De repente, os músculos se contraíram e a língua enrolou. O homem perdia a consciência e o controle do corpo ao sofrer convulsões em um carro.

Ele chegou ao hospital e foi atendido pelo neurologista Alan Eckeli. Diagnóstico: crise de abstinência de hemitartarato de zolpidem, hipnótico indicado para tratar crises pontuais de insônia.

Episódios graves como esse têm se repetido e assustado médicos.

Há no Brasil uma "epidemia de vício em drogas Z" — como são chamados os hipnóticos indicados para insônia —, avaliam oito dos principais especialistas em saúde do Brasil ouvidos pelo UOL.

As vendas de zolpidem saltaram 66,8% de 2018 a 2022, indica a Anvisa. As autoridades de saúde, no entanto, evitam o termo "epidemia", usado apenas quando há doenças envolvidas.

O consumo da droga estabilizou em 2023, tendência atribuída por médicos a pacientes em busca do "desmame", o processo de retirada de medicamentos, feito aos poucos.

Embora não haja dados oficiais sobre internações, especialistas ouvidos pela reportagem avaliam que elas aumentaram muito desde 2018.

Em consultórios, o número de casos explodiu. A percepção é que o uso cresceu exponencialmente na pandemia, quando distúrbios do sono se tornaram mais frequentes. Tanta procura fez o zolpidem virar um problema de saúde pública.

Ele já é o segundo remédio controlado mais vendido no Brasil entre ansiolíticos, calmantes e anticonvulsivos, atrás apenas do Rivotril (ver gráfico), segundo a Anvisa.

Recebia um caso de vício a cada três meses. Hoje, tenho pelo menos dois novos pacientes por semana. Retiro mais droga Z do que receito

Alan Eckeli, professor da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto

O paciente citado na abertura deste texto tomava havia anos três caixas de zolpidem por dia. Vinte comprimidos pela manhã, 20 à tarde e 20 à noite.

Antes de ser hospitalizado em 2021, ele esqueceu de levar o medicamento em uma viagem. As convulsões foram consequência.

Ele foi internado e passou pelo desmame sob supervisão médica. Recuperado, voltou a tomar zolpidem meses depois e teve uma segunda crise de abstinência. Em uma nova convulsão, caiu e quebrou todos os dentes.

Z PARA DIVERSÃO

A facilidade de se adquirir a receita e a popularização do zolpidem nas redes sociais ajudam a explicar o vício no hipnótico.

Médicos afirmam que as pessoas estão usando o medicamento de forma recreativa, com o intuito de ficarem "chapadas".

Efeitos colaterais como alucinações e sonambulismo são celebrados nas redes sociais. Alguns começam a perder qualquer inibição com dosagens maiores.

"A pessoa fica mais descolada, extrovertida, com discurso mais fácil. Ela começa, então, a utilizar o medicamento em relações sociais", diz Eckeli.

É comum médicos que não são especialistas em sono receitarem o fármaco a quem relata problemas para dormir.

"O zolpidem deve ser receitado de preferência por psiquiatra ou neurologista, e usado por no máximo três semanas. Há pacientes que o usam há 20 anos", diz o psiquiatra Almir Tavares, coordenador do departamento de medicina do sono da Associação Brasileira de Psiquiatria.

A literatura médica já fala em "epidemia" de vício em zolpidem, diz Maria Julia Francischetto, psiquiatra do Hospital do Servidor Público de São Paulo.

Ela narra uma situação corriqueira em consultórios: o paciente que começa um tratamento psiquiátrico e não continua com o mesmo profissional. A consequência é uma eterna renovação de receitas.

Vivemos duas epidemias: a de uso inadequado e a de vício em medicamentos para dormir. Almir Tavares, psiquiatra da Associação Brasileira de Psiquiatria

Apesar do crescimento comprovado, "epidemia" não é um termo endossado pelo Ministério da Saúde.

Por definição, a epidemia é caracterizada pelo aumento de casos de uma doença em uma região específica ou comunidade, acima do que é esperado para aquela área em um período.

O ministério, no entanto, "reconhece o uso excessivo e inadequado de medicamentos como uma questão de saúde pública, devido aos seus efeitos prejudiciais a curto, médio e longo prazo".

PANDEMIA BOMBOU CONSUMO

O psiquiatra Michel Haddad associa o boom nas vendas de zolpidem à pandemia de covid-19.

O caso da advogada Lianara Albring, 31, encaixa-se nesse perfil. Passou a usar zolpidem em 2021 para tratar terror noturno e insônia, com receita de clínico geral.

Foram seis meses tomando um comprimido de 5 mg antes de dormir, até a dosagem perder o efeito. Depois disso, tomava zolpidem durante o dia para trabalhar.

Segundo Haddad, a meia-vida do zolpidem é curta: o remédio é absorvido rapidamente pelo organismo e o efeito passa em quatro horas. Como o corpo se acostuma, o usuário aumenta a dose em busca do efeito inicial.

Quanto menor a meia-vida de um medicamento, maior seu potencial de dependência

Rosa Hasan, coordenadora do Laboratório do Sono do Instituto de Psiquiatria da USP

Lianara dependia do zolpidem para dormir e se manter funcional durante o dia. Começou com 5 mg por noite e passou a tomar doses diárias equivalentes a quase 100 mg.

Em pouco tempo, ela não conseguia mais ficar sem a droga.

O zolpidem me empurrou em uma ladeira

Lianara Albring, advogada

Lianara usava a droga até quando saía para beber, já dependente do medicamento para trabalhar e evitar crises de ansiedade.

"Em uma das vezes que usei zolpidem junto de álcool, tentei cortar meu pescoço com cacos de vidro. Não lembro de nada", afirma. "Minha esposa não aguentava mais. Amigos se afastaram. Eu queria ficar sempre chapada."

Lianara está há três meses em desmame com acompanhamento psiquiátrico. A estratégia da médica que a atende foi substituir o fármaco pelo Rivotril - ainda não há um protocolo para se tratar o vício em drogas Z.

Já tive pacientes que precisaram ser internados para fazer o desmame. Pessoas que tomavam de três a quatro comprimidos de zolpidem a cada 40 minutos. Em casos assim, o desmame é perigoso e pode causar muitos efeitos colaterais. Por isso, internamos o paciente para acompanhar o processo

Maria Julia Francischetto, psiquiatra

Germano Rorato/UOL Lianara Albring, advogada e ex-usuária de zolpidem

Lianara Albring, advogada e ex-usuária de zolpidem

LIGA-DESLIGA PARA DORMIR

O hemitartarato de zolpidem chegou ao Brasil em 1997, antes da criação da Anvisa em janeiro de 1999.

A portaria que autoriza a liberação foi publicada em 1998, quando o medicamento ainda fazia parte do grupo B1 (tarja preta, prescrito por meio da receita azul, de maior controle).

Uma nova portaria foi assinada em 2001 pelo médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, que presidia a agência à época.

Nela, o zolpidem de dosagem inferior a 10 mg deixou de ser tarja preta e passou a ser tarja vermelha, prescrito por receita carbonada — a receita branca simples, que qualquer médico tem em mãos.

Todo mundo quer um liga-desliga para dormir. O vício em zolpidem se tornou um problema grave de saúde pública. É a busca pela solução fácil de um problema. Ronaldo Laranjeira, professor de psiquiatria da Unifesp

O hipnótico chegou com a promessa de substituir os benzodiazepínicos, segundo o professor titular do Departamento de Psiquiatria da Unifesp Ronaldo Laranjeira.

Benzodiazepínicos afetam a memória no longo prazo, além de haver grande potencial de vício. Já o zolpidem era apresentado como um indutor de sono que não causaria dependência.

"A medicina é assim: chega um novo remédio, que diz ter vantagens em relação aos similares, todo mundo acha que só tem benefícios", diz Laranjeira.

PRESCRIÇÃO FÁCIL

O zolpidem foi considerado um medicamento de baixo risco — por isso a tarja vermelha — ao ser regulamentado no Brasil com as duas menores dosagens (5 mg e 10 mg).

A dosagem maior, de 12,5 mg, é tarja preta. Gonzalo Vecina Neto explica ao UOL que a definição da tarja passa por uma equipe técnica, que faz análises às quais ele, neste caso, não teve acesso.

Ele explica que a definição se dá levando em conta "somente o uso correto do medicamento" e que a Anvisa não pode ser responsabilizada pelo mau uso de pacientes, que extrapolam a dosagem diária prescrita.

Segundo o farmacêutico Gustavo Mendes, analista industrial do Conselho Federal de Farmácia e ex-membro da Anvisa, um produto pode ter uma classificação de risco, que aponte dependência, ao chegar ao Brasil.

Mas a experiência de mercado pode conduzir a uma nova avaliação.

A reportagem questionou a Anvisa sobre um pedido de reavaliação do zolpidem em qualquer uma de suas dosagens, mas não obteve retorno.

Mendes diz não acreditar em pressão da indústria para a alteração da tarja do zolpidem. "A tarja vermelha também precisa de prescrição médica. Na teoria, o controle é o mesmo."

Não é o que dizem dois psiquiatras, cujas identidades serão mantidas em sigilo. Eles afirmam que houve lobby da indústria para que o acesso dos pacientes ao novo medicamento fosse facilitado e se popularizasse.

"Não esperavam que virasse uma epidemia de viciados como virou. Tanto que a Sanofi, que foi a primeira a produzir o zolpidem no Brasil com a marca Stilnox, parou de fazer propaganda desse medicamento para médicos. Nunca mais vimos a Sanofi falar de Stilnox", disse um dos entrevistados.

"Para a comprovação de segurança e eficácia do medicamento, a empresa conduziu 53 estudos farmacológicos e 36 ensaios clínicos", afirma a Anvisa em nota.

"Após a criação da Anvisa, o medicamento passou por renovações de registro autorizadas previstas para os medicamentos. O medicamento tem registro válido com relação benefício-risco positiva para as indicações aprovadas em bula."

Em nota, a Sanofi afirma que o composto hemitartarato de zolpidem "(...) é indicado para o tratamento de curta duração da insônia em pacientes que têm dificuldade para adormecer ou permanecer adormecidos".

"A Sanofi, empresa detentora dos medicamentos Stilnox e Stilnox CR, informa que estas são opções seguras e eficazes de tratamento (...) Conforme a bula, o uso prolongado não é recomendado e a duração do tratamento deve ser a menor possível, não devendo ultrapassar quatro semanas."

Mas, como disse o psiquiatra Almir Tavares, há pessoas que usam Zolpidem há 20 anos.

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