têm muitas outras lembranças. A primeira delas é a do começo de tudo. A história da videolocadora começou com uma ida das duas ao cinema para ver um filme do Mazzaropi, junto com o pai de Vera. O resultado da paixão familiar pelo cinema está nas prateleiras da loja, com mais de 2 mil títulos e um acervo de quase 5 mil, em DVD e Blu-Ray.

As fitas em VHS por ali já se foram.

Mas a nostalgia precisou se reinventar para sobreviver. Hoje, o carro-chefe da locadora é a pizza. A casa tem decoração temática, do cardápio ao uniforme dos funcionários. No dia da visita de TAB, as mulheres da equipe estavam com um vestido rosa inspirado no tubinho preto do clássico "Bonequinha de Luxo".

"Três batidas na parede é mussarela, quatro é portuguesa e uma é de atum, a Amélia já sabe", brinca o farmacêutico, que divide parede com a Suprema. Ele conta que não assina nenhum streaming em casa, então quando quer ver alguma coisa, aluga. A locação custa R$ 10 por três dias e há um pacote mensal de R$ 50 que permite a locação de cinco títulos.

Desde o início da pandemia, as donas não compram novos títulos, porque não vale a pena. Mas, há algum tempo, o público procura os clássicos. É o caso de Paulo Zaidan, 24, que viveu pouco tempo a era de ouro das locadoras, entre os anos 1990 e a primeira década dos 2000. Assina algumas plataformas de streaming, mas prefere alugar na loja física o que não encontra na internet. "A gente fica muito refém do algoritmo, não consegue descobrir coisas novas, isso só com recomendação."

Tem VHS sendo alugado a cerca de 8 km dali. Na rua da Redenção, no Belenzinho (zona leste de São Paulo), Marcelo Martins, 56, deixa exposta uma fita dupla de "Titanic", o título mais alugado da história da Televideo, logo na primeira prateleira.

Em janeiro de 2021, alugou apenas 70 títulos. Por WhatsApp, dispara a lista de filmes e séries disponíveis para locação a R$ 5. Martins lamenta que muitos títulos originais das plataformas de streaming não saíram em DVD, mas parar de comprar novos títulos ele não vai, garante. Cerca de 40 clientes fiéis no bairro já viraram amigos.

Toda semana, há cinco anos, Milton Gomes Filho, 56, faz uma visita a Martins. Descobriu a Televídeo por acaso. Saiu de casa porque precisava comprar água num domingo de calor. O despachante aduaneiro vê pelo menos quatro filmes por semana com a família. A ida à locadora era um passeio até chegar a pandemia. Hoje, visita a Televídeo desacompanhado e de máscara, como manda o figurino, e passa o tempo conversando com Martins.

Há dois anos e meio, Martins trabalha de domingo a domingo sozinho. A loja virou uma loja de vinhos, brinquedos e alimentos nas prateleiras que um dia viveram abarrotadas de fitas e DVDs. Recentemente, também colocou o espaço para locação. Pôde ver sua loja como já foi no passado retratada no longa "Eu Sou Mais Eu", estrelado por Kéfera. A história se passa em 2004 e um dos personagens é funcionário de videolocadora. No computador, Martins mostra o trailer do filme, orgulhoso. "Muito legal ver isso aqui como era antes, e foi a maior bagunça aqui, fecharam a rua inteira."

De grão em grão, Martins ainda paga as contas. Vende muito sorvete e docinhos. Não fechou nenhum dia durante a pandemia e continua apostando em lançamentos. Tem cópias recentes em DVD de "Yesterday" (2019) e "Bohemian Rhapsody" (2018), além de todas as temporadas de "Game of Thrones". O acervo, que começou com 100 fitas VHS, já passa dos 9 mil títulos em DVD e ocupa dois andares do estabelecimento. Cada título é numerado e os gêneros são catalogados por cores. Os discos ficam guardados em envelopes com a própria caligrafia de Martins. Em cima da mesa, a tela do computador mostra o programa antigo onde cataloga as locações e os clientes. Chama-se Podium. "Não funciona nem com o mouse, só com o teclado", diz o dono da loja.

Gilberto Donizetti Petruche, 64, é dono do Videoclube Charada desde 1995. E ele próprio é uma charada. Por que manter o negócio aberto se a venda e locação de filmes mal pagam os R$ 2.500 de aluguel do espaço de 200 m² em Sapopemba, na zona leste de São Paulo?

"Minha mulher fica tão irritada com isso que não põe mais os pés aqui", conta Petruche, em conversa com o TAB, em uma noite de sexta-feira chuvosa. "Nessas horas, eu queria ser mentiroso. Mas a verdade é que estou no mínimo há quatro, cinco anos, pagando para manter a loja. Faço isso por amor. Não tem outra explicação."

Há 26 anos, Petruche largou um bom emprego em uma empresa que terceirizava serviços de segurança para dar vazão ao seu lado cinéfilo. Viu em um anúncio de jornal que alguém procurava por um vendedor de filmes e resolveu se candidatar ao posto. Naquela época, as fitas VHS eram vendidas "na raça". O vendedor chegava à locadora munido de uma série de títulos e precisava convencer o dono do estabelecimento a adquiri-los.

Não tinha a menor ideia de como montar uma, mas respondeu ao anúncio. Gostava de Glauber Rocha, de Cinema Novo, de cinema latino e europeu. "Fui à entrevista de emprego todo arrumado, de terninho. Chegando lá, descobri que a vaga era para vendedor de filme pornô", conta.

Petruche queria começar a nova carreira divulgando as maravilhas do cinema de Ingmar Bergman, mas ganhou como primeira missão emplacar os títulos de um produtora europeia que queria combater a onipresença da Buttman e da Brasileirinhas no pornô.

Nada que o desanimasse. Em pouco tempo, já estava vendendo também filmes do catálogo cult da PlayArte. Aprendeu os detalhes e artimanhas do negócio: os preços dos filmes, como negociar, quais os títulos mais adequados para determinados públicos. Montou o Charada ainda em 1995.

Teve 22 videolocadoras num raio de um quilômetro, só na região. Ele abriu o Charada com exatamente 198 fitas VHS. Chegou a trabalhar com cerca de 8 mil delas quando o negócio estava no auge. "Titanic" e o pornô de Rita Cadillac lideram como os títulos com mais cópias da história do lugar: 55 e 50 fitas, respectivamente. Em 2 de janeiro de 2000 — ou de 1999, ele não lembra ao certo —, nada menos que 880 fitas deixaram as prateleiras do Charada. É o recorde da história do videoclube.

Hoje, restam na loja mil fitas VHS de títulos pornôs e outras mil de filmes cults e blockbusters variados. Pôsteres decoram o piso do andar superior ao lado de patins adornados com flores, um capacete de astronauta soviético, câmeras de vídeo e violões. Uma pequena escada leva ao piso inferior, onde está um palco para shows e a parte visível do acervo pornô (o restante está guardado em pastas). Um pôster do filme "Nosso Lar", sobre o médium Chico Xavier, decora uma das paredes ao lado do cartaz de um filme pornô e um do blockbuster "Avatar".

De filmes famosos mais antigos como "Império do Sol", a famosos não tão antigos como "A Paixão de Cristo", passando por títulos de terror clássicos como "Hellraiser" e "Cemitério Maldito", o cliente do Videoclube Charada tem um boa amostra da experiência de se perder entre capas coloridas, chamativas e misteriosas. Muitas vezes você só descobria o que realmente levara para casa quando já era tarde demais.

Videolocadora antiga, porém, não é sinônimo de acervo de raridades. Petruche precisa vender algumas quando falta grana. Ele tem, por exemplo, cópias em VHS e DVD de "Amor Estranho Amor", o filme proibidão com Xuxa que recentemente foi liberado para passar na TV. Venderia por R$ 5.000. "O VHS tem um valor mais alto hoje porque tem muito colecionador. Outro detalhe é que tem muito filme que só saiu nesse formato. Aqueles que ainda alugam VHS têm comportamentos interessantes. Se tem um filme em DVD e em VHS, o cliente prefere em VHS. É uma ligação afetiva, parecida com aquela que hoje temos com os discos em vinil."

No caso dos filmes pornôs, grande parte do público que ainda aluga fitas é composta de idosos que não sabem usar as tecnologias modernas em prol do prazer solitário. "E os pornôs do tempo do VHS são melhores. Mais autênticos. Os títulos em DVD já têm mulheres com silicone", esclarece Petruche.

Essa relação afetiva, entretanto, se mede no conta-gotas. Hoje, Petruche vende, em média, dez fitas VHS por mês. Aluga outras dez. Ele transformou o Charada em um espaço cultural para complementar a renda com a realização de eventos, cursos, shows de música e stand-up. Sua festa mais famosa, "Terra em Transe", chegou a reunir 200 pessoas. Até Ciro Pessoa, fundador da banda Titãs que morreu em 2020, se apresentou no Charada.

Mas a pandemia acabou provisoriamente com a nova fase do videoclube. Agora, o local recebe lives de artistas do bairro toda sexta-feira. A situação financeira apertou de novo. Será o golpe final? Petruche, feito herói de cinema: "Sou favorável à eutanásia e meu negócio está na UTI. Mas, neste caso, lutarei até o fim".

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