ESPÍRITO DAS RUAS

Wagner Avancini, o fotógrafo que registrou as manifestações mais importantes do Brasil, volta a campo

Tiago Dias (texto) e Ricardo Matsukawa e Wagner Avancini (fotos) Do TAB, em São Paulo

Tão logo Wagner Avancini, 65, pisa na avenida Paulista, a chuva desaba. No caminhão de som em frente ao Masp (Museu de Arte de São Paulo), os organizadores do protesto contra a atuação do governo federal durante a pandemia cantam para não arrefecer a animação dos manifestantes -- que mal chegavam e já saíam em busca de abrigo.

Em frente ao museu, a banca de revista lota. Entre jovens, uma cabeça branca se destaca. Havia dois anos que ela não aparecia numa manifestação. A última, muito antes de a pandemia tirar as aglomerações da rua, foi num ato a favor do presidente.

Parece pouco tempo, mas o hiato mexeu com o brio de quem testemunha atos históricos desde os anos 1970. Passeatas contra a ditadura, atos do movimento pela Anistia, marcha antirracista em defesa da Lei Afonso Arinos, greve dos bancários, greve dos metalúrgicos: são muitas as mudanças sociais no Brasil que passaram pelas ruas e pelas lentes de Wagner. Por isso estava ansioso, admitiria dias depois.

A chuva para, ele ajusta a máscara e o cinto que segura a calça mais larga e adentra, depois de meses de exílio doméstico, uma aglomeração onde todos usam máscara e o distanciamento social inexiste.

De estatura baixa, ele apoia a mochila pesada com um flash em um dos braços e, no outro, segura a câmera. Anda rápido como se tivesse pressa, e estaciona diante de um boneco de Jair Bolsonaro e de um grupo que toca instrumentos de percussão. A cabeça balança no ritmo do batuque e os dedos ágeis ajeitam rapidamente o foco. "O que me chama atenção são os personagens. Me interessam as pessoas", diz. Naquele sábado, um observador da história brasileira estava de volta ao seu habitat. "Bate uma adrenalina, é como um vício."

O vício já fez com que ele fosse agredido por policiais e voltasse arranhado para casa. Pouco afeito a reflexões, no geral, nessas horas Wagner deixa a história o levar. Em 1979, durante a greve dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, foi detido e levado ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). Lá, teve o filme da câmera apreendido pela repressão -- não sem antes esconder os cliques de Lula falando a um mar de gente dentro do bolso da calça de um colega.

"Eram tempos mais violentos", ele diz, mas logo se recorda das notícias da manifestação no Recife naquela manhã de 29 de maio, em que dois homens ficaram cegos de um olho ao serem atingidos por balas de borracha disparadas pela Polícia Militar. "Se bem que hoje é outro tipo de violência. Naquela época, as pessoas estavam de saco cheio da ditadura. Hoje há mais motivos para se manifestar. E vou te falar, naquela época eu não imaginava que estaria aqui vendo certas coisas. Isso me deixa deprimido." Algo, porém, não muda. "Sempre ouvi que os jovens são alienados. Mas eles estão sempre vendo tudo."

A marcha começa a avançar e começa um empurra-empurra. Ele avista Guilherme Boulos (PSOL) e vai na contramão da muvuca. Posiciona-se, mas celulares invadem seu campo de visão. Tenta então subir no caminhão de som, mas o assédio sobre o ex-candidato à prefeitura de São Paulo é grande. "Devia ter me programado para subir em algum lugar", diz, desejando uma foto de cima.

Alguém ao lado acende um bastão de fumaça e envolve os manifestantes numa densa névoa vermelha. Minutos depois, Wagner diz que está passando mal. "Não sei se está quente ou não", fala, com a cabeça baixa. O calor humano realmente fez subir a temperatura daquela tarde fria e úmida. O mal-estar passa, mas não demora muito para ele se despedir.

Em direção ao carro que deixou estacionado no início da avenida, fez a última das 300 imagens do seu retorno às ruas do jeito que queria: em cima de um caminhão que esperava a manifestação passar.

Mais uma entre milhares de imagens feitas naquele dia por fotógrafos profissionais e amadores que não saíram nas capas dos principais jornais do Brasil.

Quatro dias depois, Wagner abre uma caixa cheia de fotos e negativos de uma vida dedicada ao fotojornalismo. Daquele filme salvo da apreensão do DOPS, aparece a imagem de Lula na assembleia dos grevistas num estádio em São Bernardo do Campo. O então líder sindicalista bradava ao microfone para milhares de rostos, como no quadro "Operários", de Tarsila do Amaral.

Na mesma caixa repousam fotos com poses descompromissadas de Raul Seixas, Gilberto Gil, Henfil e José Dirceu relaxado numa poltrona, recém-chegado do exílio. Não há uma ordem para os registros, assim como para as histórias que Wagner conta.

Ele espalha negativos na mesa de luz com acrílico rachado, iluminado pela mesma lâmpada dos anos 1970. Com a ajuda de uma lupa, observa os registros.

"Eu não gostava de fazer bonequinho de empresário", diz, referindo-se aos retratos posados, e mostra a imagem feita com crianças de rua, eternizadas numa lente angular, a preferida do fotógrafo para chamar para perto os personagens retratados. Na sala de casa, sem decoração e fotos penduradas, o analógico convive com o digital — que às vezes dá dor de cabeça: "rapaz, não consigo abrir esse arquivo no computador aqui", resmunga baixo.

Wagner agora busca o material que armazenou nas dependências da Angular, agência de fotojornalismo que montou com amigos em 1978 para garantir os direitos autorais dos registros. A agência alimentou boa parte da imprensa brasileira, mas, quando fechou as portas, teve boa parte do seu acervo passado de mão em mão, extraviado.

Naquela tarde, com o rádio ligado, ele tentava mais uma vez organizar a parte do arquivo que restou. Enquanto Caetano Veloso canta Roberto Carlos, ele mexe nos negativos guardados em pequenos envelopes amarelos, com o assunto de cada filme: "eleições de 86", "professores em greve 79", "invasão de terra", "Césio-137", "greve da Tupi", "missa 7º dia Fleury", "princesa Diana", "Copa 78".

O envelope "Carnaval 83" guarda os registros mais conhecidos de Wagner. São imagens da ousada festa do Clube do Arakan, baile de carnaval proibidão de São Paulo, resgatadas numa reportagem assinada por seu filho na Vice Brasil, versão nacional da publicação norte-americana de cultura e comportamento. "Ali não precisava pedir para posar. Eles mesmo me chamavam, queriam se mostrar, mas eu ficava procurando coisas mais descontraídas."

As fotos da sacanagem num colorido próprio da década viraram sensação nas redes sociais e impulsionaram o fotógrafo a criar uma conta no Instagram, para resgatar imagens de uma São Paulo em evolução política e comportamental. Um outro envelope guarda conteúdo semelhante: a abertura de um clube de strip-tease. Acostumado a voltar com marcas físicas das sessões de foto, dessa vez não foi diferente. "Peguei uma gonorreia lá", ri de canto.

São momentos de uma época em que as câmeras não exibiam previamente as imagens -- e Wagner às vezes nem mirava no visor. "Media a luz na minha mão e mandava pau", diz, rindo. "Ou ficava bom ou ficava uma merda. Mas eu tinha muita sorte também."

Antes de pegar numa câmera pela primeira vez, Wagner ganhava dinheiro como auxiliar do pai, um metalúrgico. "Eu não gostava muito, ficava com as unhas cheias de graxa. Eu tinha umas namoradas e ficava chato", diz, enquanto aperta os olhos contra uma lupa. Na vizinhança da Casa Verde, zona norte de São Paulo, a atmosfera criativa levava os adolescentes a trabalharem com música e cartum (como o amigo de infância, Angeli). A fotografia foi uma maneira de se engajar em algo artístico.

Com trocados para o ônibus, zanzava pela cidade em busca de algo para fotografar. Fazia apenas para si e não entendia (até hoje) muito bem o porquê. "Acho que eu gostava de entender a cidade, conhecer outros lugares."

Aos poucos, transformou o porão onde funcionava a oficina do pai num pequeno laboratório de revelação. A mãe apoiava e ficava com os ouvidos grudados no rádio para repassar ao filho o que acontecia na cidade. Na época da greve dos metalúrgicos, passou a dormir e acordar junto com os operários no ABC. Tinha 22 anos.

Dessa leva, ele mostra uma sequência de fotos em que é o próprio personagem. De cabelos pretos e mais longos, Wagner aparece sendo levado por policiais para dentro do camburão. "Ele me deu uns três socos na barriga, esse desgraçado", diz, apontando para o homem que o segura pelo braço. E para, mais uma vez, o processo de escaneamento das fotos para pesquisar a data e local da imagem.

"É sempre assim", reconhece. "Começo a mexer e já paro para pesquisar e encontrar outras imagens. Quando vejo, já está tarde e eu fiquei aqui só pensando. Não rende nada", diz, olhando as imagens espalhadas na mesa. "Mas é uma boa lembrança. É um sentimento feliz."

Nos anos 1990, a fim de comprar uma casa, deixou de lado o fotojornalismo para fazer fotos institucionais. Ganhou dinheiro, mas durou pouco. O trabalho minguou. "Fiquei deprimido uma época, não fotografava. A ausência da rua me fez mal", explica.

Para manter as contas em dia, virou motorista de Uber em 2018. Gostava de trabalhar de madrugada e fazia registros do celular de outros lados da cidade que o aplicativo o fazia visitar. "Tanto a fotografia quanto o Uber te fazem ter outra perspectiva, outros ângulos que você nunca teve", diz.

Avancini deixou de ser motorista quando a pandemia chegou. "A gente pensa que está bem da cabeça, mas depois você vê que não tava tão bem assim, não", ele diz. Durante o isolamento, descobriu um câncer na próstata.

Em agosto, os últimos resultados de exames devem revelar o real estágio da doença. Ele não lamenta e já muda de assunto: "Olha aqui o cofre aberto", diz, mostrando o registro da greve dos bancários em 1979. "Li outro dia que o Diogo Mainardi apareceu nesse quebra-quebra", diz, mexendo na pilha de discos de vinil que voltou a comprar. Escolhe Frank Sinatra para tocar.

A voz imponente canta "My Way" e Wagner cantarola a letra sobre um homem recordando a vida sem arrependimentos. Ele diz não ser nostálgico e faz planos: quer voltar com força a campo, depois que saírem os resultados dos exames, e tomar a segunda dose da vacina, ainda que faça como na adolescência e naquele último sábado, guardando os registros para si mesmo. "Eu gosto da rua. Quero estar vendo tudo. Pra mim é documento. Na hora, pode não dizer nada. Mas é a história do Brasil, não é?"

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