Adeus às armas

Ontem crime e castigo, hoje recomeço como trabalhadores: a busca dos jovens pelo caminho do bem

“Pega ladrão!”, gritou uma voz sem rosto nas redondezas do Metrô Itaquera, zona leste de São Paulo. Como um vírus, o bordão se espalhou em coro pelos populares enfurecidos que se juntavam aos policiais ferroviários na perseguição ao jovem em fuga. Chutes, socos, “rodos”: valia tudo para pegar o moleque que, arisco, desviava das rasteiras e levantava a cada “bica” recebida. Acelerado, o perseguido buscou abrigo no local onde renasceu: a Obra Social Dom Bosco, quase ao lado da estação de metrô. Deixando a multidão enfurecida, atravessou os portões amarelos aos berros de “Jucélia, eles querem me pegar e eu não roubei nada!”. O segurança tentou impedir, mas guardas invadiram o local. “Ele estava  roubando uma mulher no metrô!”, justificavam em frente aos quadros fixados na parede do corredor central - que ilustram o sonho no qual o sacerdote e santo católico João Melchior Bosco (conhecido como Dom Bosco) recebe uma bronca de Jesus Cristo, que diz “Não será com pancadas que transformarás esses jovens em amigos. Trata-os com bondade”.

Ignorando o aviso do Filho do Homem, os guardas de farda bege capturaram de forma truculenta o fugitivo de pele parda. O jovem era Leandro*. O nome que entrou gritando foi o de Jucélia, técnica que o acompanhava no Serviço de Medida Socioeducativa em Meio Aberto, após ter cumprido oito meses de internação na Fundação Casa por roubo à mão armada. Naquele dia, Leandro não havia roubado nada. Estava vendendo chocolates nos trens. Era a forma que havia descolado para levantar uma grana desde que havia saído da Fundação Casa, instituição do governo do Estado de São Paulo responsável por diretrizes e normas para o bem-estar do menor. Por ser uma prática ilegal, acabou sendo pego e teve a mercadoria confiscada. Revoltado pela apreensão e falsas acusações de roubo, surgidas após a descoberta dos seus documentos de liberdade assistida, Leandro saiu de uma sala pouco antes de ser formalmente liberado, pegou uma pedra e arremessou contra a vidraça da SSO (Sala de Supervisão Operacional) da estação Itaquera do Metrô. Foi o que iniciou a perseguição.
 

Quem são os internos?

RAPAZ COMUM

"A lei da selva é assim: clic, clac, bum, predatória. Rapaz comum.”, “Rapaz Comum”, Racionais Mc’s

Assim como Leandro fez por oito meses, outros 7.323 jovens no Estado de São Paulo cumprem medida socioeducativa de internação nas mais de 100 unidades da Fundação Casa espalhadas por capital e interior. Segundo as estatísticas, esses internos são em sua maioria homens (96,21%) e negros (68,6%).

O psicólogo Celso Takashi Yokomino revela em sua tese de doutorado pela USP (Universidade de São Paulo) que o jovem interno na Fundação Casa está atrás de dinheiro. Segundo esses dados, 62% dos internos já haviam realizado atividades remuneradas - quase o dobro da média de jovens que possuíam empregos na mesma época. O estudo também mostra que 31% deles já tiveram familiares envolvidos em atividades criminosas, 41% possuem um parente que utiliza álcool ou drogas ilícitas de forma excessiva e 31,2% já sofreram agressões severas por parte de pai ou padrasto.

A frieza dos dados ganha sangue nas veias quando conhecemos a história de Oliver*, que deixou a Fundação Casa no segundo semestre de 2016. Quem o buscou, naquele dia, foi seu pai, que confundia tratamento rigoroso com surras sempre que era  desobedecido. Em meio a pancadas, gritava: “Filho meu não vai ser ladrão!” A violência não vinha apenas do pai. Houve uma briga em que o irmão mais velho bateu a cabeça de Oliver no chão até provocar uma convulsão. “Desse dia em diante, ele não obedeceu mais ninguém”, lembra dona Ana*, 62 anos, avó paterna do jovem.

No dia em que Oliver deu adeus às grades, seu pai não o xingou, nem o surrou. A única expressão do patriarca foi do tipo “que bom que você saiu desse lugar horrível, meu filho”. A cena era uma repetição familiar. Segundo a avó Ana, o pai de Oliver também passou por sistemas de medidas socioeducativas na Febem, antecessora da Fundação Casa, depois de tentar roubar um carro em Guaianazes, também na zona leste.

A violência das estatísticas ganha cheiro de pólvora e sal de lágrimas quando Ana lembra da morte de outro filho, tio de Oliver, aos 21 anos. “Ele dizia que um carro preto o seguia há um tempo. Chegando em casa do meu serviço de limpeza, encontrei com ele na viela, brigando com uns homens. (Foi) quando um deles abraçou meu filho e colocou uma arma no seu peito. (Depois do disparo), ele veio correndo me abraçar e morreu nos meus braços”.  Recuperando o fôlego, dona Ana afirma que as companhias do neto melhoraram desde que ele saiu da Fundação Casa. Ela tenta apoiar essa mudança como pode. “Se eu vejo que é vagabundo chamando ele aqui, eu não tô nem aí: taco água em cima. Outro dia botei dois pra correr”, afirma.
 

 

Eles têm sonhos

JOVEM NA ESTRADA

“Um homem na estrada recomeça sua vida. Sua finalidade: a sua liberdade. Que foi perdida, subtraída. E quer provar a si mesmo que realmente mudou, que se recuperou e quer viver em paz, não olhar para trás, dizer ao crime: nunca mais!”. “Homem na Estrada”, Racionais Mc’s

O principal desafio para recomeçar a vida longe do crime e das grades é encontrar um trabalho que substitua o dinheiro que antes era provido por tráfico ou roubos. Oliver e Leandro estão nessa luta, cada um em um estágio. Oliver reclama da dificuldade de encontrar emprego. Ele faz bicos trabalhando de garçom. Já Leandro, com as mãos sujas de graxa, fala com orgulho do novo emprego em que foi efetivado há dois meses. Conseguiu o trampo como mecânico pneumático em uma cooperativa de transportes graças ao projeto Jovem Aprendiz, em que foi indicado enquanto ainda era assistido pelo Serviço de Liberdade Assistida na Obra Social Dom Bosco. Com carteira assinada, ele usa o salário para completar a renda da casa em que vive com quatro irmãos e sua mãe, a cobradora de ônibus Marli, 50.

“Quando eu estava na Fundação Casa, eu escrevia nas cartas que enviava para minha mãe que daria ‘dupla honra’ para ela, por conta da vergonha que fiz ela passar indo para lá”, diz Leandro. Muito antes de exibir o atual semblante feliz, Leandro empunhava pistolas e o caderno de contabilidade do tráfico de drogas. Leandro não era só vapor - aquele que vende no varejo - em uma das biqueiras em que traficava. Ele também era falcão, responsável por cuidar do local à noite e avisar caso avistasse patrulhamento policial.

O tráfico de drogas (43%) é o ato infracional mais cometido pelos adolescentes que cumprem algum tipo de medida socioeducativa em São Paulo, seguido pelo roubo qualificado (40,3%) e roubo simples (4%). Leandro teve experiência em todos. Apesar do começo no tráfico, o jovem foi preso com mais três adultos que tramavam assaltar uma casa de jogos de carteado. Como havia muita gente no local, trocaram o alvo por uma farmácia. Na fuga, com o carro parado por uma viatura da PM, os adultos foram presos e Leandro aprendido a poucos dias de completar 17 anos. “Eu era o único armado”, confessa. O jovem foi, então, internado na Fundação Casa.

TEM CHANCE?

A Fundação Casa surgiu com o fim da Febem, em dezembro de 2006. A antecessora era famosa por rebeliões, torturas e violências contra os menores. Com a nova instituição,  trocou-se a direção e foram demitidos 1.751 funcionários com intuito de “acabar com a tortura dentro da Febem”. Relatos de violência continuaram , mas o número de rebeliões despencou, assim como a reincidência dos internos na prática de crimes - de 29% em 2006 para 19% em 2016.

Para o desembargador Antonio Carlos Malheiros, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e consultor na Coordenaria da Infância e Juventude, o estado tem um dos melhores sistemas de medidas socioeducativas do país, mas ainda está longe de ser perfeito. O ideal, segundo ele, seria que cada unidade tivesse no máximo 50 internos. Contrário à redução da maioridade penal, o desembargador afirma: “Prisão não recupera ninguém, quem entra “ladrãozinho” na cadeia sai assaltante de bancos. Jogar jovens de 16 anos lá dentro é uma tremenda perversão.” Um dos principais argumentos dos defensores da redução são os crimes violentos cometidos por adolescentes. No entanto, os dados mostram que, entre os internos, a incidência desse tipo de ato é proporcionalmente pequena: 0,7% de  estupros, 0,8%  de latrocínios e 1,1% de homicídios qualificados.

O promotor de Justiça Fernando Henrique de Freitas Simões, do Departamento de Execução da Infância e Juventude, concorda com Malheiros. “Essa intervenção diferenciada para a juventude acaba obrigando o estado a investir em um grupo de adolescentes com inúmeras fragilidades sociais e psicológicas. Isso atenua a negligência do Estado na trajetória de vida anterior ao ato infracional. As chances de recuperá-lo aumentam muito.” Marli, mãe de Leandro, faz coro com os homens da lei. “O jovem que entra lá (na Fundação Casa), se quiser, tem a oportunidade de sair recuperado, pois há possibilidade de fazer cursos profissionalizantes. Acho que todos têm chance”, afirma.

A VIDA É DESAFIO

“É necessário sempre acreditar que o sonho é possível, que o céu é o limite e você, truta, é imbatível. Que o tempo ruim vai passar, é só uma fase e o sofrimento alimenta mais a sua coragem”,  “A Vida é Desafio”, Racionais Mc’s

É quase hora do almoço. Estamos na casa de Leandro desde a manhã. Seus irmãos acompanham toda a entrevista. Sua mãe também - para isso ela teve que faltar no serviço e terá que trabalhar no domingo, sua única folga semanal. Há 14 anos o pai de seus filhos morreu, e Marli se viu obrigada a sustentar a casa e educar os filhos sozinha. Hoje, dos 7 filhos, 5 moram com ela. A filha mais velha é casada, enquanto o filho mais velho cumpre pena no sistema penitenciário por tráfico de drogas.

Após anos de sofrimento, hoje Marli vive um momento de felicidade. Afinal, ela vê Leandro, seu terceiro filho envolvido com tráfico, conseguir reverter a situação.  “No primeiro dia em que o Leandro tinha que ir até a Dom Bosco, a família foi junto, levei todos os filhos”, lembra Marli sobre o primeiro dia em que acompanhou Leandro até o Serviço de Liberdade Assistida. O almoço está pronto: coxas de frango frito, arroz, feijão e uma grande travessa de salada. Todos sentam para comer, o botijão de gás ganha uma almofada em cima e vira a cadeira que faltava. “Tá todo mundo no mesmo barco aqui, o que um tem o outro também tem. Agora, se um escolhe fazer algo errado, é porque ele quer”, conclui Marli.

Em outra casa humilde da zona leste mora Oliver*, que luta para conseguir seu primeiro emprego na nova vida. Paredes sem reboco e tijolos à mostra na laje contrastam com a grande TV de LED fixada na parede. “Estamos reformando a casa”, explica. Oliver ficou internado na Fundação Casa durante 26 dias por roubo à mão armada. No segundo semestre de 2016 começou a frequentar a Obra Social Dom Bosco para cumprir a medida socioeducativa. Sua sanção acabou, mas Oliver continua a frequentar a Dom Bosco por conta própria. Ele relata, sorrindo e sempre olhando nos olhos de quem ouve, que gosta de conversar com as assistentes sociais e que os papos o acalmam.

O rapaz mora com a mãe, que tem uma lanchonete no bairro. O irmão está se formando em educação física e trabalha como personal trainer. Assim como Leandro, Oliver começou no tráfico, mas logo partiu para o assalto. “Comecei vendendo uma paranguinha, me envolvi numa lojinha aqui, outra ali, mas fui jogar no bigode (gíria que significa “fazer do meu jeito), né?”.

SENTI CULPA

Camisa e calça social, pasta embaixo do braço e óculos de sol. Assim estava Oliver no dia de sua apreensão pela Polícia Militar. Ele não procurava emprego -  apesar dos trajes darem a ideia, a pistola na cintura provava o contrário. “Eu roubava... mas essas coisas de bater e ficar toda hora ameaçando de morte eu não fazia. Não achava certo agredir”. A arma que Oliver usava no dia de sua apreensão tampouco poderia fazer mal a alguém. Era uma airsoft (arma de pressão que usa projéteis de plástico não letais).

“Eu preferia pegar as nave (carro) que estivessem no meio, de vidro aberto, roubava relógio, roupa, carteira. Eu vi uma BMW, acho que era X6, daquela cor azulão louco, sabe? Apontei a arma, mas aí o cara arrancou com o carro e fechou o vidro, ele deu a volta e saiu acelerando atrás de mim. Gritou “Pega ladrão!” e um monte de gente começou me perseguir, até que um cara de camisa vermelha e calça jeans sacou uma arma e colocou na minha cara. Clac! Clac!”. Era um policial a paisana.

O remorso visitou Oliver já na delegacia. “O cara veio (me reconhecer), olhou para mim e assinou a ficha, na minha frente. Aí, passou a mão na minha cabeça e falou: ‘Fica com Deus’. Sei lá, eu estava roubando e ele diz isso. Me senti culpado.” Mas foi na Fundação que Oliver realmente se arrependeu do que fez “Chegando lá, vi que o bagulho era louco. Tem hora para tudo!”. A internação faz muitos internos refletirem. “(N)o tempo de confinamento você conhece você mesmo, vê onde errou, onde acertou e como pode melhorar”, afirma Leandro, que hoje cursa o primeiro ano do ensino médio. Depois de oito meses internado, ele ganhou o direito de cumprir a sanção no meio aberto.

PEDIDO DE SOCORRO

O caminho de Leandro, no entanto, não foi uma linha reta. A dificuldade para conseguir emprego e a instabilidade nos serviços que conseguia o fizeram voltar para o tráfico de drogas. Próximo de completar 18 anos, ele sabia que tinha que desacelerar, senão acabaria preso ou morto. Em uma carta escrita e entregue na Obra Social Dom Bosco, como um pedido de socorro, o jovem implorou ajuda e falou até mesmo na possibilidade de trocar sua liberdade assistida pela semiliberdade, medida em que seria obrigado a voltar a dormir na Fundação Casa.

“Minha vida não tem sido fácil, trabalhei por uma semana e fui mandando embora, fiz diversas entrevistas, porém, nada deu certo. Achei que iria me levantar novamente, veio algo e me derrubou… 2016 está sendo o pior ano da minha vida, por minha causa mesmo, por minhas próprias escolhas e minhas atitudes. Hoje, decepcionado comigo, olho para o meu passado e vejo muito sofrimento e também olho para o futuro e vejo muito sofrimento.(...) Não aguento mais chegar de manhã, virado na maioria das vezes, e ver minha mãe triste, ouvi-la me xingar e meus irmãos me julgarem pelo que faço. Minha maior preocupação é não saber se estarei vivo (no meu aniversário), por estar nessa vida. Peço perdão por ter desperdiçado seus votos de confiança em mim, senhor promotor, senhora juíza. Não sei se, na cabeça de vocês, eu sou só mais um moleque, mais um bandido, mas recorro a vocês que têm poder e capacidade para me ajudar. (...)” (trechos retirados da carta).

Leandro morreu uma noite após seu aniversário de 18 anos. Ao menos para o crime. Foi seu último dia como falcão na venda de drogas. Na manhã seguinte, entregou as armas, as drogas, o caderno de contabilidade e disse que iria passar um tempo em Campinas na casa de uma tia. Na verdade, ele iniciaria sua jornada pelo Shopping Trem marretando como vendedor ambulante pelos trilhos de São Paulo. Foi assim até ter sua mercadoria apreendida como contamos no começo deste TAB.

Mas o que os traficantes acharam da mudança de Leandro? Mesmo tendo ficado em São Paulo, era difícil encontrar seus ex-patrões na rua. “Eu acordava cedo ia marretar no trem, voltava só à noite e malandro acorda só depois do meio-dia, né? Então nem trombava com ninguém. Hoje, eles até sabem que tô trampando. Eu conseguia R$ 800 por semana vendendo no trem. Era o mesmo que eu recebia na biqueira. Melhor vender no trem, eu não tenho que ter vergonha disso”.

Pouco depois de procurar abrigo na Obra Social Dom Bosco, fugindo dos policiais ferroviários, Leandro conseguiria o trabalho como jovem aprendiz, que se transformaria em um emprego com carteira assinada. Ele aproveitou um dos seus primeiros pagamentos para ir até o McDonald’s comer um lanche. Na hora de acertar a conta, percebeu que seu dinheiro estava todo sujo de graxa. A atendente da lanchonete ficou olhando as manchas negras nas notas, mas Leandro nem ligou. Ficou pensando sozinho “esse dinheiro todo sujo é o mais limpo que passou na minha mão nos últimos tempos”. Mais um passo do ex-interno no caminho do bem.

 

*nome alterado a pedido e para preservar o entrevistado
 

Topo