'A QUE HORAS FECHA VENEZA?'

Moradores se unem para tutelar a cidade italiana, que perde sua alma com o turismo de massa

Janaina Cesar (texto) e Andrea Pattaro (fotos) Colaboração para o TAB, de Veneza

Os turistas voltaram a ocupar as ruas e os canais de Veneza. O retorno é ruidoso: táxis e vaporetos (barcos usados para transporte público) têm filas de espera de uma hora, com cenas de vandalismo e degradação por toda parte. Há quem nade nas águas da lagoa e cozinhe macarrão em plena praça de São Marcos. Veneza, que por séculos seduziu o mundo com sua beleza, hoje é refém de si mesma.

Com a volta do turismo em massa, emergem velhos problemas econômicos e ambientais: êxodo urbano, falta de moradia e, ao mesmo tempo, explosão dos espaços residenciais em hospedaria do tipo Airbnb, falta de perspectiva de futuro para os jovens, o tráfego de lanchas, os problemas decorrentes das mudanças climáticas. O turismo envenenou Veneza e não há alternativa econômica a ele para salvar a cidade.

Para tentar conter o fluxo, a partir de janeiro de 2023 será obrigatório reservar entrada na cidade através de um aplicativo e pagar uma taxa de ingresso que vai de 3 a 10 euros (cerca de R$ 16 a R$ 55), a depender do fluxo de visitantes.

"É absurdo cobrarem para entrar na cidade. Os venezianos sempre nos exploram. Aqui é impossível tomar um café — são 4 euros. Ir ao banheiro custa 2 euros", dizia à reportagem do TAB o guia turístico Vitor, 50, enquanto segurava uma bandeirinha de Portugal, no meio da praça de São Marcos. Ele mora na Espanha, mas acompanhava um grupo de 90 portugueses em passeio pela Itália, dedicando apenas um dia a cada cidade. Veneza era a última etapa do breve périplo. Junto dele estava Carla, 43, que contava orgulhosa e sorridente que era ela a autora da façanha de reunir toda aquela gente. "Sou uma apaixonada por viagens", disse.

O grupo não entrou em museu algum, só passeou pelas vielas, mas para Carla "está bem assim". "Gosto de ter as imagens dos monumentos guardadas nas minhas lembranças, mas, sinceramente, não me interessa conhecer a história. A única história que me interessa é a do meu país", afirmou a portuguesa.

Pouco adiante, embaixo da coluna de San Todaro, o casal de brasileiros Killian, 36, e Ricardo, 41, passeava de mãos dadas, à espera do embarque em um cruzeiro para a Grécia. A dupla, que vive na Suíça, decidiu chegar um dia antes para visitar a cidade, mas sem nenhum passeio agendado. "Veneza já é um museu a céu aberto", afirmou ela.

"A visão que o turista tem de Veneza é limitada à pura representação. A imortalização através da imagem teve um papel decisivo para a criação do mito. Todos querem ver, pegar, tocar a cidade", opina o jornalista Carlo Montanaro, 76. Apaixonado pela sétima arte, Montanaro dirige La Fabbrica del Vedere, um pequeno espaço dedicado ao cinema, no bairro Cannaregio.

Enquanto mostrava câmeras antigas, guardadas numa das salas do segundo andar, Montanaro abriu uma lata e tirou dela um microfilme dos irmãos Lumière com o primeiro fotograma de Veneza. "Partimos deles e chegamos ao exagero, a bulimia da imagem desencadeada pelo uso do celular. Ter milhões de fotos é como não ter nada, é vazio", diz o italiano. Para ele, os turistas não estão interessados em saber o que há por trás de uma imagem, basta tirar uma selfie em frente à Ponte do Suspiro ou à praça, postar nas redes sociais e angariar likes.

Em 2021, Montanaro participou do documentário "Lo sguardo su Venezia" ("Um olhar sobre Veneza", em português), do diretor Simone Marcelli. O filme viaja pela história da imagem — da litografia ao cinema, até chegar ao celular — para contar como a espetacularização da fotografia ajudou a destruir Veneza, "não pela mãos dos visitantes, mas por aquelas dos turistas", diz o italiano, que explica: "O visitante é aquele que vem conhecer a cidade, sua cultura, vai ao museu, dorme em hotel, come no restaurante local, faz a economia circular. O turista é aquele que tira foto diante de um monumento e vai embora."

Jane Da Mosto, sul-africana de nascimento e veneziana de adoção, é uma bióloga e ativista de 55 anos que luta pela proteção do ecossistema lagunar. Em junho de 2021, subiu em um barco a remo e enfrentou o gigante de 92 mil toneladas que, por anos, rasgou as entranhas dos canais de Veneza. Carregando uma bandeira do movimento "No grandi navi" ("Sem grandes barcos", em português), em pé em seu barquinho, Da Mosto virou um símbolo da resistência contra o retorno da passagem dos navios de cruzeiro pela lagoa. "Veneza é linda demais para ser destruída", diz.

Por anos, os venezianos suplicaram aos governos que proibissem a passagem desses monstros de ferro pelos canais porque destroem o ecossistema, poluem o ambiente e são horríveis de se ver. "Hoje, finalmente, estão proibidos", diz a bióloga que está à frente da ONG We are here Venice e vive na ilha desde 1995. Da Mosto conta que um dia estava colando cartazes na região de Zattere quando uma senhora a parou e perguntou se era ela quem queria salvar Veneza. Sorrindo, respondeu que sim e que esperava que a outra mulher fizesse o mesmo.

Elio Perdoda tem 37 anos e é outro estrangeiro que chegou e não foi mais embora. Albanês, veio para a Itália vinte anos atrás. Rodou um pouco pelo país até parar na ilha. Trabalhou em bares e hoje é dono da Cicchetteria da Elio, que fica no bairro Dorsoduro e é famosa pelos "cicchetti" (típicos aperitivos venezianos, semelhantes às tapas espanholas). O local recém-inaugurado só saiu do papel porque Elio tem grandes amigos: um eletricista, responsável por toda a parte elétrica, um pintor, e um fotógrafo, que lhe presenteou com imagens de Veneza que decoram as paredes. Até nas questões burocráticas, ele teve ajuda de conhecidos que destrincharam a papelada. Mesmo assim, investiu cerca de 20 mil euros para abrir o bar.

Elio se sente acolhido. "Veneza foi o único lugar na Itália onde eu não me senti diferente, onde não pesou o fato de eu ser imigrante. Criei raiz aqui", diz o barista que, de certo modo, também está ajudando a salvar a cidade do despovoamento.

O êxodo veneziano é tão preocupante que existe até um contador. Baseado nos moradores que se mudam ou morrem, ele indica quantos ainda vivem na cidade. Os números são surpreendentes. Em 1960, o centro histórico de Veneza tinha 145 mil habitantes; hoje são 50.126. Para chamar a atenção dos políticos, cartazes com "49.999" foram espalhados pela cidade. "É puramente simbólico, mas como você pode ver falta pouco. Em dois ou três meses chegaremos em 50 mil", diz o ativista Matteo Secchi, 52.

Em 23 de março de 2008, quando foi instalado na vitrine da Farmacia Morelli, o contador marcava 60.720 moradores na ilha. Um ano depois, o número descia abaixo dos 60 mil. "Nessa ocasião organizamos o funeral de Veneza", diz Secchi. "Aquela manifestação foi um divisor de águas. Falava-se sobre a cidade que afundava, mas não sobre a perda de identidade, de cultura e de habitantes", lembra o ativista. O contador é atualizado semanalmente com dados oficiais da prefeitura.

O problema do êxodo, segundo Secchi, está ligado diretamente à falta de moradia: faltam casas populares e os proprietários particulares preferem alugar seus imóveis a turistas, em vez de assumir um contrato de aluguel anual a um residente.

Uma pesquisa realizada pela Ancsa (Associação Nacional de Centros Históricos e Artísticos), em 2020, contabilizou 40 mil apartamentos na cidade. Destes, 8.469 estão cadastrados no Airbnb para aluguéis temporários.

Segundo Secchi, é necessário fornecer à prefeitura ferramentas para limitar o uso especulativo das casas. Em Paris e em muitas cidades francesas existe um período máximo de aluguel de 120 dias. Em Barcelona e Berlim, o registro é obrigatório para todas as propriedades; em Amsterdã, os apartamentos não podem ser alugados por mais de 30 dias por ano; em Genebra, o limite é de 60 dias; em Londres e Madri, 90.

Em julho, o Senado italiano aprovou uma emenda que prevê a possibilidade limitar os aluguéis temporários em Veneza a 120 dias. Ainda não se sabe como e quando a norma deve entrar em vigor.

Ao mesmo tempo em que a cidade precisa acertar contas com a superocupação dos imóveis destinados ao turismo, ela precisa limitar o acesso. Por isso, Secchi é a favor da taxa de entrada. "Veneza tem 20 milhões de turistas ao ano, e uma média de 3 milhões dorme aqui. O restante é visitante diário. Esses 3 milhões são responsáveis por 70% do faturamento da cidade, só que eles pagam imposto quando se hospedam em hotéis. A outra parcela não paga nada", diz o italiano.

Para ele, o governo não soube aproveitar a oportunidade desses anos de pandemia para estruturar um plano de ação para o futuro da lagoa. "Na verdade, a região do Vêneto não ama Veneza, mesmo sendo sua capital", diz. "Nos últimos vinte anos, praticamente não tivemos nenhum deputado estadual que morasse na lagoa. Como podem entender nossas exigências se não vivem aqui?", questiona.

Para tentar mudar um pouco essa história, Giovanni Pelizzato, 56, proprietário da livraria Toletta, inaugurada em 1933 por seu avô no bairro Dorsoduro, assumiu um cargo de vereador entre 2015 e 2020. Concorreu depois a deputado estadual, mas não foi eleito.

Com uma expressão desolada, ele lembra do dia 12 de novembro de 2019, quando presenciou uma das piores cenas de sua vida. Uma enchente provocou danos incalculáveis na cidade. Na praça de São Marcos, a água atingiu mais de 1 metro de altura.

"Bastou alguns políticos verem a água entrando no prédio para começarem a se perguntar o que era aquilo, de onde vinha a água. Eu os vi dizendo para serem retirados dali e não me contive. Enquanto a cidade corria risco de morrer embaixo de toda aquela água, a única preocupação deles era não molhar os pés", conta o livreiro. Para ele, essa cena é simbólica e faz entender o quanto Veneza interessa à classe política.

Pelizzato, atualmente, voltou a contar a história da lagoa e de suas ilhas aos visitantes. "Me perco com eles. Se eles têm tempo, falam, trocam, são felizes. Por outro lado, tem gente que vem para cá e se pergunta porque não se chega a Veneza de carro, não sabem o que é Veneza", diz. O livreiro cita uma história que virou título de um livro: "Scusi, a che ora chiude Venezia?" ("Desculpe, a que horas fecha Veneza?"). "Um dia um grupo de turistas perguntou a um morador a que horas a cidade fechava. Ele ficou incrédulo."

"Sempre digo a meus amigos que venham visitar a cidade em janeiro, mês de baixa temporada, com poucas pessoas circulando pelos canais", diz Francesco Bergamo Rossi, ou melhor, Toto, como é conhecido. Responsável pelas relações internacionais da ONG Venetian Heritage, ele recolhe doações para restaurar prédios públicos.

Sentado no sofá de sua casa, Toto apontava para as janelas, dizendo: "Essa casa aqui do lado, essa aqui da frente, essa outra, são todas B&B [bed and breakfast], ponto. Nessa época do ano é quase impossível abrir a janela porque se ouve um barulho infernal. Daqui a pouco faço como as velhinhas venezianas e uso o balde para jogar água nas pessoas que fazem bagunça embaixo da janela de casa".

Segundo Toto, o veneziano é o pior inimigo dele mesmo. "Todo mundo que pode aluga quarto para turista, desde o filho do gondoleiro à marquesa rica que mora em um prédio sozinha. Um mínimo de moral é necessário. O proprietário privado pode fazer o que quiser dentro de sua casa, mas tudo tem um limite, a situação deve ser organizada", explica.

O restaurador fala de Veneza com carinho e a compara a uma mulher eterna, linda, de uma certa idade, com um passado fabuloso, que ainda tem muito a dizer. Essa mulher precisa de atenção, precisa ser cuidada, protegida e não explorada. "Como diz Dostoiévski, a beleza salvará o mundo."

"Assim como em outras cidades do mundo, Veneza pode se estruturar para receber essa nova categoria de trabalhador: os nômades digitais", diz Claudio Vernier, 45, presidente Associação Praça São Marcos e proprietário do histórico Café Todaro, de frente para o grande canal.

Aberto em 1948 por seu bisavô, o café é um ponto de encontro de venezianos e turistas. Em teoria, Vernier teria todos os motivos do mundo para ser favorável à invasão turística, mas adere ao coro. "Precisamos impor limite ao acesso diário", diz. "Em 2016, recebemos 9 milhões de turistas; em 2019, 30 milhões. Veneza é uma ilha, não pode acolher todo mundo ao mesmo tempo."

Segundo Vernier, o modo de viver dos venezianos atrai quem procura o oposto da cidade grande. "Aqui todo mundo se conhece, o contato humano ainda é muito presente, assim como a riqueza da convivialidade. Quem vem para cá também procura isso", diz.

Esse modo de vida atraiu muita gente. O escritor Ernest Hemingway (1899-1961) foi um que se entregou completamente ao ritmo da lagoa. Tanto que, por um tempo, se hospedou na locanda Cipriani, na ilha Torcello. Em Veneza, Hemingway vivia entre o hotel Gritti Palace e o Harry's Bar.

Vernier não é único a pensar no trabalho digital como alternativa ao turismo de massa. A Universidade Ca 'Foscari e a Venice Foundation criaram o projeto Venywhere para atrair trabalhadores remotos ansiosos por se estabelecer ali. Nessa fase inicial, 1.500 pessoas se inscreveram na plataforma. O projeto não prevê incentivos econômicos — é baseado apenas no charme de Veneza.

Enquanto os cidadãos pensam em alternativas para salvar a cidade, a única resposta do governo são as catracas e a taxa de ingresso. Mas, talvez, para os venezianos, contar as pessoas não seja suficiente.

Topo