Elas só querem se divertir

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LIBERDADE, IGUALDADE, FRATERNIDADE

Faz tempo que uma coisa virou sinônimo da outra, e esse ranço segue firme e forte há décadas: falou em feminismo, pensou em mulher chata, feia e mal amada. A verdade é que, no meio do caminho, a luta do sexo feminino pelo próprio espaço tropeçou numa visão sombria: uma distopia na qual os homens são oprimidos. Calma, caras! A mensagem do futuro diz que as mulheres também só querem ser felizes.

Texto Mariana Tramontina
Design Mariana Romani

Ser uma mulher feliz significa muita coisa. Tem a ver com a liberdade de ser e agir como quiser, com a condição de tomar decisões sobre o próprio corpo. É sobre o direito de ganhar o mesmo salário que um colega homem numa função equivalente e saber que tem a garantia de não ser vítima de violência doméstica. Mas, hoje, nada disso é certeza em lugar algum do mundo, pelo menos de acordo com a pesquisa Diferenças Globais entre Gêneros, publicada no ano passado pelo Fórum Econômico Mundial. O estudo indica, por exemplo, que olhando só para o mercado de trabalho ainda levará 81 anos para haver uma equalização de salário, participação e liderança.

A questão é que não vai dar mais para esperar. E essa igualdade, em uma sociedade dominada pelo machismo, só virá com muita militância e choque, assim como ocorreu com toda mudança social importante. Nem sempre lembramos que a vida das mulheres já passou por grandes mudanças. Trabalhar, estudar, votar, praticar esportes, ter prazer... tudo era assunto proibido há pouco mais de meio século. As conquistas vieram graças aos movimentos feministas, que atravessaram gerações dando a cara à tapa - literalmente. E foi preciso que algumas pessoas fizessem barulho e gritassem mais alto para serem ouvidas. Talvez seja esse momento, o da defesa irrestrita da igualdade entre gêneros, o princípio daquela imagem preconceituosa que recai sobre a militância.

Há quem acredite que o feminismo seja exatamente o oposto do machismo, mas desfazer esse conceito equivocado é mais simples do que parece: o primeiro luta pela igualdade; o segundo, pela manutenção da "superioridade" masculina. Aquela ideia de que as mulheres querem dominar o mundo e destruir os homens tem muito mais a ver com sexismo, e aí é outra história.

O regime machista é uma herança secular. O prevalecimento da força física transformou o homem em dominador e relegou à mulher um papel social passivo. E mudar isso depois de tanto tempo dá trabalho. "Transformações históricas e sociais são lentas, principalmente em relação ao comportamento humano. Quando a mudança não acontece devagar, chama-se revolução, que é quando a gente tem medo que mude tudo o que já sabemos", afirma Maria Elisa Cevasco, professora de Estudos Culturais da USP (Universidade de São Paulo).

Para uma mudança realmente perceptível, a pesquisadora reconhece que é necessário um trabalho intenso de conscientização. "Começa em casa, com a criação das crianças e com igualdades entre os sexos desde pequenos, sem aquela coisa de 'menina é frágil' e 'menino não chora'. E com os adultos é preciso ter muita, muita conversa". Já para Carmen Hein de Campos, advogada e consultora sobre direitos das mulheres, a situação é um pouco mais delicada: "Precisamos de uma outra sociedade".

O QUE É, O QUE É

AI, SE EU TE PEGO!

A militância feminista ganhou mais visibilidade em 2014, quando artistas e celebridades tão diferentes entre si como Beyoncé, Emma Watson, Pitty e Valesca Popozuda passaram a defender abertamente suas posições. O tema havia, enfim, saído do armário de novo para quem quisesse e, principalmente, quem não quisesse ouvir. E na mesma proporção que essa pegada pop trouxe uma nova onda de debates, as ativistas também foram jogadas no olho de um furacão de ódio, ofensas e intolerância. O trunfo ideal para esse contra-ataque do preconceito foi o anonimato da internet. "Uma das coisas mais chocantes com a qual tenho experiência é a violência online contra as mulheres. Somos ameaçadas de estupro, de mutilação, de morte", afirma a jornalista Juliana de Faria, criadora do site Think Olga e da campanha "Chega de Fiu Fiu", que luta pelo fim do assédio nos espaços públicos.

A explicação de especialistas para essa agressão é simples: machismo. É esse conceito que condiciona o comportamento masculino a um patamar de possessão quando a questão é o corpo da mulher, principalmente em relação à violência, seja ela no ambiente virtual ou real. "As meninas são criadas com a ideia de ter medo dos homens, e internalizam que os meninos podem impor suas vontades", afirma Jacira Melo, diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão, entidade que atua no direito à comunicação e na defesa dos direitos das mulheres. "E quando a mulher é agredida, ainda se pergunta o que é que ela fez de errado", completa. É deste princípio que parte o lema do movimento global Marcha das Vadias, com seguidores por todo o Brasil: "Não nos ensine como vestir. Ensine eles a não estuprar".

Mas a opressão ainda mostra um fôlego estarrecedor. Dados da Central de Atendimento à Mulher Ligue 180, do órgão federal Secretaria de Políticas para as Mulheres, alertam que as denúncias de violência sexual 485 mil atendimentos
1.164 casos de estupro
262 ocorrências de assédio
no Brasil aumentaram mais de 40% no ano passado em relação a 2013, com o estupro no topo das acusações. E tem mais: em 81% dos casos, os autores das agressões são pessoas próximas da vítima e com algum vínculo afetivo. Sabe aquela história de ninguém meter a colher em briga de marido e mulher? Pois é. E muitas ainda acabam em morte.

Existe um nome para isso, que ainda nem está nos dicionários: feminicídio, o assassinato de uma mulher motivado por questão de gênero, violência doméstica e/ou sexual. No final do ano passado o Senado aprovou a inclusão no Código Penal desse crime, "apelidado" de passional, com agravante de 12 a 30 anos de reclusão. Para a senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR), relatora do projeto, a homologação foi uma resposta às declarações do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), que afirmou em plenário que não estupraria a deputada Maria do Rosário (PT-RS) porque "ela não merece". "Não podemos ficar impassíveis diante de tantas barbáries que têm ocorrido ultimamente", ressalta a senadora.

Neste momento, cerca de uma em cada cinco mulheres nos EUA foi vítima de estupro ou tentativa de estupro. E mais de uma em cada quatro mulheres sofreu alguma forma de violência doméstica. Isso não está certo. Isso tem que terminar

Barack Obama, presidente dos EUA, no Grammy 2015

Imagens: RIEN

É um embate cultural que trava batalhas polêmicas e questiona o direito sobre o próprio corpo, desde a liberdade básica de andar na rua sem ser assediada até a autonomia da mulher na escolha do parto e a legalização do aborto. "Não há alguém, em sã consciência, que seja a favor do aborto", afirma o jornalista Leonardo Sakamoto, doutor em ciência política pela USP. "Defender o direito ao aborto não é defender que toda gestação deva ser interrompida, e sim [defender] que as mulheres tenham a garantia de atendimento de qualidade e sem preconceito por parte do Estado se assim fizerem essa opção", completa.

Os dados sobre a violência sexual de 2014 corroboram o que historicamente existe na sociedade machista: o comportamento e o corpo feminino são vistos como propriedade de livre acesso do homem. "Isso é bem evidente no Brasil, onde parece que algumas atitudes são aceitáveis, desde a cantada explícita na rua de um desconhecido até um assédio discreto no ambiente de trabalho", explica a advogada Maria Ticiana Campos de Araújo, integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB do Paraná.

Para a advogada Carmen Hein, que esteve envolvida na elaboração da lei Maria da Penha instituída em 2006, a discussão da causa esbarra no conservadorismo presente no atual Congresso Nacional. "[Essa cúpula] É um retrocesso para o país frente às realizações conquistadas ao longo da história. Mas a falta de coerência na sociedade e a hipocrisia religiosa também são obstáculos muito grandes", afirma, reconhecendo que a briga pelos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil ainda será pesada.

O SEU PENSAMENTO É MACHISTA?

Homens e mulheres podem ter atitudes e pensamentos machistas mesmo sem perceber. Avalie como você se posiciona em cada uma das cenas

Que negócio é esse?

Se os direitos sobre o corpo caminham a passos lentos, o mercado de trabalho está com as portas entreabertas. Segundo uma pesquisa recente da empresa de consultoria Ernst & Young, o sexo feminino representa 48% da força de trabalho global do setor público, sendo que apenas 20% desse total são cargos de liderança dentre os países do G20. Aliás, você sabia que atualmente só 10% dos governos mundiais são chefiados por mulheres? Elas somam 19 líderes, em países como Alemanha, Dinamarca, Kosovo, Coréia do Sul e Brasil.

Levando em conta que a mulher brasileira apresenta maior escolaridadeNível superior
Mulheres: 19,2%
Homens: 11,5%
*Dados do IBGE
e que sua renda mensal é, em média, 30% menor que a de um homem na mesma situação, ainda há muito a ser trabalhado. Até na Suécia, país com alto índice de igualdade social, circulou uma campanha sobre o sofrimento feminino no mercado de trabalho. Em vídeo, Annelie Nordström, presidente do maior sindicato sueco, o Kommunal, responde à pergunta: "O que uma mulher precisa fazer para ganhar mais?". Reposta curta, direta e irônica: "Seja um homem".

Se existe uma discriminação velada, é a maternidade que muitas vezes leva a culpa. A possibilidade de uma funcionária engravidar e se afastar de suas funções enquanto recebe salário é encarada pelas empresas como um prejuízo iminente.

Na Islândia, considerado o melhor país do mundoRanking da igualdade
Pontuação vai até 1
1º: Islândia 0.8594
71º: Brasil 0.6941
para o sexo feminino no ranking de igualdade do Fórum Econômico Mundial, houve uma mudança na lei que facilitou a vida das mulheres: a ampliação da licença paternidade para nove meses. São três meses exclusivos para a mãe, três para o pai e outros três que podem ser divididos como o casal desejar. Assim, as empresas não podem mais encarar somente as mulheres como um "fator de risco".

"american girl", florence, 1951. Por Ruth Orkin

Parece, mas não é. Essa imagem rodou o mundo por décadas sendo má interpretada. Segundo a própria garota da foto, a norte-americana Ninalee Craig, a expressão dela não era de sofrimento. "Eles estavam se divertindo e eu também", contou ela recentemente ao jornal "The Guardian". "Eram tempos difíceis [na Itália], logo após a guerra, e homens de todas as idades estavam pelas ruas do centro. Eu estava encantada, mas pessoalmente não vejo nada errado com um assobio elogioso".

RADICAIS LIVRES

O esforço para acabar com a ideia de que a mulher é mais frágil do que o homem é a mesma desde os tempos de Simone de Beauvoir, escritora francesa e autora da bíblia feminista "O Segundo Sexo" (1949). Enquanto isso não acontece, a militância segue em constante construção, renovando suas integrantes e trazendo novas questões. Há diversas ramificações dentro do movimento e cada uma propõe uma maneira particular para acabar com o machismo. Há quem queira repensar o capitalismo e transcender a discussão de igualdade para qualquer grupo que se julgue oprimido, assim como há quem brigue pelo direito de fazer topless em paz na praia ou pela sutil liberdade de não precisar se depilar e nem ser julgada por isso.

Toda independência de decisão é bem-vinda, mas não quer dizer que exista unanimidade entre as bandeiras. Emily McCombs, escritora e editora-executiva do site xoJane, argumenta que discussões sobre depilação, por exemplo, encobrem questões mais importantes:

Eu não dou a mínima para o que você faz com sua cara, seu corpo, seu peso ou o que quer que seja. Vamos falar de direitos civis, políticos e humanos, sobre mulheres negras que não têm o direito de dirigir e garotinhas que são vendidas como escravas sexuais. Os debates sobre vaginas peludas são completamente irrelevantes

Emily McCombs, editora-executiva do site xoJane

Do outro lado está a escritora norte-americana Roxane Gay, que diz abominar qualquer exigência ou restrição. Em seu livro "Bad Feminist" (Má Feminista, em tradução livre, ainda sem edição no Brasil), ela defende as contradições naturais. O raciocínio dela é simples: ninguém é perfeito, logo o movimento também não pode exigir ações perfeitas. "[Sou] Uma mulher que ama cor-de-rosa e gosta de enlouquecer e às vezes mexer o traseiro dançando músicas que são terríveis para as mulheres. Sou uma má feminista porque eu nunca quis estar no Pedestal Feminista", afirma.

Para Juliana de Faria, do site Think Olga, é importante que a causa seja ampla. "As mulheres são muito diferentes, precisa tentar abraçar a todas. Existe muita ignorância sobre o feminismo radical, por exemplo. Algumas ideias de algumas correntes podem ser entendidas como extremistas, mas essa percepção é equivocada, pois falta conhecimento mais profundo sobre os movimentos. Em comum, todas queremos empoderar mulheres. E, para isso, podemos trabalhar todas juntas", afirma.

Por que você é feminista?

Djamila Ribeiro, filósofa e blogueira do Escritório Feminista

Carol Marra, modelo e atriz

Marina Montali, analista de redes sociais

Clara Averbuck, escritora e fundadora do site Lugar de Mulher

Leonardo Sakamoto, jornalista e cientista político

Juliana de Faria, jornalista e fundadora do site Think Olga

É PARA LÁ que eu vou

"Empoderar" é outra palavra que saiu do armário para ajudar as mulheres na busca pela liberdade. "Uma mulher empoderada é uma mulher bem informada. Ela sabe dos seus direitos, entende o que é opressão e busca soluções para isso", define Juliana de Faria. A advogada Maria Ticiana Campos de Araújo compartilha dessa ideia. Ela acredita que muitas vezes as pessoas não percebem um ato de discriminação. "Fomos condicionadas a aceitar certos modelos de conduta. O conformismo nos protege da indignação", afirma.

Não há dúvidas que a igualdade de gêneros ainda tem muito a caminhar no mundo. E os movimentos feministas continuarão sendo a mola propulsora para desafiar o sistema e promover mudanças sociais que possibilitem essa nova relação entre as pessoas. Não se trata de defender uma "ditadura feminista" - o que, no final, só se aproximaria da dinâmica machista.

"O principal é que a mulher ainda precisa se preparar para assumir essa liberdade que vem vindo. E isso significa, a partir da consciência do seu papel social, assumir o comando pela construção da sua vida, sem preconceitos e padrões pré-determinados", afirma Maria Ticiana Campos de Araújo. "A mulher é livre para escolher se casar ou não, ter filhos ou não, cozinhar ou não, trabalhar fora ou dentro de casa", completa.

Ter o direito de optar é o principal foco dessa busca feminista por uma vida mais prazerosa para todos. E a questão afeta até aquelas mulheres veneradas, talentosas e que parecem ter tudo: no palco glamouroso do Oscar, Patricia Arquette, vencedora do prêmio de melhor atriz coadjuvante, usou seu discurso para mostrar que também não está satisfeita com a situação. "Dedico [o prêmio] a todo cidadão que já lutou por igualdade de direitos", disse. Porque o feminismo, seja pop, polêmico ou contestador, é fundamental.

Mariana Tramontina

Editora de Entretenimento do UOL. É feminista e leva a música de Cyndi Lauper como lema para a vida: "Girls Just Want To Have Fun"

tabuol@uol.com.br

A campanha "Who Needs Feminism?" foi criada por estudantes dos EUA em 2011. Desde então, ganhou versões pelo mundo com mulheres que defendem seu desejo de mudanças na sociedade.

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Esta reportagem também contou com apoio de:

Adriano Delgado, Andressa Nyitray, Rodrigo Ferreira, Taís Vilela, câmera. Carolina Ignacio, produção; Felipe Ramirez, maquiagem; RIEN, pinturas; Diego Gonçalves, Fany Élen, Lucas Solano e Tárcio Petrillo: atores; Denis Pose, desenvolvimento.
Agradecimentos: Mariane Zendron, Natália Engler, Natália Guaratto, Rayana Maltzeo, Renata Neves, Silvana Veloso,, Vanessa Barros, Vivian Ortiz, Restaurante Bello Bello, Academia Bodytech.

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