O FUTEBOL NO INFERNO

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TABELA TRÁGICA NO IRAQUE

Enquanto Saddam Hussein despejava armas químicas na cabeça de inimigos, um de seus filhos brincava de ser dono do futebol do Iraque nos anos 80 e 90. Sem atenção do Ocidente, Uday Hussein reduziu a praticamente nada uma geração de atletas ao impor seu universo sádico de prisões e torturas medievais. Nesse período, inicialmente como aliados e depois inimigos, os Estados Unidos não se importaram com o banho de sangue. O mesmo se aplica à Fifa, que ignorou os indícios repetidos de um dos capítulos mais vergonhosos do esporte mais popular do mundo.

Texto Bruno Freitas e Omar Almasri Design Hugo Luigi

O BRINQUEDO SÁDICO DO FILHO DE SADDAM

Você aí que anda meio depressivo no mundo corporativo, olhando discretamente para seu chefe por cima da baia, achando que ele anda pegando demais no seu pé... talvez você consiga amenizar esse sentimento incômodo ao conhecer o método de comando de um gestor que fez barulho recentemente, o senhor Uday Hussein. Com ele não tem papinho no café para tentar entender as necessidades de seu subordinado, nem qualquer brecha de diálogo. Não tinha, aliás. Com uma das cartilhas de administração mais sádicas que se tem notícia desde a Roma de Nero, o gerentão em questão afundou o seu negócio - e a si próprio.

Torturas das mais diversas, físicas e psicológicas, corrupção escancarada, manipulação e todo tipo de intimidação possível. Esse é o pacote Uday, que converte qualquer chefe odiado em atividade numa figura quase simpática. Filho de Saddam Hussein, o gestor violento recebeu o comando do futebol no Iraque na década de 80, quando tinha pouco mais de 20 anos de idade. Então, guiado pelo seu sadismo descontrolado e poder ilimitado da família, ele atirou no pé de atacante que perdeu gol, prendeu goleiro que tomou um frango e traumatizou praticamente toda uma geração de jogadores. Com vistas grossas da Fifa e das potências ocidentais, o monstro de Bagdá usou o esporte mais popular do mundo para construir seu inferno particular.

A história oficial diz que papai Saddam tem nas costas quase 2 milhões de mortes, incluindo ataques com armas químicas na Guerra Irã-Iraque e extermínio de vilas inteiras de curdos no norte do país. Então, com padrões de barbárie dessa estatura, torturar nos porões do futebol não parecia um grande pecado para Uday. E foi isso que o filho do ditador fez, literalmente, patrocinando centros de punição de jogadores inclusive dentro de estádios.

Uday Hussein não estava sozinho. Outros tiranos também corromperam o futebol de seus países.

O DIABO TEM UM SÓSIA

Não foi apenas papai Saddam que usou à exaustão o recurso de espalhar pelo Iraque e países vizinhos asseclas que fossem seu retrato fiel. Odiado pelos inimigos - assim como toda a família -, Uday decidiu recorrer ao mesmo expediente, mas não viveu para ver a saga de seu "dublê" virar filme

O ORIGINAL

Em 1987, com a guerra contra o Irã ainda em andamento, Uday Hussein resolveu reforçar sua segurança pessoal. Por isso, o filho de Saddam decidiu encontrar um dublê de corpo, uma espécie de escudo contra eventuais atentados. Ele lembrou de um colega de escola com quem se parecia muito. Então foi atrás de Latif Yahia, que virara um soldado do exército que combatia o Irã. De início, o militar recusou a proposta de atuar como sósia do filho do ditador. Mas, depois de ser preso, torturado e ouvir que suas irmãs seriam mortas, acabou ficando mais flexível - ele aceitou o desafio.

O SÓSIA

Latif Yahia passou por uma pequena cirurgia plástica para aperfeiçoar a semelhança com Uday. A partir daí, foi recrutado para atuar em situações estratégicas, arriscando a pele pelo chefe (ele escapou de 11 tentativas de assassinato). Ao mesmo tempo o sósia foi exposto ao mundo de luxo em que Hussein vivia, mas testemunhou cenas de barbárie contra rivais, mulheres e subordinados. Tudo isso turbinado por muitas drogas. O livro de memórias de Latif sobre a experiência inspirou a produção do filme "O Dublê do Diabo", lançado em 2011 no Festival de Sundance.

COMO O FILHO DE SADDAM APAVOROU UMA GERAÇÃO

Quando Uday Hussein assumiu o Comitê Olímpico do Iraque em 1984, o país vivia a guerra com o Irã. No Ocidente, os Estados Unidos morriam de medo da expansão do ideal da Revolução Islâmica iraniana, de 1979, e decidiram oferecer suporte estratégico a Saddam contra o país dos aiatolás. A maior potência do mundo inclusive fechou os olhos para as ações dos aliados iraquianos com armas químicas no conflito - mais do que isso, aliás, pois há evidências de que a administração Ronald Reagan tenha sujado as mãos para que Hussein tivesse condições de despejar material tóxico em cabeças inimigas. Era esse o noticiário da região na década de 80, sem margem de rodapé para o universo doméstico de perversidade de Uday.

Sem censura por perto, o filho do ditador passou a torturar sistematicamente jogadores que o desagradassem em campo. As punições físicas costumavam variar. Dependia da exigência do chefe. As decisões geralmente partiam do luxuoso gabinete de Uday no 7º andar do prédio do Comitê Olímpico. As mais triviais eram as agressões com barras de ferro na sola dos pés dos atletas. Entre as mais sofisticadas, um esportista que desagradasse o filho de Saddam poderia ser levado dentro de um baú e deixado por horas debaixo do sol numa região desértica.

Abusos, tortura e outras táticas de intimidação como raspar os cabelos dos atletas - uma ofensa moral grave no mundo árabe - aconteceram principalmente na ilustre prisão de Al Radwaniya. "Todos os jogadores da seleção nacional sentiam que ir à Al Radwaniya era iminente. E qualquer jogador ou pessoa que entrou nesta prisão entrou pela porta do inferno", diz Tariq Abdul Ameer, ex-jogador do clube Al Shorta.

Mas o líder supremo do esporte iraquiano não se contentava em ferir corpos e almas. A manipulação também fazia parte do rol de maldades do presidente do Comitê Olímpico. Jogadores não tinham a permissão para atuar no exterior a menos que pagassem 60% dos salários para o próprio filho de Saddam. Anos depois, Uday se envolveu na fundação do clube Al Rasheed, de trajetória meteórica nas disputas locais. "Um cartão vermelho para jogadores do Al Rasheed era proibido, vários dos gols deles foram anotados em clara posição de impedimento e cada estrela de times adversários era suspensa de alguma forma antes de enfrentá-los", recorda Salah Hassan, jornalista iraquiano.

TIRO NO PÉ E CHUTE EM BOLA DE CONCRETO

Para ter uma noção mais humana do que foi a tragédia do futebol iraquiano na era Hussein é preciso ir além da cabeça doente de Uday - deve-se mergulhar em experiências individuais de jogadores. O tratamento não distinguia craques de pernas de pau. Abbas Allaiwi foi uma estrela de seu tempo e certa vez ficou preso por 33 dias após cuspir em um árbitro. "Infelizmente para mim, Uday estava na plateia e eu fui informado que estava suspenso por um ano. Mas aquilo não era o suficiente para ele: me disse que eu não tinha sido respeitoso e que deveria ser disciplinado, então fui preso. Fui espancado com um cabo elétrico de 50 a 70 vezes todas as manhãs por seus executores pessoais", relata.

Mahmoud Hussain foi outro jogador talentoso do Iraque que teve o azar de ser contemporâneo do filho de Saddam. "Me aposentei precocemente por causa deste tipo de tratamento, no auge do meu jogo, quando eu fui baleado pelas forças do regime no meu pé esquerdo - o 'pé de ouro', como alguns chamavam. Ninguém perguntou sobre meus direitos como um atleta que representava a seleção nacional e clubes iraquianos", afirma.

A Fifa só se mexeria para ir atrás dos rumores de tortura no futebol do Iraque em meados da década de 90, quando recebeu a denúncia de que Uday torturou os jogadores da seleção nacional. O filho do ditador teria ficado enfurecido com o fracasso na classificação para a Copa de 1994 e ordenado que os atletas dessem chutes "pra valer" numa bola de concreto. No entanto, após uma inspeção oficial meses mais tarde, exames tardios e muita mentira, dois representantes da entidade alegaram não ter encontrado qualquer evidência de abusos.

A gestão de atrocidades de Uday à frente do futebol iraquiano começou a ser descortinada no exterior no fim dos anos 90, quando o ex-jogador Sharar Haydar fez denúncias sobre torturas ao jornal britânico "The Times". Mas somente a partir de 2003 o Comitê Olímpico Internacional e outras instituições passaram a se debruçar com seriedade sobre as barbaridades do período, encontrando evidências de pelo menos 50 assassinatos de atletas. Durante as investigações, uma câmara de tortura e instrumentos de punição foram encontrados na sede do Comitê Olímpico Iraquiano.

DENTRO DE CAMPO

Os primeiros anos da era Uday Hussein à frente do esporte do Iraque coincidiram com um auge histórico da seleção nacional no exterior, incluindo a maior façanha internacional do time

1984

Campeão da Copa do Golfo

Vitória sobre o Qatar na final

Campeão da Copa Árabe

Vitória sobre o Bahrein na final

1985
1986

Participação na Copa do Mundo (a única na história)

Brasileiro Evaristo de Macedo dirige o time no México

Campeão da Copa do Golfo

Vitória sobre os Emirados Árabes Unidos na final

1988
1988

Campeão da Copa Árabe

Vitória sobre a Síria na final

O MONSTRO RECUOU COM BRASILEIROS

Acredite, há quem veja méritos na cartilha Uday Hussein. Pois foi com ela em vigor que o futebol iraquiano conseguiu a maior façanha de sua história, a participação na Copa do Mundo de 1986, no México, até hoje a única aparição dos "Leões da Mesopotâmia" no torneio da Fifa. "Como goleiro do time de Uday, nós conseguimos resultados memoráveis em âmbito regional e continental. Eu fui punido, mas mereci, se você me perguntar", afirma Ahmad Ali, um ex-jogador da seleção nacional e do Al Rasheed, a equipe de Hussein.

Antigo ídolo de Barcelona e Real Madrid, o brasileiro Evaristo de Macedo também teve a chance de testemunhar o que era o futebol iraquiano no auge da era Uday. O técnico foi chamado em 1986 para levar a equipe nacional para a Copa do México. "Quis começar vida nova lá, não me preocupei sobre coisas passadas, não perguntava nada. E isso uniu os jogadores. Acho que a minha presença fez a influência dele (Uday) diminuir. Ele não se intrometeu muito, deu ampla liberdade", diz o veterano treinador.

Edu Antunes Coimbra é outro brasileiro que tem uma preciosa visão do que é o Iraque. Afinal, ele ajudou a classificar o país para a Copa de 1986 e, em 2011-12, voltou à seleção local para auxiliar o irmão Zico. Antes disso, na década de 80, chegou também a dirigir o time de Uday. Certa vez o técnico contrariou o filho de Saddam, que ordenou a substituição de um jogador no meio de uma partida - Edu teve sorte ao ver o atleta em questão decidir o jogo. Mas, fora esta "peitada", preferia não entrar na política local. "Havia problemas internos, jogadores que não atuassem bem ou que tivessem comportamento inadequado volta e meia sumiam dos treinamentos, voltavam carecas, com semblante abatido. A gente sabia que alguma coisa tinha acontecido. Mas são coisas que eu não me envolvi. Não fui lá pela coisa política, e sim pelo comportamento dentro do campo", relembra o irmão de Zico.

TABELA ENTRE BOLA E VIOLÊNCIA CONTINUA

A era Hussein passou, mas o futebol do Iraque segue acompanhado da violência que tomou conta do país e de toda a região, como ficou demonstrado na Copa da Ásia de 2015:

13

adolescentes foram mortos pelo Estado Islâmico em Mossul por assistirem pela TV ao jogo Iraque x Jordânia

89

pessoas foram feridas por tiros nas comemorações pela vitória contra o Irã, segundo dados do Ministério do Interior

2

pessoas morreram em Sadr atingidas por balas perdidas durante as comemorações pela vitória contra o Irã

1000

pessoas teriam sido levadas a hospitais após o jogo contra o Irã, pelo menos, de acordo com relatos extraoficiais

OS HUSSEIN SE FORAM, MAS O INFERNO SEGUE

O regime Hussein desabou em 2003 quando os EUA voltaram a invadir o país, anos depois do incidente Kuwait, desta vez atrás de "armas de destruição em massa". Uday foi morto junto a outros membros de sua família após um ataque em Mossul (já Saddam foi enforcado em 2006). Mas o desaparecimento da sanguinária ditadura não significou exatamente o começo de novos tempos para o povo iraquiano, pelo contrário. Influenciado pelos oito anos de ocupação americana, o cenário sócio-político nunca esteve tão fragmentado, num show de sectarismo, numa configuração que criou condições para a ascensão do Estado Islâmico, sem contar o êxodo e massacre de minorias étnicas e religiosas.

Pois é, o Iraque da vida real vai muito além do que o "Sniper Americano" de Clint Eastwood pode fazer crer. O terror ali é bem mais complexo do que uma cabeça ocidental pode conceber e segue pautando o cotidiano da nação. Em 2014, a ONU revelou que nunca o fluxo de jihadistas (aqueles que vão à guerra em nome do Islã) foi tão grande em direção aos conflitos do país, graças ao fascínio ideológico propagado pelo Estado Islâmico. O futebol local enfim se livrou dos tempos de tortura, mas não consegue ficar imune a esse cenário.

"Hoje se vê um esgotamento desse modelo de pacto de potências ocidentais com ditaduras locais. A Primavera Árabe deixou isso muito evidente. A relação com governos não democráticos não funciona mais. Isso esvazia o espaço de atuação política dos EUA no Oriente Médio, abrindo espaço para Rússia e outros atores regionais ocuparem essa brecha. Esse ciclo de violência não tem perspectiva de fim no Iraque, sempre alimentado por lideranças regionais. E quem sai prejudicada, mais uma vez, é a sociedade civil", analisa Murilo Meihy, professor de História Contemporânea da UFRJ.

Até o começo dos anos 90, a seleção nacional foi provavelmente o último símbolo de unidade nacional a vigorar na ditadura, agregando rivais sunitas e xiitas e mesmo simpatizantes da minoria curda. Mas, se violência de Uday Hussein não matou o futebol iraquiano, não haveria de ser o desastre político pós-Saddam que faria isso. Em 2007, nas mãos do brasileiro Jorvan Vieira, a seleção do país surpreendeu ao conquistar a Copa da Ásia. Já no começo deste ano, os homens de Bagdá conseguiram uma honrosa quarta colocação no mesmo torneio. Contagem de corpos à parte, a bola seguirá rolando entre o Tigre e o Eufrates.

Bruno Freitas

Colaborador do UOL. Quando chefe, não faz a linha "soco na mesa" para mobilizar comandados

tabuol@uol.com.br

Omar Almasri

Colaborador do UOL. Jordaniano-palestino, conta como futebol e política se misturam no mundo árabe

tabuol@uol.com.br

Esta reportagem também contou com apoio de:

Bruno Freitas e Omar Almasri, reportagem.

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