Processo seletivo

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Deixar o crime para trás não é só questão de força de vontade. Há marcas que persistem. Para se tornarem cidadãos comuns, ex-detentos precisam provar algo que não está no papel - a vontade de refazer as suas vidas honestamente

TextoMarco Britto
DesignMariana Romani
FotosRogério Cassimiro
Junior Lago

"Quando a polícia me para, o que interessa é isso aqui, ó!" Adalberto retira um papel dobrado da carteira e mostra o contracheque. O emprego de faz-de-tudo-um-pouco em uma oficina mecânica de São Paulo é a garantia real da sua liberdade. Bicos não evitam problemas, apenas os aliviam. Um ex-militante do PCC (Primeiro Comando da Capital) precisa de mais do que isso para ir e vir numa boa.

Na casa de um cômodo, há internet e micro-ondas. A funcionalidade do espaço lembra a vida na cadeia, que demanda inteligência. É mais hardcore do que pagar os juros do cartão de crédito. Uma dívida na prisão pode valer a vida. Adalberto busca seu tênis novo no quintal. Foi parcelado em dez vezes. O valor é igual ao seu salário - cerca de R$ 1.000. Ainda brinca que a mulher gasta muito. Mas é uma questão administrável. O mais importante, ele sabe, é não esquecer a lição número um da cartilha: sobreviver.

Em alguma cadeia do Brasil, naquele mesmo momento, alguém aprendia a lição número dois: resistir. Na difamada "faculdade de bandidos", conversa-se sobre planos. Assim que estiverem livres, vão roubar, assaltar e seguir a "carreira". A maioria não pensa em outro destino. É a profissão deles, afinal.

Mas há quem decida contrariar a regra. Lá dentro, em silêncio, em segredo, é quando um detento resolve mudar de vida e virar o que eles chamam de "Zé Povinho" - um cidadão como qualquer outro na multidão.

Remontando as peças

Ex-detento só abandona o crime se enxergar que tem outra opção

Ezequiel conta que teve uma adolescência boa, feliz. Em parte pode ser verdade, mas vendo a sua casa, sem cadeiras, sem mesa, quanto menos café, é possível entender por que a rota de fuga foram as drogas. Ele e a mãe trocaram uma das casas do terreno pela reforma do imóvel que habitam. "Estava semidestruída", afirma.

Usuário de crack, cocaína e tudo o mais que pintasse, o jovem roubava para sustentar o vício. Era detido, passava alguns dias na delegacia, no máximo um centro de detenção provisória, e era solto. Em um assalto a ônibus, foi encurralado pela polícia e ficou preso por quatro anos e oito meses. Após dois anos atrás das grades, ficou limpo e começou a série de "insights" comuns a outros que decidem se restabelecer socialmente: mudar de amizades, de hábitos e de vida. Na moita, sem falar aos colegas de cela, porque não pega bem.

Ezequiel completou o ensino médio na penitenciária de Tupi Paulista (SP). Está inscrito no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Estudou mecânica de motores a diesel quando já cumpria pena no semiaberto. Devagar para não assustar, ele foi mudando a rotina, a cabeça. Até que as portas se abriram... para o nada. Fora da prisão desde dezembro, ele foi a 40 entrevistas de emprego antes de desistir da contagem. O diagnóstico de Ezequiel para tamanho insucesso é simples, e, provavelmente, compartilhado por muitos:

Muita gente acha que se contratar vai pôr um bandido dentro da empresa, essas coisas, né? A dificuldade maior que eu tenho é essa.

Prova de fé

Ezequiel vive no limite entre o crime e a luta para conseguir um trabalho

Força mental e perseverança. Confirmados. Discrição e dedicação às tarefas. Ok. Comportamento e desempenho nas atividades. Muito bom. Trabalhando enquanto cumprem pena, os detentos vão ganhando conhecimento e confiança para a reintegração ao mundo livre. É um ensaio dentro das regras, já ganham salário, podem enviá-lo à família. Aquela empolgação, as coisas parecem estar nos trilhos... Mas para por aí. O final feliz está longe deste parágrafo. No mundo real, a primeira notícia que o Estado tem para lhe dizer é: aquele emprego do semiaberto acabou. Boa sorte na rua.

Quem será o novo empregador, a sociedade ou o crime? Ricardo estava havia menos de um mês em liberdade quando conversou com o TAB. Nesse período, recebeu três convites para voltar a roubar. "Eu disse que estava sossegado. [O bandido] falou que eu estava fazendo a coisa certa", conta. Com a voz empolgada, ele comemora uma grande conquista. Varre as ruas de Taboão da Serra (SP) por R$ 500 mensais. Um valor provavelmente inferior ao lucro que ele tinha com roubos. Ainda assim, a cifra evitou a criminalidade.

"São poucos os que querem mudar", afirma Ricardo. A vida na cadeia é baseada no mérito distorcido do crime. Quanto mais infrator, mais respeito. Rejeitar essa lógica pode ser perigoso, no mínimo chama atenção. "Já falava para todos lá dentro que eu ia trabalhar, ia sair dessa. Alguns riam de mim, tudo bem, Deus abençoe", afirma. Abrir o jogo, como Ricardo fez, é macular a honra aos olhos da comunidade. Raciocínio similar ao do jogo aqui fora, porém invertido. Algo como o filho dizer ao pai rico que vai virar hippie. Uma vida sem recompensa, sem moral, diriam. Mudar de tribo para quê?

Ezequiel saiu de casa atrás de um cigarro. Exercitando a humildade pela milionésima vez, conseguiu fumar e recebeu uma proposta de trabalho. Teria chegado a hora da virada? "O cara disse que se eu fosse com ele não ia mais ficar nessa situação", lembra. Estava lá a mão estendida do crime, mais uma vez. O jovem respirou fundo e negou o convite. Diz ter se agarrado à ideia de que um dia realmente tudo será diferente. Seria clichê, se não fosse real. No último contato com o TAB, fazia bico em uma empresa de banheiros portáteis para eventos. Aguardava ser chamado novamente, sem previsão concreta. Ainda assim, sentia certo alívio. Ao menos naquela semana.

O emprego formal serve como colete salva-vidas para não afundar novamente na vida criminosa

Ligando a TV, aparece aquela chamada: "Policial civil é condenado após matar dois por vingança". Aura de terror, a lei distorcida, um homem perigoso a menos nas ruas. E se esse homem mudar, quem vai dar um trabalho a ele? Você daria? Angelo passou por isso. Como resume, "ser ex-detento já é ruim, ex-policial homicida, então, o rótulo é maior ainda". Após cumprir 14 anos e cinco meses, a saída inicial para o desemprego foi a informalidade como segurança na região da rua 25 de Março, centro da capital paulista. "Amigos com ligações políticas me prometiam ajuda, mas nada acontecia", afirma.

O contracheque veio um tempo depois para o ex-policial, que tem jeitão duro, de militar, mesmo quando faz piada. "Meu cabelo está comprido, até", brinca. Angelo trabalha na triagem de protestos de títulos e ações judiciais. O chefe dele hoje comenta que à época da contratação não houve frisson. Deu-se emprego a um ex-detento como a qualquer outro. "Ele é uma pessoa normal, mantém seu rendimento na função e não tenho do que reclamar".

O TAB pergunta se ele chegou e falou: "Chefe, matei duas pessoas". A resposta é direta e reta. "Não tem como florear isso. Fiz? Fiz. Paguei? Paguei. Estava errado? Estava, tenho consciência", afirma. Angelo aceita os R$ 1.600 mensais de bom grado. Conseguir trabalho aos 50 já é uma vitória. Naquela manhã de segunda-feira, chegou ao serviço contando que ele e o filho fizeram bate-volta na fronteira com o Mato Grosso para pescar no dia anterior.

Pacificação

Ex-policial supera histórico de violência ao ser aceito no mercado

Adalberto foi condenado aos 18 anos. Já era pai. No cárcere, eram tempos de trevas, segundo ele piores do que se vê hoje. Entre fugas e retornos, foram quase 20 anos na cadeia, por roubos, assaltos, tráfico. Hoje vovô quarentão, feliz e de carteira assinada, defende o PCC como se falasse de um governo bem-sucedido.

"Quando eu cheguei, morria muita gente. O PCC implantou a paz. Você não vê mais o preso ter que dar a visita dele (mães, irmãs) para o outro preso fazer sexo, não vê o preso ter a alimentação que a visita levou ser tomada, não vê o preso tendo que ter relação sexual com outro preso, isso não existe mais", afirma.

Adalberto conta que, com 18 anos, tudo que os detentos mais velhos queriam era "papá-lo". A solução era não dormir e manter uma faca embaixo do travesseiro.

Não estamos tomando café e falando de um seriado. É a parte sem glamour do que chamam de 'vida loca'.

Presa por furto, a transexual Melissa (nome fictício) não teve uma impressão tão confortante. Em uma cela com 42 homens, diz que não podia falar ou mesmo tocar em nada. Tinha talheres e copos separados. Alguém poderia pensar que os detentos gostariam de uma presença feminina, mas o que a auxiliar de limpeza relata é o tratamento de um leproso. "O sistema prisional é falho. Eles vivem na ideologia do 15.3.3, né?", afirma. Segundo a sequência do alfabeto nacional, P=15, C=3 e C=3.

A administração que a facção faz nos presídios atrai simpatizantes. A organização faz checagens sobre o que os internos precisam - desde sabonete, cigarros, até um contato com um familiar que parou de fazer visitas. Em troca, os prisioneiros fazem "corres", pequenas funções como limpar a cela, lavar roupa. É um esquema de sobrevivência, independente da militância. Os ex-detentos entrevistados pelo TAB negam ter sido coagidos a praticar crimes antes ou depois de saírem.

Quando eu sair

Detentas falam do medo de encarar a sociedade e, principalmente, de como serão encaradas

Você contrataria um ex-detento?

"Vou falar uma coisa que pode parecer muito louca. Não quero sair." Michelle, presa pela nona vez, cumpriu parte de sua pena e tem direito a passar ao regime semiaberto. Ela teme fugir se tiver a chance de ver o filho, que vive em um abrigo. "Sou bem sincera. Ver o filho chorando porque você tem que voltar à prisão... Semiaberto mexe muito com o psicológico da gente", diz.

Medo é palavra comum quando o assunto é sair. Parece contraditório, mas após uma vida conturbada, o ambiente prisional pode passar segurança aos presos.

Há quem prefira se separar do mundo. Ordem, rotina. Andam na linha, literalmente - há uma no chão da prisão, amarela, que indica por onde caminhar. Não à toa muitos voltam. A ansiedade em sair vira uma versão perversa do primeiro dia de aula na escola nova. Não haverá ninguém para segurar a mão ou dar uma carona.

"É um desespero, você não tem nem dinheiro da passagem", conta Melissa, lembrando os primeiros dias de volta. Ir aos pontos de apoio oferecidos pelo governo pode significar deixar de comprar algo. Ao chegar, não há vagas. Se houver, a chance de ser rejeitada é grande. Os estados oferecem cursos de aprimoramento, mas para quem precisa ganhar urgentemente, investir na carreira é complicado. A transexual foi colocada em uma empresa de limpeza, com ajuda do programa Pró-Egresso, em São Paulo. O TAB procurou a Coordenadoria de Reintegração Social do governo paulista para comentar as críticas, mas não obteve resposta.

Ezequiel conta o dinheiro, junta os anúncios do jornal amarelo e vai para o centro da cidade mais uma vez. Para voltar, vai ter que descolar R$ 1. Segue na jornada semanal atrás de um emprego - pode ser que hoje ele consiga mudar de vida. No momento, não há final feliz para essa história, e a carteira de trabalho dele segue sem assinatura.

Marco Britto

Editor-assistente do UOL. Visitou a cadeia e chegou à conclusão de que pode haver prisão também aqui fora

tabuol@uol.com.br

Esta reportagem também contou com apoio de:

AfroReggae, Programa Segunda Chance; Fernando Acosta, Universidade de Ottawa – Canadá; Fernando Fidalgo, Observatório Nacional do Sistema Prisional; Luciana Boiteux, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mara Barreto, Departamento Penitenciário Nacional; Marina Coelho Araújo, CAZ Advogados; Sérgio Britto, CPI do Sistema Carcerário/Câmara dos Deputados; Hugo Rodrigues Lima, Léo Scatteregi, Poly Alcântara, Edson Porto, Edson Silver e Fany Élen, modelos; Junior Lago, fotografia externa; Rogério Cassimiro, fotografia de estúdio e Mariah Kay, edição de vídeos. Agradecimentos: Controles Visuais. Os dados exibidos nas fotos desta matéria são de: Ipea, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (dados de reincidência) e Infopen, Sistema de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça. As pessoas fotografadas para este TAB, com as placas na mão, não são ex-detentos, são modelos e as imagens são ilustrativas.

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