OS ÚLTIMOS 'SAMURAIS'

Por trás da Shindo Renmei, liga no Brasil que negava a derrota do Japão na 2ª Guerra Mundial

Juliana Sayuri e Bruno Bartaquini (texto) | Keiny Andrade (fotos) Do TAB e da Rádio Escafandro, em São Paulo Keiny Andrade/UOL

Certa noite de 1996, o engenheiro Ciro Higuchi, 71, começou a ligar para a família. Queria saber se eles estavam vendo "O Rei do Gado", pois tivera um "déjà vu": na novela da TV Globo, um agricultor japonês era assassinado no quintal de casa por outros japoneses que bradavam "Shindo Renmei". "Familiar, né?", Ciro dizia. "Lembra a morte do 'oditian'."

"Oditian" quer dizer avô, em japonês. O avô era Ikuta Mizobe, o primeiro imigrante morto por uma sociedade secreta de japoneses no Brasil que negava a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) — e que perseguiu compatriotas considerados "traidores". Segundo a investigação policial da época, 23 japoneses foram mortos e 147 foram feridos pela Shindo Renmei, a "Liga do Caminho dos Súditos".

Mizobe, 53, dirigia a cooperativa agrícola de Bastos (SP). Tinha, como poucos à época, um rádio, onde ouviu a notícia da derrota do Japão com o "coração partido". Por transmitir a informação a outros agricultores japoneses, tornou-se um alvo.

Ao longo dos anos, o assunto levantou "conversas dolorosas" para Aiko Higuchi, 102, filha de Mizobe. "Meu pai não fez nada [de errado]", diz ela, na casa onde vive em Santana, zona norte de São Paulo.

Nascida no Japão, Aiko migrou ao Brasil nos anos 1920. Foi trabalhar nos campos de café e de algodão em Bastos e, depois de casar, instalou-se em Pompeia e Tupã, também no interior paulista. Até hoje tem saudades do irmão mais velho, Naoyuki, que ficou no Japão. Segundo a família, ele morreu a bordo de um navio que explodiu após passar por uma mina japonesa esquecida no fundo do mar.

Só restou ela para lembrar dessas histórias, Aiko diz. Não é bem assim: a morte de Mizobe está nos arquivos do Dops (Departamento de Ordem Política e Social, que investigou o caso na década de 1940) e ficou famosa com o livro "Corações Sujos", do jornalista Fernando Morais, 77.

'BISAVÓ' DAS FAKE NEWS

Escrevendo "Chatô, o rei do Brasil", Morais descobriu que Assis Chateaubriand teve uma namorada nikkei (nipodescendente), filha de seu linotipista preferido, detido por participar da Shindo Renmei. A partir daí, começou a "farejar" a história da liga.

Mizobe foi uma das primeiras pistas. Bastos tinha 9.000 habitantes; 7.000 deles eram japoneses, e cerca de 3.500 contribuíam com o grupo. A cidade simbolizava bem o racha entre os imigrantes: de um lado estavam os "makegumi", que admitiam a derrota e, por isso, eram tratados como "derrotistas"; de outro, os "kachigumi", que acreditavam que o arquipélago saiu vencedor da guerra, sendo então declarados "vitoristas".

Aos olhos dos vitoristas, derrotistas eram traidores. Dizer que o invencível Japão, aliado da Alemanha nazista e da Itália fascista, rendeu-se aos EUA era imperdoável. Derrotistas teriam corações impuros e deveriam se suicidar a fim de resgatar a honra perdida. Se não o fizessem, morreriam pelas mãos dos vitoristas. Mizobe morreu considerado um "coração sujo".

"Corações Sujos" levou o Prêmio Jabuti, em 2001, e virou filme em 2011. Biógrafo de Lula (PT), Morais conta que o best-seller repercutiu tanto que, enquanto viajava junto ao presidente, era mais interpelado, na verdade, sobre a Shindo Renmei. Para descendentes de japoneses, também foi um marco: muitos só ficaram sabendo desse episódio do pós-guerra ao ler o livro.

Até hoje há certo mal-estar entre nikkeis ao descobrir que milhares de japoneses acreditaram na vitória do Eixo, ludibriados, por exemplo, por edições falsificadas de revistas como a norte-americana Life, com fotos adulteradas do ato de rendição do Japão. "A Shindo Renmei é a bisavó das fake news", Morais diz ao TAB.

No dia 1º de janeiro de 1946, o imperador Hirohito leu um breve discurso no rádio, exigido pelos Aliados: declarou que era humano —desde tempos imemoriais, ensinava-se que o imperador era uma divindade. No Brasil, o discurso surpreendeu e ecoou mal. A 17 mil km de distância, para muitos imigrantes, foi quase que impossível admitir a realidade.

UMA 'BOLHA' JAPONESA

Milhares de japoneses desembarcaram no porto de Santos (SP) a partir de 1908, com a intenção de trabalhar na lavoura e poupar dinheiro para poder voltar o quanto antes.

Cerca de 300 mil japoneses viviam no Brasil em 1945. Muitos trouxeram na bagagem o xintoísmo, diz Rafael Shoji, 49, pesquisador de religiões na PUC-SP. Eles viveram a era Meiji (1868-1912), ouvindo dentro de casa e no colégio que o imperador era um deus, que os japoneses eram um povo "singular" e que o Japão era "invencível".

No Japão, viu-se de perto a realidade: o avanço dos Aliados, as bombas atômicas, o discurso do imperador, a rendição japonesa e a ocupação americana. No Brasil, não.

Os imigrantes estavam num tipo de "bolha" cultural: como esperavam regressar logo ao Japão, não se integraram nem aprenderam português, não conseguindo então se informar sobre o que acontecia no mundo.

Nutridos por nacionalismo e notícias falsas, milhares aderiram à liga (cerca de 100 mil sócios contribuintes e 60 mil simpatizantes, segundo o Dops). Imaginavam-se como súditos ideais a defender a honra do imperador a qualquer custo, tal qual samurais, acrescenta o historiador Diego Moraes, 40, docente do IFG (Instituto Federal de Goiás) e autor de uma tese de doutorado sobre a Shindo Renmei.

Assim ficaram conhecidos os japoneses que confrontaram a polícia na cidade de Tupã (SP) em 1946: os "sete samurais". Logo após o discurso do imperador, um policial limpou as botas sujas com a bandeira japonesa, provocando um imigrante. Nos dias seguintes, sete foram à caça do cabo, que terminou transferido; interrogados e detidos, eles foram recebidos como heróis na colônia japonesa.

IRONIAS DA HISTÓRIA

Não muito tempo depois, a polícia paulista instituiu um método para identificar integrantes da Shindo Renmei: mandar o suspeito pisar na bandeira do Japão. "Ironia da história", diz Rafael Shoji, pesquisador de religiões: no século 17, no Japão, autoridades japonesas mandavam cristãos pisar na cruz para negar Cristo.

No Estado Novo (1937-1946), a polícia fichou 31.380 imigrantes suspeitos de participar da liga. Muitos foram perseguidos e presos injustamente. O jornalista Koichi Kishimoto (1898-1978) foi um deles. Diretor do Gyosei Gakuen, liceu para filhos de japoneses, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo, ele fez a revista Koya, suspensa após a censura à imprensa nipônica por Getúlio Vargas, em 1941. Dois anos depois, ficou preso por cerca de um mês, devido ao decreto-lei que proibia o ensino de idiomas dos países do Eixo.

Koichi anotava relatos na prisão. Hagino, com quem era casado, os levava para casa. O jornalista reuniu o material no livro "Nanbei no Sen'ya ni Koritsu Shite" ("Isolados em um território em guerra na América do Sul"), de 1947. Nas livrarias do bairro da Liberdade, os 2.000 exemplares esgotaram em dez dias. Até que alguém denunciou o volume como "nacionalista japonês", e o autor, como "subversivo". O Dops confiscou o lote e o jornalista foi preso pela segunda vez, em 1948, estigmatizado como "vitorista".

Quem conta a história é o antropólogo Alexandre Kishimoto, 50, que viabilizou a tradução e a publicação do livro do avô em 2022. "Não tive a oportunidade de conversar sobre esses assuntos que ele documentou no calor da hora com tanta coragem", conta ele, que tinha seis anos quando Koichi morreu. A prisão do avô nunca foi discutida na família. Virou, segundo ele, "um trauma, um tabu".

Outros autores vêm desengavetando histórias relacionadas à Shindo Renmei para, nas palavras de Alexandre, trazer "contranarrativas" a versões "sensacionalistas" da imprensa da época e do Dops. Entre eles está o autor do prólogo do livro relançado de Koichi, o jornalista paulista Jorge Okubaro, 76, filho de Massateru Hokubaru (1905-1966), acusado de participar da Shindo Renmei.

Ex-editorialista do jornal O Estado de S. Paulo, Jorge só sabia que seu pai foi preso porque lembra da mãe falando da necessidade de "pagar advogado". Depois de ler "Corações Sujos", decidiu investigar a história. Assim, publicou "O Súdito", livro que é uma resposta ao best-seller de Morais, que considera "policialesco".

Massateru foi um dos réus do processo judicial da Shindo Renmei. Para o agricultor, era inquestionável "a verdade da vitória japonesa". "Tenno Heika, Banzai!" (viva o imperador), celebrava.

Em julho de 1946, batizou o sétimo filho, Jorge, com o segundo nome Junji, homenagem a Junji Kikawa, tenente-coronel da cavalaria do Exército japonês e um dos principais dirigentes da Shindo Renmei. Para o jornalista, o pai estava longe de ser um "fanático" e "terrorista". "Meu pai era lavrador, cuidava da hortinha, colhia suas berinjelas, seus tomates e ia vender na feira. Uma pessoa simples", diz.

No pós-guerra, Massateru decidiu que os filhos deviam aprender português. Em 1950, levou a família para Santo André, na região metropolitana de São Paulo, em busca de mais oportunidades. Em 1954, convocado a depor no Palácio de Justiça, compreendeu, mas não se conformou com a derrota — e declarou que a Shindo Renmei queria só "estimular entre seus congregados amor à pátria natal". Em 1958, o caso foi encerrado e ele, junto a outros 389 réus, foi liberado.

ATÉ A VITÓRIA, SEMPRE?

Mais de 70 anos depois do auge da Shindo Renmei, a história ainda causa mal-estar. "Os que não participaram têm vergonha de quem fez isso; os que participaram têm vergonha de terem feito", diz Jorge.

Nem tanto. Ainda há quem questione o que foi a Shindo Renmei, passando um pano no passado.

Neto de Jinsaku Wakiyama (1871-1946), coronel do Exército Imperial do Japão, um dos fundadores da Shindo Renmei, Yoshio Kiyono, 87, diz que a liga era "nobre". Yoshio conta que cresceu num sítio em Bastos, em uma casa com rádio e lamparina, porcos, pomares de mexerica e limão, plantações de milho e algodão. Lembra que o avô dizia que ele era forte e que seria soldado, ninando-o com música militar.

Yoshio se tornou militar, de fato. Fez a Academia Militar das Agulhas Negras e tornou-se coronel do Exército brasileiro. Diz que, na ditadura militar (1964-1985), atuou contra o "terrorismo", inclusive como infiltrado, quando teria encontrado o guerrilheiro Carlos Lamarca (1937-1971) certa vez. Amigos da época apelidaram-lhe de "alemão", porque "era Caxias" contra o comunismo: "Se Lamarca é radical, sou ultrarradical".

Jinsaku, segundo o Dops, foi assassinado pela própria Shindo Renmei. Mais especificamente, por quatro "tokkotai", assassinos do "pelotão" organizado por Kamegoro Ogasawara, tintureiro radical que vivia na Vila Mariana, zona sul de São Paulo. Yoshio, entretanto, considera que os "tokkotai" não eram nobres, mas criminosos comuns. A memória parece falhar ao comentar o assassinato do avô.

"Tal qual me lembro", dizem os kanjis no diário de Suemitsu Miyamura (1914-1995), diretor da revista Hikari, editada por vitoristas. No diário, escreveu, em agosto de 1945: "Grande vitória! A cada momento está sendo repercutida para o mundo a tão esperada vitória do nosso império japonês". O autor não devia saber, mas dias antes foram lançadas as bombas contra Hiroshima e Nagasaki.

Ao ler o trecho do diário do pai, o engenheiro paulista Hidemitsu Miyamura, 79, viu "um texto tão absurdo que chega a ser inacreditável de tão desapontador". Só na casa dos 25 leu o material pela primeira vez. Datilografou os diversos volumes, e muitos deles lhe inspiraram crônicas que publicou no jornal São Paulo Shimbun.

Mas Hidemitsu considera a Shindo Renmei "um acidente de percurso explorado pela excentricidade": "O mal que 'Corações Sujos' fez...", diz, sobre o livro de Fernando Morais. Segundo ele, jovens nikkeis não ouviram "a realidade" pois seus pais não contaram "direito" o que foi a liga. "Não era uma organização para o mal, era para implementar o espírito japonês. Tem um lado positivo nisso", relativiza ele, que também cita Tokuichi Hidaka, um dos autores do assassinato do coronel Jinsaku Wakiyama, como "um estudante puro".

Hidaka foi condenado pelo crime e passou dez anos num presídio na Ilha Anchieta (SP). Saiu em 1957. "Lamento o que aconteceu, mas não fiz por motivo pessoal, foi por amor à pátria", declarou em 2011, aos 87 anos. Procurado pela Rádio Escafandro, ele não quis dar entrevista.

CICATRIZ ABERTA

Imigrantes japoneses foram perseguidos no Brasil durante a guerra. Muitos foram presos injustamente. Isso não altera o fato de que a Shindo Renmei existiu, e que japoneses foram mortos por outros japoneses que se julgavam súditos de um império — enquanto ele mesmo ruía, a milhares de quilômetros de distância.

"Ninguém quer ficar lembrando", critica a antropóloga Regina Yoshie Matsue, 52, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), citando fatos que muitas vezes são varridos para debaixo do futon: os crimes sexuais de soldados japoneses contra coreanas escravizadas (as "comfort women"), a invasão brutal da Manchúria e os massacres de civis na China. "Soldados japoneses até hoje são apresentados como heróis nos livros didáticos [no Japão]. Na verdade, foram criminosos de guerra."

No Brasil, a caça aos "corações sujos" deixou uma ferida aberta. A partir da década de 1960, os japoneses foram passando por um "rebranding" aos olhos brasileiros, tornando-se uma "minoria modelo", o estereótipo elogioso de povo inteligente e esforçado. Ideias mais racistas contra amarelos (sujos, selvagens) passaram a pesar contra outros asiáticos, principalmente chineses.

Até o fardo da Shindo Renmei às vezes fica para outros: doutoranda pela USP, a antropóloga Lais Miwa Higa, 36, conta que já ouviu a desculpa de que a maioria dos integrantes eram da ilha de Okinawa, reino independente que foi invadido e colonizado pelo Japão. "Reforça o estigma: terroristas, ignorantes, bárbaros, burros seriam apenas os okinawanos, não os japoneses."

Talvez por idealizar o Japão a ponto de não querer revirar esse passado, há quem dê de ombros para a Shindo Renmei. "Esse assunto não interessa: a gente quer falar de anime, de cultura pop japonesa", ironiza o historiador Diego Moraes. "Vou dizer com todas as palavras: não há nada cicatrizado."

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