QUEM CHEGA E QUEM PARTE

Histórias de quem está em trânsito no Tietê, a maior rodoviária do Brasil, no meio da pandemia

Adriana Terra (texto) e Ricardo Matsukawa (fotos) Colaboração para o TAB, de São Paulo

São 9h de uma terça-feira no Terminal Rodoviário Tietê. Lucas Mendes, 29, aguarda a chegada do amigo que lhe indicou um trabalho em São Paulo. Sem serviço no sul da Bahia, ele, que é trabalhador da construção civil, veio erguer as paredes de uma casa em Suzano. No dia em que o país registrou mais de 4 mil mortes por covid-19, Lucas está apreensivo.

"É difícil pensar que, ao voltar para casa com o alimento, posso estar levando algo que pode matar minha família. A gente vem porque tem filho, tem família, senão não vinha." Perto dali, um funcionário faz a sanitização do terminal, que tem fluxo mediano. Em março, a rodoviária registrou movimento 51% menor que o de março de 2020, quando a quarentena foi decretada.

A cena que se desenrola a poucos metros dali mostra o andar apressado de Fernando Peña Aguilar, 32. Venezuelano, ele tenta voltar para casa. É um trajeto longo que ele decidiu fazer por terra, devido às restrições de deslocamento, mas também por viajar acompanhado de uma cachorra que adotou no Uruguai. Tem rodado a América Latina com o animal dentro de uma caixa. Planeja conhecer a costa brasileira e pegar um ônibus em Manaus.

Em trânsito na rodoviária, cruzam-se histórias de família, buscas por trabalho e retornos à terra natal. No ar, pesa um clima de desânimo e cansaço que transparece nas conversas com a reportagem do TAB, marca das dificuldades dos últimos treze meses. Há quem se preocupe em ficar horas trancado em um ônibus com outros passageiros, e há quem relativize a gravidade da doença. Em comum, todos têm uma história de covid-19 entre pessoas próximas, e muitos já tiveram a doença. Ninguém escapa.

PÃO DE CADA DIA

Lucas conta que não estava "meio sem trabalho": estava sem trabalho nenhum. "Um colega viu minha situação, conseguiu esse serviço, pagou minha passagem", diz. "A classe média acha que está sofrendo, mas quem está mal mesmo é a classe baixa."

Ele caminha pelo corredor do terminal com sua bagagem em um carrinho e, assim como a reportagem, parece observar o movimento. "Topa conversar para uma matéria? Está chegando da Bahia ou indo para lá?". "Como desconfiou?", brinca Lucas, que usa máscara do time de futebol que leva o estado no nome.

Ele viajou do interior baiano para trabalhar na construção durante dez dias. O colega da indicação conhece a proprietária. "A gente fica apreensivo com o vírus: uns falam uma coisa, outros falam outra. Fica meio como cego em tiroteio. Mas, se a gente tiver um pouquinho de bom senso, der uma pesquisada, vai ver o que é o melhor", acredita.

Lucas conta que ele e a mulher pegaram covid-19 em 2020. Foram dois dias sem sentir cheiro nem gosto; no quarto dia sentiram febre, bem alta, 39°C, 40°C. "E eu venho de uma cidadezinha na região de Itabuna, no extremo sul da Bahia. Aí você volta e pode estar levando uma nova cepa, disseminando num lugar pequeno. É preocupação em dobro."

Do Rio Grande do Sul em direção ao Maranhão vem Magno dos Santos, 21. O motivo também é trabalho: por indicação do primo, colheu frutas em Caxias do Sul desde junho passado. "Onde moro não estava bom de trabalho e com essa doença ficou pior. Agora a gente volta pra casa, mas não pensa em ficar, porque sempre que surgir uma oportunidade, tem que ir -- a gente tem filho pra criar, pai pra cuidar. Minha família pegou covid-19 no começo, não ficamos tão mal e agora estamos nos cuidando", conta ele, enquanto embarca na viagem de volta de quase quatro dias.

PLANO ESTACIONÁRIO

Sentados, aguardando o ônibus para Monte Verde (MG), de escala em São Paulo, o casal Pedro Henrique Magalhães, 25, e Joice Magalhães, 27, está voltando de uma visita à família em Niterói (RJ) depois de um ano sem ver ninguém. "Fiquei apreensiva com essa nova variante na viagem, especialmente no retorno", diz Joice, que usa duas máscaras.

Eles viram o projeto de vida mudar totalmente nos últimos doze meses: juntos, fazem na cidade mineira um curso preparatório para um intercâmbio. Em setembro passado, viajariam para fora do país.

"A meta é aprender inglês e coreano e se estabelecer na Ásia, mas agora o Brasil é o segundo país com mais barreiras para viajantes no exterior, então está tudo incerto", diz Pedro. Os estudos prosseguiram, mas de forma remota. Joice arrumou recentemente um emprego com turismo que a permite trabalhar de casa.

No trajeto oposto, vindo de Minas Gerais com destino ao Rio, Gabriele Victória, 22, também foi visitar a mãe depois de dois anos sem vê-la -- mantendo distanciamento para evitar o contágio.

Trabalhando como garota de programa, ela conta que teve de trocar de apartamento por não dar conta de pagar. "Não tenho como receber auxílio porque declaro renda. Trabalho online na maior parte do tempo, mas o fluxo de clientes está baixo. Entendo que estamos numa situação coletiva ruim."

QUEM ATRAVESSA FRONTEIRAS

Diego Menor é venezuelano, tem 20 anos e caminha rápido pelo terminal atrás de informações. Com cabelo moicano, rosto tatuado e colete de tachas, pergunta qual é a ideologia do veículo para o qual está dando entrevista e prefere não tirar foto.

Há três anos ele viaja pela América Latina, levando uma vida nômade e fazendo bicos. Saiu de lá porque a mãe não conseguia pagar seus estudos. "Eu já fazia malabares desde os 13 anos, então fui embora para procurar oportunidade", conta.

Quando a pandemia começou, Diego estava em Lages (SC). Estava tudo fechado e ele não tinha telefone. "Não tinha lan house aberta, não tinha mais nenhum maluco na cidade, não conseguia pegar carona por aplicativo. Vivi dois meses bem horríveis", diz. Após visitar amigos no Brasil, está retornando ao Uruguai -- onde esteve morando nos últimos tempos -- por um motivo importante: vai ser pai.

Venezuelano como Diego, Fernando Peña Aguilar diz que é uma das poucas pessoas que não saiu de lá pela crise, não porque tenha dinheiro. "Não penso muito em política e essas coisas", diz ele, que trabalhava como assistente de produção audiovisual.

O novo coronavírus não o preocupa. "Não acredito muito nisso. Havia disputas em muitos países, e todos ficaram com coronavírus, e daí todos ficam na sua casa. Todo mundo fica puto com os governos, mas, devido à covid-19, é 'fique puto na sua casa', entende?", diz ele.

Diz que não conhece gente jovem que tenha morrido da doença, só "pessoas velhas", amigos de amigos. No Brasil, um levantamento mostra que, em março de 2021, três em cada dez mortes por covid-19 foram de jovens e adultos, e mais da metade das UTIs no país está ocupada por pacientes com menos de 40 anos.

EMPREGO E VIDA NOVA

Na área dos guichês de compra de passagem, Honei Pedroso, 62, corre atrás de Henry, 1, enquanto aguarda a mulher, Juliana Christine Bejes, comprar o bilhete. Eles são de Curitiba e estão vindo morar em São Paulo. Juliana está retornando à capital paranaense para fazer a mudança. "Uma amiga de anos nos chamou para sermos secretários parlamentares dela. Ela é deputada federal e se chama Joice Hasselmann [PSL-SP]", conta Honei.

Sobre os riscos de viajar no momento, Honei diz estar preocupado e inconformado. "Dá revolta, porque houve a oportunidade de termos vacina bem antes. Espero que isso não seja apagado da História, porque infelizmente as pessoas ligadas à política são responsáveis por esse genocídio que acontece aqui", conta o educador físico, que trabalhava como personal trainer até o momento do convite para o cargo público.

Próximo dali, Bruno Carneiro Magalhães, 20, chega de Poços de Caldas (MG) para acertar questões de trabalho em São Paulo, onde estudava e morava antes da pandemia. Com a quarentena e as aulas online, voltou para a casa dos pais. Bruno é estudante de relações internacionais e diz saber que um estágio remoto como o que conseguiu é hoje um privilégio.

Há um mês, teve covid-19 e se recuperou bem em casa. "Óbvio que, para viajar agora, você fica com pé atrás. O pessoal usa máscara, mas eu já peguei ônibus vindo pra São Paulo com todas as cadeiras lotadas. Não concordo com isso. Você não mede temperatura, por exemplo, quando entra no veículo."

A norma da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) diz que as empresas devem adotar medidas de limpeza e criar estratégias para minimizar o contato entre passageiros. No caso de veículos não climatizados, recomenda-se que as janelas fiquem abertas durante a viagem. No entanto, cabe às empresas adotarem os protocolos.

DE VOLTA PARA CASA

"Estou indo de volta para minha terra", diz Joana D'Arc enquanto aguarda seu ônibus na área de embarque. Ela viveu 33 dos 53 anos de vida em São Paulo, mas nunca gostou muito daqui. Sua raiz é na Paraíba. Considera missão cumprida ter criado os três filhos. É uma das pessoas com quem TAB conversou que mais parecia animada em viajar naquela terça-feira chuvosa.

Joana é técnica de enfermagem e vai trabalhar agora em um lar de idosos. Ela diz que a covid-19 não influenciou na mudança. "Sei que existe a pandemia, mas não acho que seja para tudo isso. Já fui antes para lá e comprei uma casinha", conta, feliz com o retorno.

Quem também está no embarque é Washington Luiz Vitório, 50. Aposentado, tem ido a Salvador, sua cidade natal, com bastante frequência. "Fui a pandemia inteira para lá. Houve um período em que se fechou a rodoviária da capital, mas continuaram as viagens interestaduais. Então eu ia pra Feira de Santana (BA) e pegava um um carro até em casa."

Há mais de duas décadas morando em São Paulo, Washington acredita que esteja fechando um ciclo. Já vem querendo voltar há anos. Um casal jovem, com filha pequena, conta que também está voltando para sua cidade de origem, no Ceará, mas por falta de trabalho. Atrasados, interrompem a conversa e partem.

Outro casal, Raquel Carriel Garcia, 54, e Daniel Caetano Garcia, 57, chega de volta. Após uma década morando no sertão de Jeremoabo (BA), voltaram a São Paulo de vez. Com pressa, apertam o passo para pegar o metrô em direção à Barra Funda, onde vão tomar o ônibus que os levará ao interior do estado. No povoado em que moravam, Raquel diz que a covid-19 não se disseminou -- "é um lugar muito sossegado". Mas sair de lá deu medo. "Essa pandemia deixa todo mundo abalado." Em meio a tanta notícia de perda, a passagem deles carrega a notícia da vida: o casal veio receber o neto que está para nascer.

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