MÍNIMO PARA SOBREVIVER

O solitário e nocivo mundo virtual das comunidades pró-transtornos alimentares

Marie Declercq Do TAB, em São Paulo Deborah Faleiros/UOL

"Depois volto a comer", pensava Tamires Feitosa de Paula, analisando o próprio corpo no espelho. Sua missão era subir na balança e ver os ponteiros marcarem 25 kg, peso que supostamente lhe traria felicidade. Não muito tempo depois, a jovem foi internada e passou dois meses usando uma sonda alimentar. Estava com 28 kg.

A carioca de 25 anos viveu uma série de problemas decorrentes da anorexia nervosa. Além da sonda, Tamires perdeu chumaços de cabelo, teve tuberculose por conta da baixa imunidade, corria risco de o coração parar a qualquer momento, foi internada diversas vezes por hipoglicemia e sentia frio. Muito frio. Devido à extrema magreza, o corpo não tinha mais como se aquecer.

Depois da última internação, em setembro de 2021, Tamires iniciou um tratamento. Hoje tenta se alimentar corretamente para diminuir os estragos que anos de transtorno lhe causaram. Semanas atrás comemorou ter comido um pudim, sobremesa que antes morria de medo de consumir.

Essa jornada exaustiva é publicada em sua conta do TikTok, onde uma voz frágil alerta os espectadores sobre os riscos de viver a vida contando calorias compulsivamente e buscar métodos compensatórios para eliminar o mais rápido possível qualquer coisa que entre no organismo.

Muitas pessoas deixam comentários nos vídeos, parabenizando pelo progresso. Outras descrevem experiências parecidas.

Mas, em outro canto da internet, um dos vídeos de Tamires foi compartilhado com a legenda "Agora minha meta é chegar aos 25 kg, que linda".

DOENÇA COMO ESTILO DE VIDA

Algumas palavras-chave bastam para encontrar, na internet, um universo paralelo em que a situação de Tamires não é vista como um transtorno psiquiátrico e um risco à vida, mas como uma escolha. Vale tudo para ser o mais magra possível.

A própria Tamires frequentou essa subcultura digital por um bom período, especialmente no pico de seu transtorno alimentar. São milhares de perfis pessoais, grande parte garotas adolescentes e jovens de 20 e poucos anos, cuja afinidade é serem portadoras de transtornos alimentares como anorexia nervosa (recusa em se alimentar) e bulimia (prática de vomitar com frequência para não ganhar peso), aparentados apesar das diferenças.

Parece apenas um espaço para troca de experiências e acolhimento — viver com um transtorno alimentar é algo extremamente solitário. Mas o que reina ali é uma visão de mundo distorcida que normaliza dietas super-restritivas, jejuns prolongados, fazer exercícios até desmaiar e esconder esses comportamentos das pessoas ao redor por meio de manipulação.

"Algumas meninas incentivam o uso de medicamentos para acelerar o metabolismo", revela Tamires. "É bem perigoso mas ninguém liga, o foco é emagrecer. Já encontrei perfis de gente que foi parar na emergência por causa desses medicamentos."

Nesse contexto, a situação de Tamires não era preocupante, mas algo a ser almejado. Isso alimentava na jovem a vontade de bater metas irreais de perda de peso. "Na comunidade eu conseguia me desafiar ainda mais, e recebia elogios e apoio das outras meninas."

VISÃO TRANSTORNADA

Misha* tem 16 anos e mantém um perfil no Twitter no qual posta sua rotina e táticas para controlar a fome. Seus problemas com comida começaram aos sete anos.

A adolescente descobriu que existiam pessoas iguais a ela quando navegava o Tumblr, aos dez anos de idade. À medida que seu transtorno alimentar foi se agravando, Misha seguiu conversando com outras garotas na mesma situação. Hoje, é ali que encontra uma distração para não sucumbir aos pensamentos intrusivos sobre comida.

Ela defende a existência desses ambientes. "A comunidade é tóxica para pessoas que não têm o transtorno", resume. "Aqui é um lugar em que todas se acolhem e se sentem bem."

Tudo parece positivo, mas a própria adolescente tem receio de falar sobre o tema. Não é de se estranhar, já que grande parte das conversas descamba para comentários sobre corpos alheios.

"Essa parece uma porquinha", diz uma das usuárias sobre uma cantora brasileira. Outro tuíte mostra o antes e depois de uma influenciadora que se recuperou de um transtorno alimentar. "Ela era muito linda e magra, nossa", comenta outro perfil, que posta fotos de modelos com os ossos marcando a pele e a legenda "inspiração <3".

O problema para Misha não é expor a comunidade em si, mas atrair mais jovens como ela para o mundo em que circula. É por isso que, a pedido da própria entrevistada e dos profissionais especializados no tema, esta reportagem não citará os termos usados para definir a comunidade, nem mesmo os códigos utilizados para publicar dicas de dieta, exercícios e outras formas de agravar transtornos alimentares.

LEGADO DA FOME AUTOIMPOSTA

Desde os anos 2000 já havia sites, comunidades no Orkut e blogs temáticos de pessoas pró-transtornos alimentares. Na época, eram chamados de pró-ana (anorexia) e pró-mia (bulimia). Ana e Mia eram vistas como "entidades", cada qual com sua própria personalidade.

Mirian Bottan lia todas as postagens dessas comunidades, dentro e fora do Orkut. Não era uma participante ativa, mas usava o conteúdo como inspiração para manter seu próprio distúrbio alimentar, que começou a se manifestar aos 13 anos e só passou a ser tratado aos 26.

"Lia esses blogs e achava demais", relembra Bottan, hoje jornalista que mantém um perfil no Instagram para conscientização sobre transtornos alimentares. "Mesmo doente, vomitando de cinco a seis vezes por dia, apoiava o discurso desses lugares."

Assim como a comunidade dos anos 2020 se inspira em artistas de Hollywood, modelos magérrimas e ídolos do k-pop, os grupos dos anos 2000 veneravam imagens de celebridades e garotas anônimas extremamente magras. "Isso vai entrando no seu imaginário de uma forma que você não consegue nem compreender. É muito difícil de desconectar", explica.

Hoje aos 35 anos, ela está saudável, mas ainda precisa viver um dia de cada vez para não se deixar levar por alguns pensamentos. Bottan conhece a nova geração da comunidade pró-transtornos alimentares e afirma que o conteúdo compartilhado é bem pior. Da mesma forma que o discurso de ódio recrudesceu nas redes sociais, com o passar dos anos, o mesmo aconteceu com esses ambientes.

EM BUSCA DE CONTROLE

Transtornos alimentares têm relação com controle, seja possuí-lo ou perdê-lo. É difícil apontar como surgem. Pode ser um trauma, um problema familiar, bullying na escola, comentários inconvenientes, depressão, ansiedade. Quem sofre dessas doenças compartilha uma obsessão por controlar o corpo e as necessidades fisiológicas para compensar a falta de controle sobre os fatores externos da vida.

Misha vive de uma dieta de 600 a 800 kcal, valor calórico muito baixo para sequer compensar o gasto basal diário. Isso quando ela come, porque é comum entrar em jejuns que chegam a durar até 100 horas. Antes não duravam nem 24 horas, mas ela se acostumou. "A restrição faz a gente se sentir limpa, sabe?", diz.

Há uma sensação de prazer na restrição. E, mesmo que cause danos à saúde, gera uma euforia, uma sensação de completude. "A idolatria por controle e por quem consegue ser mais magra surge porque brigar com a fome é muito difícil", explica Fernanda Timerman, nutricionista. "Você está lutando contra um instinto básico da vida. É um nível de sofrimento muito grande."

Assim se cria um ambiente de disputa na comunidade. Quem consegue ser mais magra? Quem consegue ficar mais tempo sem comer? Quem será a próxima a adoecer? Não à toa, toda semana dezenas de intrigas passam a pipocar entre os perfis, muitas vezes geradas por meninas que zombam umas das outras por causa de algum deslize.

O canto da sereia para entrar nesse universo vem de um suposto acolhimento que quase nunca acontece. "Ninguém ali dá suporte aos outros, mas mostra que tem um controle cada vez mais refinado. Essa validação traz uma sensação de bem-estar muito importante, fazendo com que os outros participantes almejem isso", resume Vanessa Tomasini, psicóloga clínica especialista em transtornos alimentares e voluntária do Programa de Transtornos Alimentares - Ambulim do Hospital das Clínicas, em São Paulo.

FALTA DE APOIO

Vez ou outra, alguém desaparece da comunidade. Às vezes o perfil apenas foi desativado por alguma denúncia, mas há casos de garotas que somem por problemas de saúde, outras que saem para buscar tratamento e aquelas que somem para sempre, sem deixar explicações.

Tamires distanciou-se desse universo. A situação é difícil, porque ela não conseguiu um acompanhamento médico especializado e encontra dificuldades em casa. A família não entende muito bem sua doença, problema comum relatado por pessoas que vivem o mesmo.

Mesmo assim, ela preferiu se afastar. "Quando estamos em recuperação, percebemos que não vamos conseguir melhorar se não sairmos. É bem comum as contas sumirem por um período e depois, quando têm recaídas, voltam. (...) Não dá para ter os dois, é impossível manter uma cabeça saudável lá dentro", conta.

Não existe uma fórmula mágica para abordar e ajudar quem sofre de transtornos alimentares. "O melhor é o acolhimento, mas não adianta chegar falando que a pessoa vai morrer. Há muitas coisas por trás. Pode ser um pedido de socorro, é um escape. Os pais devem entender que não adianta apontar o dedo e fazer a pessoa se sentir culpada", explica Mirian Bottan.

Os distúrbios alimentares possuem a maior taxa de mortes dentro dos transtornos psiquiátricos. Estima-se que 1% a 5% das mulheres são afetadas por eles, mas Vanessa Tomasini alerta para a falta de diagnóstico dentro da população masculina.

É TUDO NORMAL

A subcultura que defende os distúrbios alimentares é extrema, mas o que é compartilhado ali sobre se privar de comer ou sobre malhar até sentir dores não foge muito do que é ofertado em cursos, e-books e produtos em perfis de influenciadores fitness.

A busca pelo corpo perfeito é uma experiência tão comum em nossas vidas - seja dentro de casa, falando com amigos ou colegas de trabalho - que o ato de "comer transtornado" é aceitável. Isso faz com que se demore muito tempo para perceber quando alguém próximo está com um problema.

"Socialmente, as pessoas aplaudem muitas coisas que são comportamentos de transtorno alimentar", afirma Tomasini. "É um ambiente adoecido, onde a pessoa escuta desde cedo que ser magra é a coisa mais importante que existe, fazendo a pessoa internalizar que ser gorda é a pior coisa que existe."

Ainda que seja difícil acolher a todos, é possível dificultar a busca por essas comunidades ao vetar as hashtags e termos utilizados nesses ambientes.

No TikTok e no Instagram, grande parte das hashtags relacionadas a transtornos alimentares foram banidas. Para driblar o banimento, muitas contas usam códigos para seguirem publicando conteúdos danosos. No Twitter, onde circula grande parte dos conteúdos, as hashtags seguem no ar e são sugeridas pelo algoritmo da plataforma aos usuários que visitam mais de um perfil centrado nesse tópico.

Ao ser informado sobre a existência da comunidade, o Twitter afirma ter suspendido as contas enviadas pela reportagem por violação às suas políticas. "A empresa segue fazendo avaliações internas para eventualmente tomar medidas adicionais, se cabíveis", disse a plataforma.

"A prioridade número um do Twitter é a segurança das pessoas que usam o serviço e estamos comprometidos em construir uma Internet mais segura e em melhorar a saúde da conversa pública. Os transtornos alimentares são uma questão extremamente complexa e sensível. O Twitter leva esse assunto a sério e trabalha com uma equipe global de especialistas independentes para formular a abordagem nessa área".

Apesar dos esforços das empresas, milhares de contas nas diversas plataformas, seguem no ar. E o que mais salta aos olhos entre quem defende com unhas e dentes seus transtornos é que a busca pelo corpo perfeito é apenas a superfície de um subtexto. "Não é estética, mas necessidade de evitar o sofrimento existencial", resume Tomasini.

*o nome foi trocado

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Se você atravessa uma situação parecida à relatada nesta reportagem, procure ajuda especializada.

Ambulim: https://ambulim.org.br/ajuda/
Astral BR: https://astralbr.org/buscar-ajuda/

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