Geração on demand

Na era da internet ilimitada, como ensinar a crianças conectadas que a vida tem limites?

Ao desgrudar os olhos do seu celular, são grandes as chances de você constatar que as crianças também foram hipnotizadas por telas e pelas possibilidades que esses dispositivos oferecem. Como nativos da era digital, os mais novos veem como essência da vida a relação com o universo on demand, no qual é possível acessar o que quiserem, onde quiserem e quando quiserem. Mas a tecnologia cobra seu preço: uma coisa é um adolescente ou adulto ganhar esse privilégio do “tudo ao mesmo tempo agora” após já ter encarado a espera pelo próximo episódio. Outra, no caso das crianças, é familiarizar-se com o mundo já achando que está tudo ali, a um clique, no momento em que desejam.

As consequências existem, já são observadas e muitas chegam a ser alarmantes. Tanto que a SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria) acaba de produzir o seu primeiro manual – lançado em novembro - para ajudar a lidar com esses desafios. E eles são muitos. Basta conferir os relatos a seguir feitos por psicólogos, pediatras e pais - eles mesmos inseparáveis de seus eletrônicos:

- O bebê só fica quieto em frente ao celular. Sai a chupeta, entra “Galinha Pintadinha”;

- O feriado em família vira motivo de estresse, se o destino não tiver Wi-Fi nem conexão 3G;

- A criança manda mensagem via WhatsApp para a mãe, no quarto ao lado, para avisar que está com fome;

- O amigo imaginário perde espaço para o youtuber, sempre pronto a entreter;

- O 3G dos pais vira brinquedo dos filhos;

- A garota se recusa a comer, caso seus ídolos virtuais não a acompanhem;

- Grade fixa de programação e intervalo fazem da TV um castigo;

- O medo de acabar a luz não é do escuro. Mas da falta de internet e de bateria;

- A descoberta da senha do Wi-Fi antecede qualquer outro tipo de interação em um novo ambiente;

- Na hora do banho, o tablet é comandado pela mãe do outro lado do box.

Espaço Kids

Aqui é possível prever reações à la “cadê os pais dessas crianças?”. É o momento do racha, quando muitos criticam e outros se veem como protagonistas daquela situação. Independentemente do lado com o qual você se identifica, é possível encontrar um ponto comum (quatro, na verdade) antes de seguirmos em frente:

1) A internet tem inúmeros pontos positivos, faz parte da rotina das crianças e não há como voltar atrás;

2) Os adultos também foram fisgados pela tecnologia e estão aprendendo a lidar com seus excessos;

3) Crianças precisam de limites. Se não existem, a responsabilidade é dos pais (aquelas mesmas pessoas do segundo item);

4) Entender esses limites e saber como colocá-los em prática não são tarefas simples diante de tanta oferta e transformação - se os pais soubessem o que fazer nessa nova situação, possivelmente o fariam.

Chegamos assim a um desafio bastante complexo, longe das respostas prontas que aparecem logo na primeira página do Google. Para entender sua dimensão, é preciso admitir a porrada entre expectativa e realidade: a expectativa de impor limites, a realidade do mundo on demand.

Efeito colateral

Se o offline exige muito brinquedo e atenção para mimar uma criança, o online facilita e até automatiza o paparico. Com um eletrônico portátil – que, cada vez mais barato, assume status de brinquedo -, dá para acessar praticamente o infinito em qualquer lugar onde exista conexão. O conteúdo vai ficando mais customizado conforme o uso e não precisa nem saber ler para chegar até ele: ícones, comandos de voz e sugestões dos algoritmos criam a ponte com os pequenos. A tecnologia on demand interfere na formação de pessoas que, literalmente, demandam o agora. “É lógico que esse cenário deixa as crianças mais mimadas”, diz Evelyn Eisenstein, professora de pediatria e clínica de adolescentes da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Segundo a pediatra, os pais ainda não acreditam nos prejuízos da conexão ininterrupta à saúde dos filhos, mas os consultórios já lidam com problemas concretos: ansiedade, dificuldade de concentração, síndrome do olho seco, transtornos de sono e também de alimentação (estes dois ligados à falta de horários fixos, já que o conteúdo virtual não segue grade de programação). Por isso, há cerca de um ano Evelyn coordena a elaboração das diretrizes da Sociedade Brasileira de Pediatria para o uso de tecnologia. O TAB destaca alguns destes conselhos: 

O documento da SBP foi inspirado em estudos e recomendações internacionais. Um guia equivalente dos Estados Unidos sugere que menores de 18 meses só tenham contato com telas para videochamadas. De 18 a 24 meses, o uso deve ser monitorado e restringir-se a conteúdo de “alta qualidade” (nos EUA, se encaixam nessa categoria produtos do canal estatal PBS Kids e das entidades sem fins lucrativos Common Sense Media e Sesame Workshop). Mesmo acima de dois anos, a tela deve ser limitada a até uma hora por dia, nunca durante as refeições nem antes de dormir. 

A psicóloga Rosely Sayão vai além e defende que criança de até seis anos não devem usar esse tipo de tecnologia – até essa idade, afirma, é preciso desenvolver habilidades sociais, de fala, de escuta e de criatividade. “Não sou contra jogar videogame ou consumir conteúdo virtual, mas os pais precisam mostrar outras coisas aos filhos. O zoom das crianças é fechado: se aquilo que gostam está sempre com elas, fica difícil dirigir a atenção para outras coisas. A restrição está com os pais, porque a criança não sabe diferenciar o que ela gosta do que faz bem.” Em longo prazo, Rosely  diz não ter ideia das consequências da vida on demand. Em curto prazo, já são visíveis: “As pessoas não crescem, estão sempre com seus brinquedinhos [celulares] nas mãos. Existe um imediatismo enorme, ninguém consegue sequer esperar para responder uma mensagem”, resume.

Novas regras

Depois da expectativa, a realidade. Lucas, 6, não conhecia qualquer tipo de restrição até algumas semanas atrás, quando seus pais determinaram horários para ele jogar, assistir a vídeos no YouTube e a outros programas online. Sua relação com a tecnologia começou com “Galinha Pintadinha” (de novo ela!), passou por “Angry Birds” (que ele chegou a controlar simultaneamente em duas telas) e nos últimos dois anos voltou-se a jogos de computador, de console e de seu inseparável tablet. Uma história corriqueira, não fosse o comportamento que chamou atenção na escola e o levou à terapia: ansiedade constante, pressa em acabar qualquer atividade offline e a certeza de que poderia fazer apenas aquilo que lhe desse prazer (colocando em prática a promessa dos jogos).

O diagnóstico de vício em dispositivos eletrônicos, dado pela psicóloga, foi construído durante um período familiar difícil. “Ele enfrentou a doença do pai, da mãe, além de mortes próximas. Deixávamos que jogasse para ter algum conforto. A vida estava complicada e naquele ambiente [dos jogos] não havia sofrimento”, relata a mãe, Ana Claudia da Silveira Fragoso, 36. O virtual tornou-se então a primeira opção do garoto, que ainda prefere esse universo a qualquer outra atividade, mesmo ir ao cinema. “Como essa opção estava disponível o tempo todo, perdemos o controle. Só percebi que era um vício quando ele teve reações assustadoras ao reduzirmos o tempo dessas atividades”, continua.

A família conta que, com o passar dos dias, essas respostas de Lucas amenizaram e ele agora entende que não pode estar sempre conectado – apesar de ainda tentar estender o tempo em frente à tela, algo comum a qualquer geração que cresceu ao menos com uma TV na sala. O mais difícil, relatam os pais, é identificar o limite do uso saudável da tecnologia. “A gente ainda não aprendeu [como fazer], estamos aprendendo. Ele não entende por que precisa fazer coisas que considera chatas e, outro dia, durante a limpeza da casa, criamos uma competição de arrumação dos cômodos: tornamos a atividade legal. É essencial os pais mudarem sua postura, entrarem na brincadeira e participarem”, completa Ricardo Amadesi Costa, 37, pai do garoto.

Para o psicólogo Cristiano Nabuco, coordenador do grupo de dependência tecnológicas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), a falta de limites é evidente e motivada por um fator bastante simples: os pais os desconhecem. Uma de suas sugestões é oferecer tecnologia somente quando a criança demostra interesse, sem antecipá-lo como alternativa imediata de entretenimento. O especialista se diz bastante preocupado com o atual cenário, no qual a influência das mídias digitais no desenvolvimento das crianças chega ao ponto de carrinhos de bebê, nos EUA, já virem com suporte para tablet.

Produtos desse tipo mostram adultos alinhados com a imersão digital dos pequenos. Isso serve de alerta, como aponta o filósofo e especialista em educação infantil Vital Didonet. “Muitos pais estão deslumbrados com o fato de seus filhos saberem ligar o celular e digitar antes mesmo de aprender a falar. Esse deslumbramento serve como impeditivo para estabelecer limites, que são tão importantes para dar segurança às crianças.” Ao impor restrições, é comum testarem o adulto para entender até que ponto as regras são mesmo relevantes. Assim, exemplifica Didonet, se não houver insistência nem parceria para que se beba água, fica claro que esse hábito pode ser dispensado. “O diálogo e a explicação são essenciais, sem autoritarismo”, continua. 

Viva a frustração

Desconectar-se para viver o mundo real faz parte do que a pediatra Evelyn Eisenstein descreve como “prescrição de natureza”. A psicanalista Isabel Kahn Marin, professora no curso de psicologia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) nas áreas de família, infância e juventude, ressalta neste mesmo contexto uma situação inusitada. “Teve muito pai comemorando o Pokémon Go, porque os filhos começaram a sair mais na rua. Olha que absurdo. A criança precisa brincar com o corpo: pega-pega, esconde-esconde, cair, machucar, brigar com o amigo e não só o [amigo] virtual. A tecnologia não pode ser sua única possibilidade de relação com o mundo.”

O impacto da tecnologia nos últimos anos fica evidente para Adriana Storoli, 41, mãe de Victor, 21, e Enzo, 9. Ela acredita que parte dessa transformação tenha a ver com a personalidade dos garotos, parte com a maior disponibilidade de eletrônicos portáteis, internet rápida e móvel. Quando mais novo, o primeiro filho só navegava no desktop. Para o segundo, a principal plataforma é o celular. Enzo ganhou o aparelho aos 7 e o irmão mais velho, aos 12 (só para falar com a família). Victor baixava filmes, mas seu irmão não tem paciência: assiste apenas ao conteúdo via streaming. Tanto que é fanático por youtubers, celebridades que também são autoras de seus livros favoritos. Ele os lê de uma só vez, do começo ao fim, enquanto Victor o fazia com mais calma (“usava marcador de páginas”, lembra a mãe). O mais velho frequentemente recebe os amigos em casa para partidas de RPG (jogos de interpretação de papéis), mas reuniões offline não fazem parte da rotina do mais novo.

“É a mesma criação, mas realidades muito diferentes. O Enzo não tem paciência, não quer esperar nada. Falo que é muita urgência para uma criança de nove anos”, diz a mãe, que proíbe o uso de eletrônicos durante as refeições. Em busca de uma atividade física e mais tempo desconectado, colocou o caçula na natação. Incentiva o uso da bicicleta e comprou recentemente um tênis com rodinha para Enzo se movimentar mais. A mãe também organiza passeios em família nos finais de semana. “Muitas vezes, eles preferem ficar em casa jogando a sair”, relata, reproduzindo uma queixa comum de muitos pais.

O fato de muitas crianças hoje terem a internet como amiga - quando não a melhor amiga – pode reduzir a resiliência e capacidade para lidar com frustração. “O que será dessa geração? A vida consiste em lidar, o tempo todo, com aquilo que não vai bem. Quanto maior for sua tolerância para isso, maior a capacidade de prosperar. Mas eles não estão sendo treinados nesse sentido”, resume o psicólogo Cristiano Nabuco. Na contramão do mundo customizado oferecido pela web, ele defende: “Faça um favor para seu filho e frustre-o, para que ele aprenda a lidar com o sentimento de desconfirmação. Isso é vital”.

Rotina offline

Por tratar-se de um cenário novo, ainda são poucos os estudos que medem as consequências da conexão constante. Mas uma pesquisa brasileira realizada com 21 crianças de oito a 12 anos indica alteração nas noções de tempo e espaço quando tudo o que a criança deseja está, literalmente, à mão. Sem domínio sobre as horas, eles descrevem seu dia com base nas atividades, muitas delas em plataformas eletrônicas. “Isso significa que a rotina está pautada no conteúdo/entretenimento e não em sua própria vida. Em outras palavras, não precisam se planejar, se organizar para atingir seus objetivos, pois ele está em suas mãos”, explica Ana Lúcia Meneghel, autora do estudo e mestra em Psicologia da Educação do Laboratório de Psicologia Genética da Faculdade de Educação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Daí a importância da criação de uma rotina, do despertar até se deitar, para essa novíssima geração aprender a se organizar e coordenar o pensamento de ações: planejar, antecipar e avaliar aquilo que pretendem fazer. É tirar das crianças o status de “senhores do tempo”, limitando suas possibilidades do “quando”. A importância de ficar mais offline também está na relação com o mundo físico: em uma etapa do estudo, Ana Lúcia surpreendeu-se com a dificuldade das “crianças digitais” em montar uma torre de madeira sem derrubar as peças. “Isso se atribui à falta de preparação ao escolher as peças maiores para colocar como base. A atividade requer planejamento e antecipação de ações, as quais essas crianças não estão habituadas”, explica.  

Rosane Alves Baltar Matos, 46, concorda com a importância de manter uma rotina de horários para filha Juliana, 9. Mas no seu caso o desafio é ainda maior, porque a garota mantém - com a ajuda da irmã de 19 anos - um canal no YouTube com mais de 2 milhões de inscritos e 643 milhões de visualizações (sim, milhões). “Tem hora de estudar, de comer, de gravar. Se eu deixar, ela fica direto no celular abastecendo as redes sociais, combinando algo para um vídeo, respondendo algum comentário”, relata a mãe, que no dia da entrevista havia confiscado o aparelho da filha, de castigo. Como os vídeos retratam brincadeiras de boneca, a própria garota tem de lidar com as demandas de seu público on demand. Rosane conta que existe cobrança para a filha responder aos comentários, mas a missão é praticamente impossível: no vídeo mais assistido, com 51,7 milhões de visualizações, há mais de 12 mil mensagens.

Diante de tamanho sucesso e popularidade, só mesmo velhas táticas do mundo offline, como a frustração infantil, para fazer os nativos da era on demand entenderem o quanto antes que o desejo deles não é uma ordem.

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