A Métrica do Desejo

A hiperconectividade levou as pessoas a experimentarem como nunca formas inéditas de relacionamento

Quem nunca viveu uma das situações abaixo que atire a primeira pedra — ou saia do aplicativo, bloqueie o (a) ex, delete a conta ou adote qualquer outra ação extrema comum aos tempos de hiperconexão que vivemos:

- você “fala” todos os dias com uma pessoa, mas apenas por mensagens de texto do celular. Não se lembra da última vez que se viram;

- você está em uma festa, com várias pessoas ao redor, mas em vez de dar “um rolezinho do flerte”, liga o aplicativo para ver quem está ali;

- você tem um trabalho legal, mas não dispensa entrevistas de emprego surgidas a partir do LinkedIn, mesmo já sabendo que vai recusar possíveis ofertas;

- você está em uma relação monogâmica e está tudo certo, mas acha divertido despertar crushes no direct do Instagram;

- aquele momento do dia em que você enxerga um recorte da sua realidade dentro do Instagram (ou reflexões se materializando em textões e likes);

- algum contato do aplicativo demorar para responder sua mensagem é a mais nova definição de pesadelo na sua vida.

Se há alguns anos era “cool” compartilhar fotos de placas de cafés e bares com o recado "aqui não tem wi-fi, conversem entre si", como se o inferno do vício digital fossem os outros, hoje já deu para notar que a hiperconexão tem capilaridade maior, e que isso tem a ver com a ideia de que não existe mais — se é que já existiu — um muro separando o que se convencionou chamar de real e virtual. O sociólogo espanhol Manuel Castells, um dos maiores teóricos contemporâneos da comunicação, diz que vivemos uma virtualidade real, uma cultura que altera nossas noções de espaço e tempo.

Nesse cenário, pesquisadores de comportamento apontam mudanças significativas no modo como lidamos com o desejo. Por que ser desejado, e alimentar isso diariamente — seja por meio de selfies ou opiniões, produzindo nosso "eu" — tornou-se uma necessidade tão central na nossa vida? O ego não é nenhuma novidade criada por uma startup, mas tem sido testado em novos contextos, roupagens e, principalmente, em outra intensidade.

EM MODO EXPERIMENTAL

"Acho que se você ligar hoje para alguém em quem está interessado, provavelmente será taxado de psicopata", afirma, com um olhar entre o tenso e o reflexivo, um entrevistado de "Swiped", documentário recém-lançado pela HBO sobre relacionamentos na era digital. O filme é uma das obras audiovisuais que aborda as relações em uma era hiperconectada, assim como fizeram "Her" (2014) e a série "Black Mirror" (a primeira temporada é de 2011).

"Eu ligo. Mas ligar ficou muito estranho", diz a cantora e compositora Larissa Pádua. Ela conheceu a namorada via aplicativo, mas conta que foi por acaso, já que não é fã desse serviço. “Perdeu um pouco a ideia do social como algo físico", completa. A publicitária Rita Romão, por sua vez, nunca teve problemas em adaptar o flerte para as redes sociais, mas foi conhecer o namorado justamente em uma festa. "Por incrível que pareça, já que hoje ninguém mais acha que isso é possível", admite. Gabriel Cabral, jornalista, lembra de paquerar mais de uma vez na rua um cara que não ligou muito pra ele, mas dentro de um aplicativo se cruzaram e saíram algumas vezes. Romy Ortega, produtora, deu “match” da vida real com um cara de bike mas, na correria da ciclofaixa, não conseguiu falar com ele e, para achá-lo, resolveu usar um app para rastrear usuários na região.

Esse grupo, todos na casa dos 20 a 35 anos, concorda que se a comunicação digital facilita contatos, encurta distâncias e amplia o mundo, também traz tédio e ansiedade, além de algumas “travas” ao vivo. Vai depender da forma como se usa a tecnologia — e avaliar o sucesso desse comportamento além do curto prazo não é tarefa das mais simples.

O DIAGNÓSTICO CONSTANTE

"Toda vez que houve uma mudança da forma de trabalhar, da forma de linguagem e de expressar o amor, teve o surgimento de novos sintomas. Estamos nesse momento", afirma o psicanalista Christian Dunker.

Estudioso do comportamento contemporâneo, Dunker acredita que a vida em rede e a ideia de uma vastidão de possibilidades fortaleceram uma síntese da nossa personalidade. Ou, como ele fala, uma "produção de contornos identitários mais delineada" que não ocorre por acaso: há a função de nos comunicarmos melhor e termos interações mais eficazes em meio a um mar de informações. "Quando opera em universos mais extensos, você tem de pegar um traço para se guiar", explica. No entanto, esse movimento pode também deixar “a viagem menos interessante". É como se déssemos mergulhos em várias piscinas rasinhas.

É uma coisa super curiosa porque parece que você tem que virar curador da sua própria vida. A gente vê um olhar muito calibrado das pessoas pra fazer isso. Então tem algo de se sentir desejado que passa a ser muito importante

Rebeca de Moraes, pesquisadora de tendências

Uma pesquisa com mais de mil brasileiros de todas as regiões do país, lançada em julho de 2018 pela consultoria Consumoteca, aponta para a mesma direção: a construção do nosso "eu" por meio de fotos, textos e outros formatos, em busca da nossa "melhor versão". Seria como uma gangorra entre o autoconhecimento, que todo mundo quer, e a vaidade, que ninguém diz achar muito legal.

"Acho que tem um momento em que você precisa transformar sua vida num storytelling, mas tem um momento de olhar para dentro também. Isso vai alimentando nas pessoas uma ideia de identidade que às vezes até se descola um pouco, fica mais importante do que pertencer necessariamente a um grupo", afirma Rebeca de Moraes, sócia e diretora da Soledad, empresa-irmã da consultoria responsável pela pesquisa.

Para Dunker, essa via de mão dupla — queremos ser entendidos como únicos e complexos, mas reforçamos alguns traços para passar uma mensagem mais objetiva — é um dos fatores que têm alterado a dinâmica das relações. Ele faz um paralelo com uma outra geração tecnológica. "Quando apareceu a TV a cabo, passamos de cinco, seis para cem canais. Qual o primeiro efeito? Todos se parecem, você perde as diferenças cruciais. Então na nossa relação com o outro começa a importar mais essa linguagem, porque a gente se vê no olhar do outro sendo lido e interpretado a partir de determinados traços. Isso traz um problema imediato: nossas relações começam a se governar mais pelas identidades e menos pelos desejos, que são coisas mais difíceis de nomear, pedem um pouco mais de tempo, contextualização do nosso passado que vai se projetar para o futuro. Isso explica também por que a gente vai começar a sofrer mais com nossos traços de identidade, e questionar a nossa clausura em determinados traços", explica.

Na pesquisa da Consumoteca, por exemplo, 46% das pessoas afirmam saber antecipadamente qual perfil mais lhes interessa quando usam apps de paquera. O antropólogo Michel Alcoforado, sócio-diretor da consultoria, acredita que estamos em "um jogo novo, porque na vida não temos muita clareza de quem somos". "Vamos para análise para saber, e agora temos que ficar nos analisando o tempo todo. Essa é a ação e reação do mundo em que estamos vivendo. A gente é obrigado a performar a identidade do mundo digital", diz.

Quando você abre as redes sociais tem sempre uma pergunta, é o jogo do mundo interessado em você. As pessoas fazem cálculos, ficam preocupadas com a audiência de seus stories. A metrificação do desejo é algo novo, porque antes ele era uma coisa etérea. Essa "produção do eu" é quase como se fosse um novo trabalho

Michel Alcoforado, antropólogo

Christian Dunker escreveu sobre o tema no livro "Reinvenção da Intimidade - Políticas do Sofrimento Cotidiano" (2017). Para o psicanalista, esse novo jogo social "está acontecendo nos modos de criação de filhos, nas relações entre professores e alunos, nas relações entre empregados e empregadores, nas relações de gênero". O impacto disso, acredita, envolve uma mudança na percepção do que é intimidade e no que associamos ao amor.

A mesma pesquisa da Consumoteca mostrou um resultado interessante nesse sentido: para os entrevistados, intimidade hoje tem mais a ver com trocar ideias de forma espontânea e viver momentos a sós — como ver séries em casa — do que com sexo.

"Por mais que tenhamos acesso a uma sexualidade mais permissiva, nem sempre isso vem junto a algo que associávamos com a experiência sexual que era a intimidade", explica Dunker. Segundo ele, uma consequência que pode ocorrer com o fortalecimento das identidades é o amor ser percebido como uma ameaça a nossa individualidade, "ao que construímos pacientemente, esteticamente".

"O que costuma fazer o meio de campo entre desejo e identidade é o amor, então a gente espera muito do amor, mas ninguém é capaz de produzir a elasticidade amorosa capaz de dar conta de tamanha extensão dos conflitos. Aí tem o aumento da solidão, da percepção do sofrimento, a intolerância com o gozo alheio, o desejo do outro. Os diagnósticos estão aí visíveis e explicam uma série de transformações também políticas, sociais: são novas formas de sofrer", diz.

GRANDES EXPECTATIVAS

É fato que as pessoas estão usando as redes e os apps intensamente, mas isso nem de longe significa que elas estejam 100% satisfeitas com esses serviços. É possível entender um pouquinho o porquê com a análise acima.

"O que mais me cansa atualmente é que existe um modelo de início de conversa: ‘oi, tudo bem? Tudo, e você? Onde você mora? De onde você é? Estuda, trabalha?’. Tem uma hora que você cansa de tanto fazer e de tanto responder essas perguntas. Porque às vezes você responde tudo isso e vê que não é muito o que queria ou não mexeu tanto com você. Isso pelo excesso", diz o jornalista Gabriel Cabral. "Eu até entendo que esse modelo seja um pouco necessário, mas ao mesmo tempo eu estou cansado. E o que mais me perturba nesse assunto é o quanto a gente está viciado em só flertar pelo aplicativo, a gente não sabe mais flertar fora do aplicativo", completa.

As pessoas perderam a dimensão da importância de falar, com a boca. Você tem síndromes específicas ligadas a isso: silenciamento, timidez. A gente não está percebendo que esse pulo da fala para a escrita é um pulo que tem implicações psicológicas vastíssimas

Christian Dunker, psicanalista

"Percebo duas grandes mudanças. A primeira é no sentido de que, de certa forma, é mais fácil e constante estar próximo do dia a dia dos amigos, familiares, crushes. O lado negativo, e bastante marcante para mim, é a ansiedade", diz a advogada Tamiris, 25. "Antes era normal enviar e-mails e esperar dias por respostas e tudo bem. Hoje nós ficamos desesperados por contato, achando ruim se a pessoa demora mais do que algumas horas para responder, se está online e nos ignorou. Nas conversas entre amigas, sempre surge alguém comentando do contatinho que sumiu por um dia e o conselho quase uníssono é de que a amiga deve descartá-lo, pois está sendo ignorada mesmo. Não se considera que o outro só está tendo um dia atribulado ou deixou pra responder depois", conta. "Isso é um prato cheio para trazer as piores loucuras para o palco", afirma Dunker.

Para a cantora Larissa Pádua, cresceram também as dúvidas e a ansiedade quando se trata de divulgar um trabalho nas redes sociais. "Você tem sempre que pensar em qual mensagem vai passar, o que vai expor. E quando você é um artista, de uma certa maneira você também é um personagem de você", afirma.

Ou, como canta o artista paulista Edgar em "Print", faixa do distópico álbum "Ultrassom" (2018), "conversas printadas se tornam documentos, abreviadas se chamarão docs. Cuidado com o histórico: print não some".

Para o psicanalista Christian Dunker, não é por acaso que um dos aspectos centrais dessa nova forma de estar com o outro, de nos relacionarmos, envolva o tempo: seja o de uma resposta, seja o que a gente espera para conhecer alguém ou construir uma amizade. E a nossa percepção dele, frente a velocidade atual das trocas, já foi alterada radicalmente.

O arquiteto Fernando*, 36, compara esse processo a um game. "Ao passo que não é difícil você ter 500, 1000 'amigos' nas redes sociais, e automaticamente tornar-se um formador de opinião — ou pelo menos acreditar nisso —, nos apps de relacionamento tende a ser pior, no sentido de que, ao menos para mim, não se busca uma permanência. É como se você sempre pudesse conquistar no próximo 'match' alguém melhor, mais bonita, mais adequada para você. E pela minha experiência percebo que esse tipo de comportamento independe de gênero. Em suma, a ideia do 'cardápio' exposto nos apps tende a ser facilmente absorvido, e isso pode ser bom ou ruim. Talvez seja mais uma expressão da tal 'sociedade líquida' do [sociólogo polonês Zygmunt] Baumman", opina.

"Esse jeito de se relacionar dita muito o ritmo do processo, e acho que isso é um passo a passo que você pode reproduzir em qualquer aplicativo", diz a pesquisadora de tendências Rebeca de Moraes. Nos Estados Unidos, essa ideia de um ritmo pré-imposto no digital tem gerado inclusive uma reação: em oposição aos apps de paquera, surgiu o termo "slow dating" (namoro lento). Reportada por diversos veículos nos últimos meses como uma tendência contra-hegemônica, de "volta ao natural", o paradoxal é que ela já tem sido usada como marketing por aplicativos como Once e Hinge.

Moira Weigel, historiadora da Universidade de Harvard e autora do livro "Labor of Love: The Invention of Dating" (Trabalho do Amor: A Invenção do Namoro), não dissocia esse movimento da lógica capitalista. "O uso do app é a aplicação do raciocínio do consumidor para nossa vida privada, e o desejo romântico e sexual é usado quase como uma isca para atrair você a continuar consumindo. Talvez a gente não pense isso dentro de um contexto econômico porque muitos desses aplicativos são gratuitos", disse a pesquisadora em entrevista ao documentário "Swiped".

DO CONTATINHO AO CONTRATINHO

Apesar do sentido perverso, o uso de qualquer tecnologia não é estático, mas moldado no dia a dia. "Existe sempre uma ressignificação das ferramentas. Um grande exemplo é o Tinder, que chegou com a ideia de sexo casual e hoje as pessoas querem casar lá. Essas ferramentas nunca são totais. O Orkut foi utilizado na época (início dos anos 2000) para o brasileiro entrar na Internet", diz o antropólogo Jonatas Dornelles, que estuda sociabilidade virtual há quase duas décadas.

Nesse processo, a realidade se revelou um pouco diferente da tendência de efemeridade e das relações líquidas faladas por Bauman. "Acho que tem uma ideia de relações que não são líquidas, mas beta, experimentais mesmo. Fui procurar pessoas que estavam vivendo essas relações e aí fui percebendo essa ideia dos contratinhos: pessoas tentando estabelecer algo dentro do que a gente não costumava chamar de relacionamento. E simbolizar é muito importante. A gente vê contratinhos como uma tendência dos relacionamentos amorosos", diz Rebeca de Moraes.

Além de uma perspectiva diferente de tempo e desejo, um dos aspectos novos da forma como nos relacionamos é que denominar esses vínculos se tornou mais difícil. E isso vale para o amor, amizades, trabalho. "Não dar nome [ao tipo de relacionamento] diz respeito a uma imagem muito usada que é a das caixinhas: você não pode ser colocado numa caixinha, porque aí você se compromete numa narrativa e a pessoa acha que não vai conseguir sair desse lugar", explica Dunker. "Precisa ter um nome? Por que essa pergunta é angustiante? Porque quando a gente dá nome a gente se transforma. Dizer um nome compromete, te filia a uma experiência, a um processo", completa o psicanalista.

Dunker relaciona a dimensão amorosa a uma "indeterminação produtiva" — ou quando a relação se torna mais orgânica, menos programada. Para ele, a questão é que esse aspecto está sendo pensado, precipitadamente, "dentro de uma racionalidade jurídica". "Se eu dei um nome, tem um contrato, você tem expectativas justas e legítimas do que eu posso ou não violar. E aí o meu desejo se perde. Mas ‘qual o nome?’ não significa ‘casado’, ‘solteiro’, significa encontrar um [nome]”, afirma.

Para Rebeca de Moraes, o que o momento sugere é uma busca por novos acordos sociais e afetivos. "A gente está fazendo isso de se relacionar em outras bases, isso é o que muda. A gente faz isso com a ideia dos desejos que estão em jogo, porque não quer entrar em regras tradicionais. Talvez a gente até faça as mesmas coisas, só que de outro lugar", acredita.

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