Meus vizinhos refugiados

Um diário da convivência com jovens esquecidos pelas grandes ONGs na crise migratória

Kalimeraaaa, Kalimeraaaa rá! (Bom diaaaaaa!)

Atenas, primeiros dias de dezembro de 2016

“São todos seus”.

Foi assim que a Laila Ben Chaouat El Fassi, tradutora de árabe e espanhol, idealizadora do projeto e uma das fundadoras da Holes In The Borders, abriu a porta do apartamento. Minha missão era acordá-los para o café da manhã, preparado e servido por ela às 10h, antes da primeira aula de inglês, às 11h - essa parte era comigo. Esse era o maior desafio das primeiras semanas: integrá-los à rotina. Imagina: eles iam dormir todas as noites lá pelas 6h e, de repente, surge um cara te cutucando às 10h?

“Isso aqui está pior do que polícia”, reclamou Faruk*, 18, com os olhos inchados diante da minha insistência para que lavasse o rosto. Vindo com o irmão do norte da Síria, logo se afastou dele para tentar a sorte sozinho: “Pensávamos que seria mais fácil assim”.

Depois de cruzar o mar Egeu, perto da fronteira com a Macedônia, ele trabalhou contrabandeando cigarros para sobreviver. Faruk tinha 16 anos à época. Voltou a Atenas, como muitos, após os países dos Balcãs reforçarem o controle nas fronteiras. Agora, relutava em sair da cama. Como se fosse a mais árdua missão da vida.

A cena era recorrente: abriam os olhos, erguiam a cabeça e ameaçavam ir ao banheiro, mas bastava eu sair para outro quarto para eles aproveitarem e dormirem de novo.

Levou quase meia hora. Com todos de pé e na fila do banheiro, voltei ao outro apartamento para buscar os cadernos da aula de inglês. Na volta, sinto aquela “marofa” de maconha. Não era possível que alguém já estivesse queimando um tão cedo. Pior: dentro de casa. Sinto o cheiro ainda mais forte no corredor onde ficam os armários. Não deu outra.

Abri a porta com força para pegá-los no susto. “Sorry, sorry”, disse prontamente Maher*, 20, com os olhos esbugalhados. Ele é o único egípcio da casa. Quase que em posição fetal, ele se espremia no compartimento ao lado de Amin*, 18, um dos cinco jovens sírios. Apagaram imediatamente o cigarro enquanto a fumaça saía. A regra, definida em assembleia entre voluntários e moradores, proibia o consumo de álcool e qualquer outro tipo de droga. Não poderia ser diferente, afinal, a ideia era justamente tirá-los dessa realidade. Logo no primeiro dia, já viria o flagra.

“Not again, sorry”, voltou a repetir Maher, beijando a mão e a estendendo para o cumprimento, gesto que repetiria muitas vezes ao longo da nossa convivência e que, segundo ele, era sinal de respeito no Egito. Chegamos ao consenso que aquilo não poderia, em hipótese alguma, repetir-se, mas que também não seria motivo de expulsão. Era preciso, no entanto, deixar bem claro: inúmeros outros jovens como eles estavam vivendo nas ruas e sonhando com uma oportunidade como essa. “You brother big”, respondeu depois, dizendo que já me considerava um “grande irmão”.

Na “varanda do tabaco”, vi a oportunidade de assumir uma tática: conversas individuais. O mundo árabe é assim: eles preferem desabafar “olho no olho”. Não gostam (e acham que não devem) se expor em público. Preferem o papo no melhor estilo terapia, longe das bolhas das redes sociais.

As primeiras confissões

Atenas, perto do Natal de 2016

Mahmoud*, 18, sírio, despontou como um dos mais inteligentes. Desenrolava bem no inglês. Falava espanhol com os voluntários. Tinha facilidade com idiomas: os dez meses que passou em Istambul, trabalhando com consertos de celulares, lhe deram fluência em turco. Era o “hacker” da casa. Consertava os telefones de todos. “E aí, tudo bom?”, me perguntava sempre em bom português. Um “geniozinho” que também sabia tocar violão e cantar. Era boa pinta e o mais engajado no projeto de buscar uma nova vida. Já não tinha muito mais contato com a família, nem com os irmãos, muito menos com o primo, que era seu tutor antes de abandoná-lo. O irmão mais velho, que vive em Dubai, chegou a procurá-lo, mas o fato é que ele continuou absolutamente sozinho.

De certa forma, era mais isolado, “na dele”, não entrava na bagunça dos outros. Sempre cumpria suas tarefas. Como todos, ajudava na cozinha, banheiros e quartos quando era escalado. Era questão de ordem, e quem faltasse com o dever era punido: fazer em dobro na seguinte semana. Sem choro.

Após um jantar, em que Mahmoud havia ajudado na cozinha, me sentei a sós com ele. “Você sabe que na Síria e na Turquia é muito difícil conseguir drogas, né?”, ele disse, com o olhar de quem buscava um conselho. “Não temos essa realidade por lá. Apenas fumamos tabaco”, prosseguiu. Na Grécia, a droga era para esquecer a realidade, e o trabalho de convencimento para evitá-la era lento e gradual. “Não quero isso para a minha vida”, completou.

Num país em bancarrota, Mahmoud era um exemplo dessa geração esquecida. Há meses tentava o processo de asilo no país, uma vez que chegou à Grécia depois do “acordo da vergonha” entre União Europeia e Turquia, ou seja, não tinha como ser incluído em outros programas de migração.

Fui claro: ele teria que “encher” o dia de atividades. Estar o máximo possível de tempo com os voluntários. Livre das tentações e de possíveis más companhias.

É complicado ser conselheiro nessas horas. A realidade está nua e crua na sua frente. Numa noite perto do Natal, a Laila me chamou ao quarto porque Maher e Amin queriam conversar. A Laila fazia um trabalho primoroso não só de tradução, como de trato, sem deixar de impor autoridade. Era considerada por todas como “Mamá”. Todos a chamavam assim.

“Estamos fumando dois pacotes por dia (cerca de 10 gramas)”, disse Amin. Sírio, com 16 anos, assistiu à cena de seu pai ser morto enquanto estava amarrado a uma cadeira e era torturado. Não quis dizer se por membros do regime de Bashar al-Assad, já que sua família vivia em área dominada pelo exército rebelde, mas o que era claro é que aquele garoto, agora com 18 anos, estava perdido no mundo. Sem chão. A droga, mais uma vez, servia como "muleta". Para ele e para muitos outros.

“Vocês não podem mais ficar se anestesiando o dia todo. Sei que é fácil falar, mas vejam, vocês já não estão mais tomando o “puble”, ninguém aqui usa a “sisha”, ou seja, vocês estão melhorando. Diminuam a carga, cumpram com tudo o que vocês têm que fazer durante o dia, joguem o futebol que vocês adoram, e depois, antes de ir para casa dormir, fumem um. Apenas um. Até não sentirem mais vontade. Só ocupando a mente vocês vão conseguir”, aconselhei. A base era a confiança no projeto. Era preciso reforçar isso ao máximo em nosso acordo.

O “puble" é a droga da moda entre os jovens na Grécia por dois motivos. Primeiro é fácil de ser conseguido. Quando me contaram como funciona a coisa, fui a um parque chamado Alexandra, na região central. É uma espécie de “cracolândia” grega. A polícia passa em comboios de motos, olha tudo, e nada faz. É um comprimido vendido sob prescrição médica (um “tarja preta”) que, ao ser misturado com o álcool, tem efeitos alucinógenos. Segundo que é uma droga muito barata. Uma pílula pode ser comprada por 1 euro com os traficantes. O sujeito que vendia tinha um bolo de dinheiro no bolso. Existem traficantes que falam todas as línguas: inglês, árabe, urdu… Muitos montam barracas de camping e ficam por ali mesmo.

A “sisha” é o crack europeu. É uma cocaína de baixa qualidade, em pequenas pedras em formato de cristal, que se fuma numa espécie de cachimbo de vidro, que custa 1 euro - a dose completa, com o cachimbo cheio de pedras, sai por 5 euros. Os jovens imigrantes e refugiados que caem nesse vício - ou mesmo com a heroína, também muito popular - não têm outro fim que não a morte. Seja por se endividarem com traficantes, ou mesmo pelos efeitos dessas substâncias.

Acompanhei dois casos de crise de abstinência. Não posso citar nomes. Uma noite, quando todos já se sentavam em círculo na sala principal para o jantar, ouvimos a campainha. Um dos moradores chegou com um balde na cabeça, nitidamente transtornado. Não quis comer. Quando começamos a jantar, apareceu diante de todos perguntando “quem diabos tirou o chip do meu celular?”. Veio o silêncio, que foi rompido quando ele lançou o aparelho com força contra a parede, despedaçando-o.

Na outra ocasião, um dos jovens saiu enfurecido, batendo a porta. Fui atrás e o encontrei tremendo na praça, a poucos metros do portão de entrada. Tremendo e chorando. Suas mãos e braços estavam machucados. “Todo dia problema, problema, problema”, chorava. “Me dê algo para dormir, por favor, me dê algo para dormir”, implorava. Propus, então, que fizéssemos um exercício de respiração. Várias vezes seguidas. “Sway, sway” (“Devagar, devagar”, em árabe).

Consegui trazê-lo de volta ao apartamento, onde prontamente começou a rezar e a pedir a Alá um melhor caminho para sua vida. A cena me impressionou muito. Natália Pelaz, uma médica espanhola que é voluntária e também um das fundadoras da associação, lhe deu um calmante. Ele dormiu por 12 horas. Era nítido que estava há dias sem pregar os olhos.

O projeto já havia indicado duas opções de clínicas de reabilitação para os jovens que precisassem de tratamento - mas tinha que ser por opção própria. Um deles aceitou e depois seguiu sob supervisão de todos os voluntários em casa. É um tipo de trabalho que consome a alma, mas que dá um sentimento de grande gratidão com “pequenas vitórias”. Que não são minhas, diga-se, são deles próprios.

As máfias e o dinheiro fácil

Antenas, primeiros dias de 2017. Ano novo, ano duro

Lá pela terceira semana, veio fazer parte do projeto, por algumas semanas, um amigo e voluntário que havia conhecido no porto de Pireus entre abril e julho do ano passado. Trata-se de Stephan Garcia, um catalão que também já era amigo da Laila e que veio com a missão de dormir na casa, ajudar na tarefa de colocar ordem nas coisas - e na sua própria vida, já que ele próprio assumia o desafio como algo particular.

Ele não falava inglês, mas era fluente no francês. Por isso, de cara ficou próximo do Aziz*, um argelino de 24 anos, o mais velho da casa. Como o francês também era o idioma oficial do seu país, estabeleceu-se de cara uma aproximação entre os dois, até porque era ele o seu tradutor nos momentos em que a Laila não estava presente.

Dois episódios marcaram para mim a presença de Stephan na casa. O primeiro, quando encontrou um prato de macarrão dentro da gaveta da cozinha. Como isso aconteceu em dia de assembleia, ele deixou o prato ali mesmo e, durante a roda, levantou-se e mostrou a massa já com um odor desagradável. Silêncio. Até que Faruk confessou: “Desculpa, cheguei com fome, fui fazer o macarrão, mas coloquei muita pimenta. Não tinha espaço na geladeira. Desculpa”.

Nunca vou esquecer também a cena em que o Stephan pediu ajuda ao Aziz para transmitir o seguinte recado, pela manhã, com todos perfilados na porta do banheiro. “Vocês precisam se acostumar a escovar os dentes. Por que diabos ninguém escova os dentes aqui?”. Todos caíram na gargalhada. “Eu não gosto muito”, disse Maher, o mais humilde de todos. Outro recorte que levarei para sempre foi quando Maher se espantou com a eficácia da máquina de lavar roupas. Via espantado as peças indo de um lado para outro. Não entendia como aquilo era possível.

Mas voltando ao Stephan: ele mantinha boa relação com Aziz, que era ex-presidiário. Passou quase três anos detido em solo grego, acusado de tráfico de pessoas. Sim, ele era um dos que guiavam os diversos botes que ainda chegam à costa da Grécia. “Eu deixei minha terra porque briguei com minha família”, contou um dia no quarto - onde sempre tínhamos como costume uma conversa para saber como tinha sido o dia, falar sobre a vida, enfim, bater papo antes de ir dormir. “Tinha carro, tinha uma vida confortável, mas eu só queria saber de dinheiro, de vida boa”.

“Cheguei a Istambul (Turquia) e dormia em bancos nas ruas. Não tinha dinheiro para nada. Meu mundo desabou. É exatamente esse tipo de gente, como eu, que os smugglers – traficantes de pessoas - procuram”, prosseguiu Aziz, explicando que esse negócio é tão lucrativo - a OIM (Organização Internacional para as Migrações) estima que o esquema gere um faturamento anual de US$ 35 bilhões - quanto fácil para as máfias de tráfico de pessoas, já que o comando da rede, de fato, não sofre qualquer risco.

No caso dos que chegam à Grécia, o negócio se concentra em Izmir, a terceira maior cidade da Turquia, já bem próxima às ilhas de Quios e Lesbos, os principais pontos de chegada dos refugiados.

“É tudo em nossas mãos. Claro que eu errei e paguei por isso”, disse Aziz, lembrando que “quem viveu preso nunca esquece como é estar numa prisão, ainda mais num país que não é o seu”. “Mas essa gente não se importa com as pessoas. Enchem os barcos além da capacidade, e as pessoas pagam até 2.000 euros cada uma. E se você não entrar, eles te matam ali mesmo. Sempre armados. Muitas vezes colocam pouco combustível, porque sabem que alguma guarda costeira vai localizar (o barco). E se não localizar, eles não estão nem aí da mesma forma”.

Na prisão, conta ainda, “aprendi a falar grego, e fazer capuccino e frapês”, já que para diminuir a pena trabalhava na cafeteria do centro de detenção da ilha de Kos. Com ajuda dos voluntários, já que estava dormindo nos bancos da praça Viktoria quando conheceu o grupo de espanhóis que o chamou para o projeto, conseguiu a sua White Card. Trata-se de uma permissão legal para estar no país, em condicional, já que havia sido condenado a quase oito anos de prisão. É um documento, como diziam os jovens, “para mostrar para a polícia”, sem a necessidade de ter que levar consigo a papelada do processo.

Outro exemplo de como a máfia atua como “um diabo que sopra no ouvido” desses jovens aconteceu na segunda semana de janeiro. Khalil*, um marroquino de 21 anos, tinha passado cerca de três meses preso por um desses absurdos cometidos, diariamente, pela polícia grega. Quando o porto de Pireus, que fica na região de Atenas, foi desmantelado, em julho do ano passado, ele tinha acabado de chegar com três amigos. Como o escritório de registro que havia no local já não estava mais funcionando e as pessoas estavam sendo levadas para o campo de Trikala, no norte do país, as autoridades garantiram que, chegando ao novo acampamento, eles seriam devidamente registrados e realocados no campo recém-construído.

Pois antes mesmo de chegarem a Trikala, no que foram acompanhados por Laila e Natália, que estavam na desativação de Pireus, eles foram detidos pelos policiais que pararam o comboio de imigrantes de refugiados. Não fosse pelas duas terem levantado, mediante doações, mais de 1000 euros para a fiança, Khalil ainda estaria preso, longe de tudo e de todos. Nesse dia, ele chegou em casa com uma notícia avassaladora: havia aceitado o convite de um traficante de pessoas para guiar um bote até a Itália. Queria encontrar o seu irmão que estava por lá, e garantia: “tenho experiência nisso”.

De novo, era o seu “passaporte”, o seu “dinheiro fácil”. Pobre Laila e Natália: tanto esforço e, de novo, a chance clara de ser detido. E, dessa vez, por muito mais tempo, já que a condenação seria por tráfico internacional. O trabalho de convencimento foi intenso e constante: era um domingo, e ele deveria partir na madrugada seguinte. Demos uma volta pela cidade, como se fosse sua despedida, mas principalmente Laila e Tereza Alface, uma voluntária espanhola que era bem próxima de Khalil, sempre o puxavam de lado para convencê-lo a desistir. E conseguiram. Ele desfez a mala e ficou. Alguns jovens, posteriormente, vieram me dizer que era “mentira, está fazendo isso apenas para chamar a atenção de vocês”. Não importava. Todos sabíamos como agem essas máfias. O sentimento de vitória do voluntariado independente falou mais alto.

Despedidas

Atenas, semana do dia 15. Reta final da experiência

Faltou contar em toda essa epopeia-maluca-que-te-muda-a-vida que dois dos moradores da alternativa habitacional já eram meus amigos. Youssef*, 18, e Jamil, 19, são dois jovens sírios que havia conhecido no porto de Pireus. Já se conheciam da terra que vive uma guerra, ao que tudo indica, quase que interminável. Saíram juntos. Cruzaram o mar juntos. E assim permaneceram em Atenas. No entanto, se no porto eles eram inocentes, os “queridinhos” dos voluntários, o impacto foi enorme quando eu os revi, passados cerca de quatro meses, de volta à Grécia.

A ternura do rosto deu lugar a um envelhecimento precoce. Já tinham um semblante mais sério. Antes da alternativa habitacional, tiveram desentendimentos numa ocupação onde viviam e precisaram deixar o local, controlado por um mafioso. As ruas eram a única opção. Laila não pensou duas vezes em adotá-los no novo projeto. Foi dela a atitude de acolhê-los, foi dela a atitude de buscar advogados para que ambos pudessem ter direito legal, como refugiados que são, a um lugar em outro país europeu, pois haviam chegado à Grécia antes do "acordo da vergonha".

Youssef era brilhante na limpeza: caprichava no banheiro, não deixava nenhuma gordura na cozinha. Mas tinha a irritante mania de tocar a campainha. Seguidas vezes. Insistentemente. Um dia lhe puxei pelo braço, fui até a porta e expliquei que “você não precisa tocar cinco vezes. Basta uma”. Ouvia com respeito as broncas, baixava a cabeça. Mas não adiantava: era barulhento por natureza.

Ria alto, escutava música em máximo volume. Era o craque do PlayStation. “Eu amo o Kaká, ele é o melhor. Com você aqui, vou sempre jogar com o Brasil”. Ninguém ganhava dele, fato.

Com um inglês básico do básico, sempre usava o ‘me’ ao invés do ‘I’, algo que foi corrigido gradualmente nas aulas de inglês. Mas quando era para pedir cigarro, parecia um lorde inglês. “Please, can you give me a cigarette? (Por favor, você pode me dar um cigarro?)”.  Até hoje está namorando uma voluntária espanhola, que o ajudou e muito no processo de ser aceito na Alemanha, mais precisamente em Dortmund. Quem poderia imaginar que um garoto como ele, que sofria maus tratos em casa e carregava uma enorme cicatriz no braço por isso, naquele momento, teria a chance, enfim, de ter uma nova vida?

Destino similar teve o vaidoso Jamil. Gastava horas e horas em frente ao espelho para ajeitar devidamente o topete com o secador ou com o gel. Estava sempre perfumado. Um sírio supereducado e bonitão. Mas tinha seus altos e baixos, como na noite do Réveillon. “Eu não quero sair da cama de jeito nenhum”, afirmava. Sentia a falta da então namorada, também espanhola, que havia ido passar as festas de fim de ano em casa.

Ambos recuperaram e muito a autoestima com a proteção e atenção dos voluntários. Ao final, já não tinham mais a cara carrancuda de quando os reencontrei.

Hoje Jamil está na Holanda, vivendo em uma casa com três amigos, onde têm a mesma rotina de disciplina, de compras, de afazeres diários. O namoro dele não durou, mas o objetivo foi alcançado: vida nova. Ele e a ex foram incluídos no processo de realocação do OIM. Um processo supercomplicado, leva meses, você passa por uma série de entrevistas que precisam ser marcadas… por Skype.

É um Deus nos acuda e muitos não sabem como fazer, que caminho tomar. Não fosse pelo auxílio de voluntários e advogados independentes, muitos estariam ainda presos na Grécia. Por serem sírios, puderam ser incluídos no programa - haviam chegado antes do pacto UE-Turquia. Taruk foi aceito na Bélgica. Os de outras nacionalidades seguem esperando melhor sorte.

As despedidas foram recheadas de lágrimas, abraços e o sentimento de que, se ninguém ali era um grande especialista no trato com esses jovens, sem dúvida deu o seu melhor. O projeto segue em marcha agora com outros jovens na mesma situação. Perfis similares de quem não tem um teto. Por fim, como se fosse a cereja do bolo, pouco antes de eu retornar brevemente ao Brasil, o Mahmoud me disse que o meu “Kalimeraaaa, Kalimeraaaa rá”, que quer dizer “bom dia” em grego, e era como eu sempre os despertava pelas manhãs, virou um hit entre os refugiados. Ele me garantiu que outro dia estava com um grupo que ele acabava de conhecer e todos me imitavam sem nem saber do que se tratava.

Valeu a pena.

 

* nomes trocados a pedido dos entrevistados

O projeto

Não pensei duas vezes quando a associação independente Holes in The Borders, um grupo espanhol de mulheres ativistas com sedes em Madri e Atenas, convidou o projeto I Am Immigrant do qual sou criador, para fazer parte de uma iniciativa extremamente necessária. Com apoio da entidade catalã Acciòn Solidaria Mediterrania participei de um projeto de alternativa habitacional. Uma moradia para esses jovens esquecidos. Um pequeno passo para, num futuro, quem sabe, servir de exemplo. Uma tentativa de prover uma nova rotina, com três refeições diárias, aulas de inglês, vídeo, fotografia, futebol, diferentes atividades para tirá-los das ruas.

Com base em doações da sociedade civil, ou seja, de pessoas como você, que está lendo este TAB, foram compradas geladeiras, fogões, eletrodomésticos, camas, edredons etc. Um apartamento antigo em Atenas, de três quartos, foi equipado para ser palco dessa experiência. Ajudei com aulas de inglês (nas primeiras três semanas, outro voluntário brasileiro também participou). Ministrei ainda oficinas de vídeo e fotografia, uma maneira de eles expressarem, de forma independente, a própria realidade para um documentário a ser editado futuramente. A cada sexta-feira, participava também com outros voluntários e os próprios moradores de assembleias onde se conversava sobre o que tinha que melhorar, sempre com a tradução do árabe para o espanhol, e vice-versa, já que os jovens também tinham voz para sugestões e reclamações.

Cozinhei, fiz compras e limpezas pesadas em campo de refugiados, distribuí comida e roupas, esperei por horas exaustivas nos caóticos hospitais gregos para auxiliar refugiados doentes etc. Só que nada foi mais desafiador na minha ainda curta experiência como voluntário do que conviver com esses jovens. Experiência que te faz sentir estar vivendo fora da bolha do Facebook. O apartamento alugado era colado ao que eu dividia com outros ativistas que também faziam parte do projeto. Por dois meses, aproximadamente, oito jovens de diferentes origens, entre 18 e 24 anos, foram meus vizinhos imigrantes.

Sempre pensei no jornalismo-voluntário, ou seja, sem fazer “turismo de refugiados”, termo muito usado para criticar quem passa algumas horas com os imigrantes, sem nada a oferecer além de um post nas redes sociais, como a melhor forma de documentar esta crise humanitária.

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