VIDA NO ESCURO

Em São Lourenço da Mata (PE), casal tenta há mais de 40 anos instalar energia elétrica em casa

Eduarda Esteves e Jorge Cosme (texto) e Brenda Alcântara (fotos) Colaboração para o TAB, do Recife Brenda Alcântara/UOL

As cores da toalha de mesa não saltam mais aos olhos. Fica difícil distinguir aos quais dos sete cachorros e três gatos pertencem os vultos que passam entre as pernas. Já não dá para ler as frases "Jesus, eu te amo" e "Deus é o meu protetor" riscadas nas paredes.

Cai a noite sobre uma casa de taipa no meio do canavial. Maria Francisca de Lima, ou Maria Cabocla, como é conhecida na região, pega uma caixa de fósforo e acende três candeeiros. O odor do óleo diesel queimando invade o ambiente. Aos 55 anos, Maria Cabocla nunca soube o que é ter energia elétrica em casa.

Ela não mora em um lugar isolado, onde a luz penosamente chega. A casa fica no Engenho Camurim, no município de São Lourenço da Mata, que integra a região metropolitana do Recife, a 9,8 km da capital e conhecido por ter sediado os jogos da Copa do Mundo de 2014. No meio do mar de cana da Usina Petribu, a agricultora trava uma luta de décadas para conseguir luz em casa, vivendo ainda sob a ameaça de um dia ser expulsa.

Maria Cabocla fala rápido. É boa de memória, lembra datas e nomes com precisão. Diz que seu avô já morava naquele engenho; seu pai, também. Ela é nascida e criada ali. Desde sempre, sua família e vizinhos viveram na penumbra da plantação, sem energia elétrica, em situação vulnerável por habitar uma área rural sem a garantia da escritura na gaveta. Aos 13 anos, Maria foi viver a poucos metros de distância com o marido Severino José de Lima, com quem é casada até hoje e tem três filhas.

Em frente à casa de taipa, ela ergueu uma menor de alvenaria. Logo na fachada, há um espaço vazio na parede à espera de um medidor de energia que nunca chegou. Não há nada conectado às tomadas espalhadas pelo imóvel. Os interruptores são meros botões sem funções. A sala tem dois rádios com tocador de CD que ela não pode ligar para ouvir, mas guarda um estojo com vários CDs com repertório passando por Roberto Carlos, Amado Batista e Zeca Pagodinho.

No quarto, uma das telhas é transparente para a luz do sol passar. Em vez de geladeira, a cozinha tem uma caixa térmica. As filhas trazem gelo e Maria Cabocla coloca as garrafas de água dentro. É quando, por um dia, ela e o marido conseguem beber água gelada. A carne precisa ser comprada, cozida no fogão a lenha e consumida no mesmo dia. O fogão a gás está encostado, por causa do preço do botijão.

"A gente tem que comprar a quantidade certa que vai comer. Às vezes sobra e estraga", lamenta.

Em cima do armário, há três recipientes de álcool. Na mesa, velas de diferentes tamanhos. Por mês, Maria diz gastar R$ 40 só de vela. Também na mesa há mais dois rádios que funcionam a pilha. Ela mostra que um dos aparelhos tem um pen drive conectado, que a filha encheu de música. "Amor, você não sabe o quanto eu estou sofrendo/ Amor, na sua ausência a solidão me apavora", canta Bartô Galeno no radinho.

Nos dias quentes, como são muitos dos dias em São Lourenço da Mata, Maria Cabocla não tem um ventilador para se refrescar e afastar os mosquitos. "A gente dorme tudo descoberto. O riacho é pertinho e tem vez que a gente vai tomar banho nove, dez horas da noite", explica.

A agricultora tira de uma sacola uma lanterna. E mais outra, e mais outra. Dez ao todo. São com essas lanternas que ela sai à noite para tomar banho e pescar. Conta que ela e o marido não enxergam bem por causa do candeeiro, o que parece plausível, pois estão sempre em contato com a fumaça do óleo diesel e fazendo o esforço de observar um mundo precariamente iluminado.

Elisângela Maria, a filha mais velha, costuma acompanhar a mãe na pescaria noturna. Ela mora na mesma cidade e visita a genitora semanalmente. Traz as lanternas com as baterias carregadas.

A filha também é responsável por carregar o celular de Maria Francisca, um aparelho modesto, desses de botão. O modelo oferece aquilo que Maria Cabocla mais precisa: uma bateria que dura de seis a oito dias.

Maria Cabocla tem contato com um mundo de luzes só quando visita a filha na cidade. Vai e volta a pé. "Só conheço mesmo o programa de Silvio Santos, porque tem muito tempo, né? Sei daquele Faustão, mas o resto do povo da televisão eu não conheço."

Elisângela não consegue imaginar a mãe morando em outro lugar. Diz que, se ela saísse dali, a família toda teria de pedir comida na rua. Ela se refere ao abundante sítio ao redor da casa sem luz. Maria Cabocla e o marido Severino plantam feijão, fava, macaxeira, maracujá, jaca, coco, limão e milho.

Já sugeriram que ela fizesse uma ligação clandestina, ao que se recusou prontamente. "Não quero gambiarra. Quero a minha energia", diz.

Severino fala bem menos que a esposa. Tem sequelas motoras em decorrência de uma crise hipertensiva que sofreu em setembro de 2017.

O casal diz que o episódio está relacionado à frustração. Na época, a Celpe (Companhia Energética de Pernambuco) ensaiou conectar a casa com a rede elétrica, enquanto o processo cobrando a energia tramitava. Vigilantes da usina, contudo, impediram os funcionários da Celpe de fazer a instalação.

Quando lembra da época da crise hipertensiva, ele interrompe a fala. Fica um silêncio preenchido apenas pelo canto das cigarras. Severino parece chorar. Não dá para saber ao certo. Não é possível enxergar as expressões em seu rosto. Está tudo escuro.

Houve uma fagulha de esperança quando em 2018 a Justiça, em decisão de 1º grau, assinou a sentença que determinava a instalação da energia elétrica. Mas a usina recorreu, a Celpe passou a argumentar que não pode instalar energia sem a autorização do proprietário da terra, e o tribunal negou o direito de energia ao casal.

Por telefone, o gerente jurídico da Petribu, Luís Guerra, explica que a usina não permite a instalação da energia porque o cabeamento e a distância necessárias, cerca de um quilômetro de fios e postes, atrapalhariam o plantio e a colheita da cana. A usina tem uma extensão de pelo menos 22 mil hectares de terra. Maria Cabocla ocupa cerca de um hectare, a cerca de 10 minutos de carro da entrada da usina. Lá dentro, não há postes de luz.

"Deus quando fez o mundo, fez para todos, não fez só para usineiro, não", afirma Severino. " A raiva deles é porque a gente não fez o gosto que eles queriam, abandonar o que era da gente."

Faz sentido: o aval da energia elétrica abre brecha para que o casal ganhe a posse da terra, também pleiteada na Justiça. Severino diz que a Petribu chegou a oferecer R$ 850 para eles saírem dali, para irem morar perto do cemitério da cidade. Centenas de famílias que viviam no Engenho Camurim toparam se mudar. Outras — pelo menos 10, incluindo o pai de Maria Cabocla — foram expulsas. Eles não saíram.

Apesar do impasse, uma campanha foi criada em junho para instalar equipamentos de energia solar no sítio de Maria Francisca. O objetivo é arrecadar R$ 12 mil para custear a montagem.

O advogado da Petribu diz que não sabia da "vaquinha" online, mas que ela não agrava a questão judicial. "Vai ser feito um investimento de colocar os equipamentos no local para, a qualquer momento, ela sair por causa da reintegração de posse. Talvez com esse valor arrecadado seja mais fácil adquirir uma outra propriedade já com energia elétrica", argumenta Guerra.

Desde 1999, Maria pleiteia na Justiça o usucapião, que é a aquisição da propriedade pela posse prolongada.

Com a ajuda da Comissão Pastoral da Terra, foi obtida uma sentença favorável em primeira instância. Mas a usina entrou com recurso e conseguiu reformar a decisão de 1º grau. A justificativa da empresa foi de que Maria e Severino só moravam no local por causa da relação de trabalho que mantiveram no engenho. Segundo a advogada à frente do caso, Mariana Vidal, o vínculo trabalhista temporário só foi estabelecido porque os dois já estavam ali, próximos ao trabalho na lavoura canavieira, e não o contrário.

Diante da decisão, a Pastoral entrou com uma ação rescisória, com o intuito de tentar desconstituir uma ação judicial que já transitou em julgado.

A Petribu também ajuizou uma ação de reintegração de posse para que a família saia do local. No entendimento da Petribu, a família pode ter de deixar o sítio a qualquer momento.

Mesmo com as incertezas jurídicas, Severino e Francisca sonham com o dia que vão reunir a família e oferecer suco gelado, tirar os CDs do estojo e ligar um ventilador para dormir nos dias mais quentes. "Todo mundo quando vem aqui diz 'Maria, esse lugar que tu mora é o céu. A única coisa que falta é energia'", lamenta a agricultora.

Por nota, a Celpe confirmou que chegou a iniciar a construção da rede no local em 2017, mas os proprietários não permitiram a continuidade. "Desde a solicitação da moradora, a Celpe tem buscado, sem sucesso, entendimentos junto à usina para obter permissão de acesso à área particular e instalação da rede de distribuição de energia."

A prefeitura de São Lourenço da Mata, na atual gestão, disse não ter conhecimento do fato. "Agora, diante do exposto, a Secretaria de Desenvolvimento Social, Trabalho, Mulher e Promoção à Cidadania vai encaminhar uma equipe do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de Matriz da Luz até a localidade."

O Ministério Público de Pernambuco (MPPE) foi procurado, mas não respondeu aos questionamentos até a publicação desta reportagem.

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