ARENA DE SANGUE

Portugal ainda celebra touradas e corridas à moda antiga e faz a fama e a riqueza de cavaleiros

Adriana Negreiros (texto) e Lucas Lima (fotos) Colaboração para o TAB, de Santarém (Portugal) Lucas Lima/UOL

Santarém, 5 de junho de 2022. São 17h de domingo e o calor de 24ºC faz com que os bancos à sombra da arquibancada se assemelhem a uma área VIP: ali estão concentrados homens, mulheres e crianças usando roupas com aparência de caras. Têm o frescor de quem acabou de tomar banho e passar colônia e pagaram entre 22 e 47,50 euros (entre R$ 115 e R$ 245, aproximadamente), cada um, para assistir a mais uma corrida da Monumental Celestino Graça, nome oficial da praça de touros da cidade. Do outro lado da arena, pagantes de bilhetes que começam em 7,50 euros suam e protegem-se do sol com bonés, chapéus e outros acessórios que, dali a pouco, muitos deles terão perdido.

Cerca de 8.000 pessoas estão na praça com capacidade para 13 mil espectadores, o que faz dela a maior de Portugal. Rapazes imberbes circulam vendendo bebidas. Uma banda filarmônica toca os primeiros acordes e os aficionados (como são chamados os fãs de touradas) fazem silêncio. E, então, descortina-se um cenário que parece saído de filme de época: oito homens com camisa branca, gravata e cinta vermelha, jaqueta bordada e calça (ambas marrons), de meia branca — todas as peças coladas ao corpo — fazem saudações sincronizadas ao público. São integrantes do Grupo de Forcados Amadores de Santarém. Eles trazem, sobre o ombro, um gorro verde e vermelho, o barrete.

O quadro se completa com a entrada triunfal de um homem sobre vistoso cavalo branco. De casaco verde com bordados dourados, acena um chapéu da mesma cor para a plateia, que a essa altura já quebrou o silêncio em aplausos e gritos de entusiasmo. Em muitos aspectos, os personagens evocam uma atmosfera de tempos antigos, embora uma das maiores ofensas para os aficionados seja a classificação das touradas como "medievais".

António Ribeiro Telles, um cavaleiro de 59 anos, porte elegante e pele bronzeada, voltou a trabalhar após ter sofrido traumatismo craniano e parada cardiorrespiratória durante uma corrida de touros, em agosto de 2021. Na ocasião, Telles caiu do cavalo e, atacado pelo touro, permaneceu cinco minutos no chão, inconsciente. Durante os 15 dias em que esteve internado, os fãs temeram pela vida do homem.

Apesar do trauma recente, Telles sorri quando um touro brabo, preto e com marcas a ferro entra na arena, em sua direção. Do alto do cavalo, ele enfia uma primeira bandarilha comprida — uma haste de plástico enfeitada de tecidos coloridos, com um arpão na extremidade — no dorso do animal. O público aplaude a performance, alguns de pé. Depois, Telles enfia outra bandarilha, e mais uma, depois outras, até que se veem, da arquibancada, os fios de sangue que partem dos pontos onde o arpão foi cravado. Entre uma investida e outra do cavaleiro, o touro defeca.

Pela atuação exemplar, Telles é autorizado a dar a volta na arena, antes de se retirar de cena. Os pagantes levantam-se e atiram chapéus, bonés, lenços e casacos na direção do homem. Ele nunca deixa de sorrir.

Voltam à arena os oito forcados do início do espetáculo. Nem todos concordam ser este o ponto alto de uma tourada, mas, para um espectador inaugural, o que se desenrola a partir dali é aterrador. À frente dos outros sete forcados, enfileirados, um jovem desafia o touro a partir para cima de si. Nesse momento, o animal já tem sangue a lhe escorrer por quase todo o corpo. Diante da provocação, esfrega a pata traseira no chão, levantando uma nuvem de areia, e corre na direção do jovem.

O rapaz tem pouco mais de 10% do peso do touro (600 kg). Pega-o pelo chifre, literalmente. Antes de ser atingido pelo animal, salta sobre ele e, com o auxílio dos colegas, domina-o. A impressão de quem vê a cena é de que o rapaz está sendo atropelado por um automóvel desgovernado. Apesar da elegância das vestes dos forcados, a cena não se destaca pela harmonia. Ao final, há oito homens sobre um touro ensanguentado, alguns deles a puxar-lhe o rabo, outros pendurados no pescoço do bicho, arrastando-se pelo chão.

Como conseguiram dominar o touro, são ovacionados. O animal deixa a arena. Dali cinco horas, no máximo, dará o último suspiro.

Em Portugal, ao contrário do que ocorre na Espanha, os touros não são mortos durante o espetáculo — a matança foi proibida por lei em 1928. A exceção são as cidades de Barrancos e Monsaraz, amparadas desde 2002 por uma mudança na legislação que permite a prática onde a tradição tem mais de 50 anos.

Depois de deixar a arena, os animais têm as bandarilhas extraídas e, na sequência, seguem para o matadouro. A carne é eventualmente aproveitada para alimentação. Em casos de braveza excepcional, são poupados da morte e retornam para o campo. Quando isso acontece, podem ser utilizados em corridas de touros populares, realizadas nas ruas, em pequenas cidades do país. Nas corridas profissionais, a regra estabelece que um touro pode entrar na arena uma única vez.

O fato de o bicho ser poupado da morte às vistas da plateia faz com que muitos considerem a tourada portuguesa — cuja figura central é o cavaleiro — mais palatável do que a espanhola, na qual o animal é executado na arena pelo toureiro a pé. São duas "expressões artísticas" com características próprias, de acordo com Helder Milheiro, secretário-geral da Protoiro, a Federação Portuguesa de Tauromaquia. Assim, ele tenta desfazer uma confusão que, segundo afirma, leigos costumam fazer: considerar as touradas um esporte.

"Trata-se de uma arte em ação, como o bailado, a ópera, a peça de teatro. Mas, ao contrário de outras artes performáticas, só é válida se for ética", explica.

Milheiro é um homem de 42 anos cujos cabelos grisalhos, fala enérgica e sorrisos contidos dão a ele certo ar professoral. Ele diz que o toureiro precisa cumprir requisitos para que sua lida seja considerada uma obra de arte. Deve exibir virtudes como a coragem, o autocontrole e a honra, principalmente para com o animal. Não pode, por exemplo, enganá-lo ou atacá-lo pelas costas. "Tem que haver uma exposição ao touro, para que este também tenha a oportunidade de ganhar a disputa", afirma.

Ele define a corrida de touros como um "espetáculo que celebra a vitória da razão sobre o caos e a violência da natureza". Formado em filosofia pela Universidade Nova de Lisboa, Milheiro tem entre seus pensadores preferidos o alemão Martin Heidegger.

Comento sobre as conhecidas ligações entre Heidegger e o nazismo. Estamos almoçando em um restaurante de carnes em Lisboa, nos arredores do Campo Pequeno, a principal praça de touros da cidade. "Heidegger hoje estaria canceladíssimo", ele diz, com ironia — e algum ressentimento. A chamada "cultura do cancelamento" é, há pelo menos dez anos, uma das mais fortes inimigas da tauromaquia portuguesa.

Pressionadas por ativistas, marcas deixaram de anunciar nas corridas de touros e de patrocinar cavaleiros. A renda que, no passado, era incrementada por contratos polpudos de publicidade com grifes de roupas e relógios, além de fabricantes de bebidas, caiu de forma alarmante.

"Nos tempos atuais, minorias ofendidas condicionam a vida das maiorias", afirma Milheiro. Mesmo os grandes toureiros sofrem com o temor das marcas de se associarem a uma atividade tida, por muitos, como cruel.

Por ano, as corridas de touros atraem cerca de 450 mil portugueses a praças como a de Santarém, segundo dados da Protoiro. As organizações que se opõem à atividade, no entanto, dizem que o número está inflacionado. De acordo com a plataforma Basta.pt, que luta pela abolição das touradas no país, o número vem caindo nos últimos anos. A plataforma cita dados fornecidos pelo Instituto Nacional de Estatísticas, órgão de pesquisas do governo: 283.592 espectadores em 2019 e apenas 62.446 em 2020 (queda provocada pela proibição de espetáculos devido à pandemia). "O declínio da tauromaquia é o reflexo de uma sociedade onde ganha cada vez mais importância o respeito e a afinidade pelos animais", lê-se no site.

Após a performance de António Ribeiro Telles em Santarém, quem entra em cena é o cavaleiro Rui Fernandes, 43. Está montado em um cavalo branco. Tem cabelos loiros e esvoaçantes, olhos azuis, pele queimada de sol e um corpo esguio de 1,90m. Os dentes são tão brancos que, de longe, tem-se a impressão — equivocada — de que usa proteção na boca, como os lutadores de boxe.

Tão logo se põe diante de um touro marrom, Rui Fernandes golpeia-o com um arpão. A plateia entusiasma-se. Quando o animal já está transformado pela mistura de sangue e hastes coloridas enfiadas em sua pele, Fernandes faz o cavalo branco trotar ao som da música executada pela banda, como se estivesse dançando. Com o sorriso largo e os cabelos ao vento, esbanja simpatia. O público reforça os gritos e aplausos.

Fernandes tem 17,5 mil seguidores no Instagram. Suas fotos e vídeos recebem dezenas de comentários com emojis de foguinho, coração vermelho ou simplesmente a palavra "lindo". Mesmo sendo um galã com certa popularidade, não tem, atualmente, nenhum contrato de patrocínio. A renda das corridas também diminuiu. "Há 14 anos, participava de 65 corridas. Hoje é a metade. O mundo está muito...". Em vez de completar a frase, Fernandes dá um longo suspiro.

A entrevista se desenrola em um salão cujas paredes são decoradas com cabeças de animais empalhados, molduras de cartazes anunciando touradas e apetrechos de cavalaria. O cômodo faz parte de um amplo complexo com espaço para treinar e criar cavalos, na localidade de Charneca de Caparica, perto de Lisboa. Fica a poucos minutos da casa onde vive com a esposa e as duas filhas pequenas, de 8 e 2 anos.

Rui Fernandes fuma um cigarro enquanto conta a ocasião em que, na França, enfrentou um grupo de ativistas antitaurinos. "Ameaçaram puxar fogo ao meu caminhão com os cavalos dentro", conta, entre baforadas. "Uma coisa é não gostar de touradas. Outra é agir assim", diz, a respeito dos ativistas incendiários. Seu maior temor é o de que as filhas sofram ataques por causa do seu trabalho — não raro, é chamado pelos adversários de "assassino". "Esses antitaurinos nos chamam de todas essas coisas. Mas pela internet. Gostaria que tivessem coragem de dizer isso na cara", afirma.

Um dos adversários mais ferrenhos da tauromaquia portuguesa é o PAN, o Partido dos Animais. Porta-voz da sigla, a deputada Inês de Sousa Real defende o fim imediato das touradas. "Aquilo que temos dificuldade de compreender é que, em pleno século 21, se tenha tanta tolerância com uma atividade que consiste em provocar, deliberadamente, sofrimento aos animais", escreveu em artigo recente no jornal Público.

Embora as touradas tenham, entre seus defensores, políticos de esquerda (incluindo comunistas e socialistas), nenhuma sigla abraçou a causa com tanto alarde como o Chega, partido de extrema direita liderado por André Ventura, candidato a presidente derrotado nas últimas eleições. Em abril, o partido apresentou um projeto para reduzir os impostos cobrados sobre os espetáculos tauromáquicos — "uma manifestação cultural e popular profundamente enraizada na sociedade e tradições portuguesas", de acordo com o texto da proposta.

A associação entre direita e touradas é tão forte que, no site da Protoiro, há um tópico criado especialmente para tentar desfazê-la. "As corridas de touros são apartidárias e nada têm que ver com política. Dão-se corridas de touros e outros espetáculos taurinos em concelhos [municípios] de todo o país, concelhos esses que são dirigidos por efetivos de todas as cores políticas", afirma o texto, citando o jornalista Daniel Oliveira — um dos fundadores do partido Bloco de Esquerda — como exemplo de aficionado progressista.

Além de uma suposta afinidade com a direita, há outras impressões que os tauromáquicos buscam combater. Uma delas é a de que o ambiente é excessivamente masculino. "Temos mulheres nas arenas desde, pelo menos, o século 19. Não digo que fosse um ambiente igualitário, mas havia espaço para elas se manifestarem", afirma Helder Milheiro.

A atuação de mulheres como toureiras, no entanto, é mais recente. Uma das pioneiras é Ana Batista, uma bela mulher de 44 anos, mãos fortes, sobrancelhas alinhadas e postura de bailarina. Desde pequena, foi incentivada pelo pai — um criador de cavalos — a montar os animais. Também na infância, frequentou uma escola para formar toureiros. No ano 2000, tornou-se profissional. "De lá para cá, tenho construído minha trajetória com sentido de responsabilidade, entrega, esforço e muita paixão pelo que faço", afirma.

Embora a presença de homens — e conceitos usualmente associados a um certo ideal de masculinidade, como virilidade, força e valentia — seja predominante no universo tauromáquico, Ana Batista afirma jamais ter sofrido preconceito de gênero. "Não me recordo de nenhum episódio desagradável. Bem pelo contrário, sempre senti apoio, afeto e muito encorajamento", revela.

Devido às peculiaridades do trabalho, optou por não ter filhos. "Esta é uma profissão exigente e somos levados a vivê-la intensamente. Costumo dizer que os cavalos são os meus filhos. É com eles que estou diariamente e me dão muitas alegrias", diz Batista, que também cria cachorros, ovelhas, galinhas, patos e coelhos — ela mora em uma fazenda na vila de Salvaterra de Magos, perto de Santarém.

Lá pelo quarto touro — ao todo, são seis — parte da plateia perde o interesse na corrida de Santarém, naquela tarde quente de 5 de junho. No lugar mais caro da arquibancada, uma garotinha de cerca de 10 anos aplica um protetor solar francês nas pernas, embora não esteja sob o sol. O touro sangra com intensidade ao receber a quarta bandarilha quando ela chega ao tornozelo e passa longos minutos a massagear a região, manchando o All Star branco.

Algo excepcional, no entanto, faz com que os desatentos — incluindo a garotinha — voltem os olhos para a arena. O forcado selecionado para enfrentar o touro não consegue agarrá-lo na primeira, na segunda e nem na quinta tentativa. Mesmo com a ajuda dos colegas, é quase esmagado pelo animal, de uma braveza que surpreende os aficionados. O jovem deixa a arena cabisbaixo, com sangue espalhado por uma das coxas, numa imagem chocante para quem não é do ramo.

Dentre os envolvidos numa tourada portuguesa, os forcados estão entre os que mais correm risco de morrer. Em 2017, Fernando Quintela, de 26 anos, faleceu após ser colhido por um touro de 530 quilos durante uma corrida. Nove dias antes, Pedro Miguel Primo teve o mesmo fim. Tinha 25 anos. A morte, no entanto, não os tornou menores aos olhos dos aficionados — sublinhou, para sempre, a valentia deles. "A tauromaquia espelha a condição humana em suas contradições", afirma Helder Milheiro, para quem o toureiro está "na mesma condição existencial do poeta". Mas com uma diferença: "O poeta pode fugir. O toureiro, não".

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