SÓ ENTRA QUEM RESPEITA

A vida de Josias de Oliveira, ex-zelador de uma vila-fantasma no litoral norte do Paraná

Daniel Lisboa Colaboração para o TAB, de Ararapira (PR)

Banha de lagarto salvou a vida de Josias de Oliveira. Para transformar a gosma em remédio, é preciso arrancar a gordura da carcaça e cozinhá-la durante horas em banho-maria.

Josias não sabe que tipo de aranha o picou em um dos dedos da mão. Talvez tenha sido uma armadeira. Mas sabe a receita de banha de lagarto. Sua mãe o ensinou. Ela morreu faz tempo, mas ele nunca esqueceu. Já não ouvia nem enxergava direito quando se arrastara para dentro de casa. O veneno fazia efeito e rápido. Josias lembrou da gosma amarelada guardada em um potinho. Bastou lambuzar um pouco a picada.

"Era muita dor, muita dor. Pensei: 'vou morrer'. Aí passei a banha de lagarto assim, ó, e passou na hora", lembra ele, mostrando o potinho cheio de milagre viscoso. Um médico até já lhe encomendou banha de lagarto. Josias é grato por ter seguido as instruções da mãe. Não lhe restavam alternativas.

O hospital de grande porte mais próximo está a quase 90 quilômetros de distância, na cidade de Pariquera-Açu (SP). Quando a aranha cravou as presas no dedo de Josias, não havia sequer uma farmácia, posto de saúde ou vizinho onde pedir socorro. Josias tem apenas as memórias como companhia e, no último instante, foi a elas que recorreu.

Foi um episódio de justiça cósmica, o da aranha. Josias escolheu viver isolado para se sentir próximo à mãe, e sua mãe o salvou.

Ele foi, durante cerca de dez anos, o zelador de uma vila abandonada. Ararapira, no Paraná, na divisa com o litoral de São Paulo. Muitos a chamam de cidade-fantasma, mas Josias odeia que falem de fantasmas desde que uma equipe de TV desembarcou por lá, em 2018.

Em vez de contar a história da vila, a reportagem só falou de assombrações. Josias nunca viu uma. "Meu pai e minha mãe me criaram aqui. Eu amo Ararapira. Esse lugar é minha vida", explica Josias, enquanto come carne defumada com batatas feita no fogão a lenha. "Foi aqui que eu tive educação. Uma mãe que me deu carinho e conselhos muito bons. É o que me resta hoje, e não tem dinheiro que pague."

Josias de Oliveira, 58, zanzou pelos arredores e voltou à Ararapira para morar na mesma casa onde viveu com a família desde a infância. Ela era de madeira. Hoje é de alvenaria e tem sala, banheiro e dois quartos.

O homem não encontrou ninguém quando retornou. Seu pai e sua mãe estão mortos. Restavam apenas ruínas e uma residência ou outra ainda em boas condições de conservação. Os ex-moradores, porém, ainda tinham carinho pela vila. Aproveitaram que Josias fazia o caminho oposto para propor que ele vigiasse Ararapira. E lá ele ficou, acompanhado apenas por estrelas, cobras e pernilongos.

Só agora antigos moradores começam a voltar para a vila. Eles estão reformando suas casas e reocupando Ararapira. Josias deixou de ser o único habitante, mas ainda é o único morador da Ararapira de sua memória afetiva, a do passado, aquela onde seu pai lhe ensinou a pescar, sua mãe lhe apresentou a banha de lagarto e lhe deu cinco cruzeiros de presente de aniversário certa vez.

"Eu ganhava uns R$ 400 [para cuidar da vila] e não podia sair daqui pra fazer trampo lá fora. Porque vinha gente aqui e mexia nas coisas. Uma vez, viajei para Superagui e quando voltei os caras tinham roubado umas paradas aí", conta Josias. "Roubaram umas quatro casas. Levaram armas, botijão."

Além de evitar episódios como esse, Josias recebia os forasteiros que viviam atracando em Ararapira. Josias é um bom anfitrião, desde que seja tratado com respeito. Quando o integrante de um grupo de turistas rompeu a regra básica, não pôde entrar. Josias deixou claro que ele não era bem-vindo, e o visitante folgado não ousou deixar a minúscula praia onde atracam os barcos.

Josias também reclama de um homem que entrou e filmou sua casa sem permissão. E de biólogos que, segundo ele, soltaram no local uma espécie de cobra venenosa que matou seu antigo cachorro. Josias deu o troco e matou a cobra. Os biólogos, ele garante, não gostaram da vingança.

"A decadência de Ararapira e a debandada dos moradores aconteceu nas décadas de 1970 e 1980 e não teve nada a ver com a erosão. As pessoas saíram daqui em busca de escolaridade", diz Zico, como é conhecido José Zózimo. O aposentado de 72 anos deixou Ararapira aos onze anos de idade, mas sempre voltou à vila, onde teve família por muito tempo, e manteve uma casa ali.

Com a escassez de informações oficiais sobre Ararapira, contar sua história fica a cargo de moradores antigos e historiadores autodidatas, como Zózimo. Ele lembra da época em que o distrito era o ponto mais importante daquele trecho ermo do litoral brasileiro.

Moradores de vilarejos próximos vinham com seus barcos para participar das festas de Ararapira. Barcos a caminho de grandes portos paravam lá e faziam do local um importante entreposto comercial. Insetos de toda a região eram sugados pela luz de Ararapira, único ponto com energia elétrica em muitos quilômetros.

Tecnicamente, Ararapira faz parte do município paranaense de Guaraqueçaba, mas sempre teve relativa autonomia. É separada por um canal de água salobra do Ariri, bairro afastado da cidade de Cananeia (SP). Também fica próxima de Marujá, principal vila da Ilha do Cardoso e importante polo turístico e de preservação ambiental.

Ararapira já foi bem maior e mais importante que Ariri e Marujá. Até os anos 1960, tinha escolas, comércio, delegacia, cartório. "Dizem que aqui viviam 500 famílias. Eu não acredito, mas é certo que, em épocas de festa, a população triplicava", diz Zózimo. "Este era um lugar festeiro. Era uma festa atrás da outra."

São muitos os motivos apontados por Zózimo, e outros moradores e ex-moradores, para o abandono de Ararapira. Todo mundo tem sua explicação favorita, mas é certo que se tratou de um conjunto de acontecimentos: decadência econômica, degradação da infraestrutura oferecida pelo Estado e, sim, a erosão.

As encostas ao redor de Ararapira vêm desbarrancando faz tempo. Cerca de metade do que a vila foi um dia está hoje debaixo d'água. Isso acontece tanto por causas naturais quanto por uma mudança no perfil de quem navega pelo canal: de pequenas canoas de pescadores, a via passou a receber embarcações maiores, que movimentam uma massa maior de água.

"Sempre sonhei com isso que está acontecendo agora, os ex-moradores voltando", diz Zózimo. "O pessoal que morou aqui e está se aposentando ficou com saudades. Eu não acreditava que isso fosse acontecer, e de uma hora para outra vejo os caras chegando."

Por vários anos, Zózimo foi um dos únicos ex-moradores a manter uma residência conservada na vila. Hoje, pelo menos quatro famílias já se estabeleceram definitivamente em Ararapira. Entulhos e restos de construções foram jogados sobre sua encosta, o que por enquanto freou a erosão.

Josias deixou de ser pago para cuidar de Ararapira. Agora, vive de bicos em obras no Ariri e do que recebe dos ainda poucos visitantes que acampam em sua propriedade. Ele gosta de viver só, mas teme pelo dia em que estará completamente só.

"Às vezes, até fico pensando bobagem. Porque somos uma falha de Deus, somos fracos. Já pensei em comprar um [revólver calibre] 38 e deixar perto do travesseiro. A hora em que eu não puder mais me deslocar da minha cama, meu irmão? Um abraço."

Ele tem amigos no Ariri e no Marujá que podem visitá-lo ou recebê-lo a qualquer momento. Josias também tem parentes em vilas próximas, mas não fala muito sobre eles.

Apesar de contar com um gerador, sua casa é escura. As diminutas lâmpadas conseguem produzir, no máximo, uma penumbra quando vem o lusco-fusco do entardecer. A pequena TV de tubo jogada sobre a pilha de objetos na sala não serve para mais nada. Resta a Josias ver "filmes de bangue-bangue" no YouTube. A internet chegou por lá há pouco tempo, com a instalação de uma antena no Ariri.

"O Natal eu tenho que passar aqui. Todo ano. Com a minha mãe. Ela já é morta, mas eu falo com ela. Sabia que, quando uma pessoa é legal e gosta dos filhos, o espírito dela permanece perto?", pergunta Josias. Sua mãe está enterrada em um cemitério a poucos metros de sua casa.

A mãe é a única companhia da qual Josias realmente precisa. Ela é, na realidade, sua mãe adotiva, mas ele não pronuncia essa palavra uma única vez. Parênteses e notas de rodapé não cabem nessa conversa. Seria uma ofensa à mulher que o resgatou.

Josias vivia em Paranaguá (PR) quando foi levado pelos pais adotivos. Sua mãe biológica corria atrás dele com um facão e o fazia dormir em uma geladeira desativada, e isso é tudo o que ele tem a dizer sobre essa história.

Às vezes estou aqui, solitário, chorando, ficando ruim, doente, e preciso de alguém para conversar. Vou lá no cemitério. Demora poucos minutos pra ela responder. É coisa rápida.

Josias de Oliveira

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