O ANO SEM ADEUS

Como a pandemia afetou os rituais de despedida e o luto de milhares de brasileiros em 2020

Marie Declercq Do TAB Amanda Miranda/UOL

Velar quem partiu é uma tradição ligada à religião, mas a importância de despedidas vai além de qualquer fé e traço cultural. Ritos funerários possuem um valor emocional valioso, porque marcam momentos em que uma comunidade se une para assimilar o fim de um ciclo.

A morte, cujos desdobramentos ganham caráter público e individualizado a partir da segunda metade do século 20, foi marcada por uma espécie de ausência presente em 2020. Todos foram atingidos. A suspensão dos ritos causada pela Covid-19 afetou e ainda afeta milhões de pessoas pelo mundo que não conseguiram velar seus mortos.

Em suas diretrizes oficiais, a OMS (Organização Mundial da Saúde) aconselhou evitar velórios e missas — quando houver, que sejam curtos, com número reduzido de pessoas, sem toques, abraços e aproximações. Na memória e na experiência compartilhada do luto, algo parece faltar.

Nos relatos ouvidos pela reportagem de TAB, o adeus em 2020 foi austero e carente do simbolismo convencional: sem poder tocar, beijar, olhar e acompanhar o enterro, permanece entre os enlutados a sensação de dúvida e a necessidade instintiva de criar novos rituais para encarar a morte e a ausência.

CARREATA FÚNEBRE

Eram quase 23h quando a população de São Luís dos Montes Belos, a 120 km de Goiânia (GO), ouviu uma música triste pelas ruas. O som vinha de uma carreata com mais de 60 carros, escoltados pela polícia, reunidos para se despedir de Pedro Borges dos Reis, professor de inglês da rede pública há mais de 30 anos, morto aos 65.

Tradicionalmente, a despedida seria realizada em um velório, reunindo família, amigos e alunos de Borges. Mas os tempos são outros. Lucivânia Rosa da Silva, 58, professora aposentada e sua colega, organizou então um cortejo motorizado até o cemitério municipal. Pela janela, os moradores assistiram a tudo e ouviam "Hallelujah", de Leonard Cohen, em versão instrumental. Alguns acenaram, outros filmaram a passagem dos carros.

Depois desse, outros cinco cortejos motorizados velaram os falecidos de São Luís de Montes Belos. "Não tem nada mais terrível do que perder uma pessoa amada, não poder vê-la ou se despedir e ter de passar por tudo isso sozinho", conta Lucivânia, que também chora a perda de alguém.

Em meados de março, a professora testemunhou a dor da própria família de não conseguir transladar o corpo de um primo, que vivia em Goiânia, para a cidade de Paraúna. "Tivemos duas dores, o luto e o fato de meu primo não ter tido direito a velório com a família."

Naquela noite, a professora testemunhou as filhas de Borges emocionadas com a homenagem. A cidade se uniu em torno daquela perda. Todos vivenciaram o luto, afastando também o estigma em torno das famílias que perderam um membro para a doença. Vale dizer que os cortejos também celebram a vida: uma carreata muito parecida foi organizada para receber um morador que se recuperou da Covid-19.

Os cortejos motorizados foram assumidos como um novo ritual de despedida em São Luís dos Montes Belos, inclusive nos últimos meses de 2020 com o aumento de casos da Covid-19 na cidade. Só em dezembro, mais seis cortejos fúnebres foram organizados para todos se despedirem respeitando ainda o isolamento social.

ENCARAR DE FRENTE

Beatriz Vencionek, 25, do Rio, perdeu um primo de meningite, durante o Carnaval. Foi a primeira vez que acompanhou um velório e achou todo o ritual, no mínimo, estranho. Mas essa visão mudou em 23 de julho, quando a produtora audiovisual perdeu a tia, Suellem Ferreira, 36, para a Covid-19. "A primeira coisa que precisei fazer foi ver o corpo dela", conta.

A relação com a tia não era das melhores, mas ela fez questão de acompanhar a transição do corpo da tia para o caixão. "Ela foi enterrada em um saco preto. Só conseguimos colocar as roupas do Flamengo por cima", relembra Vencionek.

As celebrações foram muitas. O centro de umbanda que frequentava tocou uma música da entidade que Ferreira incorporava, o Pai Joaquim. No Morro do Guarabu, na Ilha do Governador, faixas rubro-negras e uma foto da flamenguista estamparam o bairro em dia de jogo. "Fico pensando quando a gente vai festejar o que minha tia foi em vida. Ainda não tivemos a virada que o cotidiano traz para superar a morte."

MORTE E DESUMANIZAÇÃO

"Ritos têm uma função bem forte de organização psicológica para demarcar a concretude da perda", explica Gabriela Casellato, doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e organizadora do livro "Luto por perdas não legitimadas na atualidade" (Summus Editorial).

"A morte é um tabu e as pessoas não gostam de falar sobre isso. Consequentemente, acham que ninguém gosta de lidar com despedidas, mas são elas que fazem diferença", conta a psicóloga Vitória de Oliveira Amâncio, 25, que perdeu a avó Adalgisa Dozzeba em abril.

Atendendo pelo SUS em Sorocaba (SP), Amâncio não foi ao velório da avó, em Tambaú (SP), e por isso, sente como se nada tivesse acontecido. Ela viu o mesmo problema em seus atendimentos. "Muita gente falou que só parece que a pessoa saiu para dar uma volta, porque não a viu indo embora."

Felipe Larozza/UOL

REZA, COZINHA, COSTURA

"Não tive ninguém aqui para me abraçar", desabafa a servidora pública Naila Guimarães, 32, sobre a morte de sua avó materna, Joana Cordeiro, aos 80 anos, vítima de Covid-19. Isolada no apartamento que divide com dois gatos, ela precisou criar rituais próprios para se despedir.

O enterro presencial foi rápido e de caixão fechado, com poucas pessoas presentes. A servidora não vivenciou ritos básicos de uma despedida: encontrar a família, olhar a avó e, o mais básico, abraçar a mãe. "Você não processa direito quando não há a possibilidade de se despedir e olhar para a pessoa no caixão."

Para a data não ser esquecida, Guimarães passou o dia em casa fazendo coisas que lembram a avó: rezar, cozinhar e costurar. Também preparou panquecas de carne, seu prato favorito feito pela avó.

ZELO NA PERDA

Outrora visto como mercenário por lucrar em momentos de perda, o meio funerário não só zela pelos rituais como também preza pelos protocolos sanitários para que sepultamentos causem o menor impacto possível na saúde pública. Isso vai desde coveiros até donos de cemitérios e crematórios e preparadores de corpos.

A tanatopraxista Nina Maluf, 33, trabalha na preparação de cadáveres há mais de 15 anos, em Porto Alegre, e teve que brigar com todo o setor pela proteção da categoria. Tem certeza de que pegou Covid-19 logo no início da pandemia e, com muito custo, conseguiu que a tanatopraxia fosse suspensa por um período e que novos protocolos fossem adotados para proteger os trabalhadores. Uma das soluções encontradas foi a realização de velórios ao ar livre e também virtuais, por meio de videoconferências.

O período é de tentativa e erro do setor, avalia Gisela Adissi, dona da consultoria funerária Flow Death Care e presidente do Sincep (Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil). "Naturalmente, todo mundo foi para o digital. Mas se descobriu também que fazer velório online não é só ter uma câmera na sala de velório. Muita gente viu que é necessário algo mais sensível, pensar em um script nas reuniões pelo Zoom."

UM LUTO VIRTUAL

"O ritual do velório é uma forma de honrar a memória da pessoa que se foi. Não é algo místico", analisa Maria Clara Carneiro, 37, professora de Letras na UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), sobre a própria perda em 2020.

Com a morte da avó, Therezinha Muniz Antunes Carneiro, de 90 anos, a professora fez as vezes de organizadora do luto da família. O velório presencial teve poucos familiares e o caixão foi entregue fechado. "Nós nem conseguimos que ela fosse enterrada ao lado do meu avô."

No pico da pandemia, Maria Clara Carneiro organizou um velório online pelo aplicativo Jitsi, e todos conseguiram celebrar, mesmo de longe, a vida da matriarca. Para evitar silêncios constrangedores, Carneiro organizou toda a programação: um Power Point foi criado com imagens da avó e cada familiar tinha sua vez para falar.

Nas quase três horas de cerimônia virtual, a família pôde chorar e se unir. "Teve uma troca importante ali", conta. Além da cerimônia pelo Jitsi, a família também assistiu pelo Zoom à missa de sétimo dia na paróquia que Therezinha frequentava.

Felipe Larozza/UOL

SAUDADE QUE VEM DEPOIS

Ninguém pôde se aproximar e se tocar no velório de Nestor Barozzi, 81, no Cemitério da Quarta Parada, em São Paulo. Ele deixou para trás a família e uma paixão indiscutível pelo Palmeiras. "Foi algo muito surreal. Todo mundo ali estava reunido, espaçado e só levantávamos as mãos para nos cumprimentar", conta Lucas Barozzi, redator publicitário de 23 anos. "Colocamos a bandeira do Palmeiras no caixão porque era um elemento muito forte do meu avô que servia para unir a família."

A esposa de Nestor, Eliete Barozzi não pôde comparecer ao velório do marido para dizer adeus porque estava se recuperando da Covid-19. Achou até melhor. Foram casados por 58 anos. "Ele estava doente há muito tempo", conta. "No dia estava tudo bem, mas a saudade vem depois, vem todos os dias quando estou rezando, assistindo a missa," desabafa.

Antes da pandemia, o patriarca da família já passava por um processo doloroso para tratar da doença de Parkinson. Segundo a esposa, o luto da perda do companheiro estava se aproximando antes da morte. "Ele era uma pessoa maravilhosa. Um ótimo pai, marido. Sinto saudade dele todos os dias."

MORTE AO CEMITÉRIO

Não é a primeira vez que rituais funerários são drasticamente interrompidos ou modificados no Brasil. Na Salvador do século 17, o costume de enterrar em igrejas era estendido a todos. Com a chegada de ideias higienistas, vindas da Europa e sintetizadas pela ideia equivocada do "miasma" (suposta nuvem malcheirosa capaz de transmitir doenças), médicos locais convenceram os legisladores a interditar os enterros em igrejas. Estava criado o cemitério.

Entretanto, a transição aconteceu da forma mais brasileira possível. O cemitério Campo Santo, em Salvador, inaugurado em 1836, era administrado por uma companhia privada, que deteria o monopólio dos enterros pelos 30 anos seguintes. A determinação não foi bem aceita — não só pela visível malandragem, como também porque significava uma ruptura extrema entre vida e morte.

Havia, evidente, uma clara hierarquia de classes nos enterros das igrejas, mas os sepultamentos em locais de circulação comum eram símbolo da visão de que a morte é apenas continuidade da vida, e sacramentava a vida eterna após a morte.

Assim, mais de 4 mil cidadãos (na época, a cidade tinha 36 mil habitantes) foram às ruas gritando "Morte ao cemitério!". Brancos e pretos impediram a implementação do cemitério em Salvador. Foi uma revolta vitoriosa até que, não muito tempo depois, os costumes tiveram que se curvar à instituição dos cemitérios com a chegada do cólera, que levava ao afastamento definitivo da morte à vida cotidiana, como registrou o historiador João José Reis em "A morte é uma festa" (Companhia das Letras).

Larozza/UOL

MÁ FAMA E ESTIGMA

O mal-estar também é grande entre os que trabalham no setor funerário. "A sensação é de descarte", explica Osmair Camargo Cândido, formado em Filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e coveiro há mais de três décadas em São Paulo.

"Operário da morte", como ele mesmo se define, Cândido testemunhou o aumento de enterros no Cemitério da Penha, em São Paulo, onde trabalha. Andando pelas ruas da Penha, de óculos de aro grosso ("por causa do Malcolm X"), Cândido afasta o discurso motivacional que romantizou a pandemia como uma possibilidade de se criar um mundo melhor.

"O medo da morte nos desumaniza totalmente. Não foi edificante. Não se despede da pessoa que partiu, alguns ficam com raiva da gente, como se fôssemos agentes da morte", conta o filósofo, que reclama do estigma. "Você sabia que grande parte dos coveiros são mulheres e negros? Por isso que a gente nem espera reconhecimento. Isso vem para o médico que salva vidas. Já o coveiro tem fama de ladrão, cachaceiro, desajustado social e maluco."

UMA NAÇÃO DE LUTO

As consequências sociais para uma nação que teve seu luto negado só serão percebidas no longo prazo. A carência de ritos em 2020 pode ser porta de entrada para problemas de saúde mental mais graves no futuro.

"A gente foi privada de ter uma rede de apoio, da memorização, do pertencimento e do reconhecimento social. Fomos privados também de desenvolver uma nova identidade a partir da perda. O luto não é uma doença que não tem cura. Ele abre caminho para a elaboração de novos elementos", frisa Gisela Adissi.

A forma com que o governo federal lidou com a pandemia, minimizando a doença e seus impactos, ou efetuando pequenos apagões de dados sobre ela, também banalizou a dor da morte. "A gente vai pagar esse preço", avalia a psicóloga Gabriela Cassellato. "Na próxima década, teremos uma nação sofrendo consequências de uma época perversa, em que nosso espaço de luto foi negado."

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