Humano baldio

# 54
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Moradores de ruaOs sonhos
e a realidade

Texto Felipe Pereira

Fotografia Reinaldo Canato

Design René Cardillo

Não existe ser humano que desconheça o amargor da rejeição. Mas para alguns essa sensação é permanente. Talvez por isso que moradores de rua sejam tratados como seres invisíveis. Encará-los é se defrontar com solidão, culpa, vergonha, abandono. É uma combinação de sentimentos que todos querem evitar.

Mas a existência sofrida nem sempre apaga os sonhos. Mesmo de pessoas fragilizadas. Algumas delas serão apresentadas a você neste TAB. Gente que aspira por afeto e dignidade, ou pelo menos uma parte disso. Quase ninguém parece disposto a conceder atenção a seres humanos enrolados em um cobertor no canto de uma calçada. Mas a empatia da sociedade poderia significar menos preconceito e alguma oportunidade.

Não seria pouca coisa.

1

Max e a fugaMedo do coração

Fugir se tornou a única maneira de evitar um crime. Max não seria vítima, mas autor. O mal se tornaria fato pelas mãos dele. Por isso o pânico. Viver nas ruas lhe pareceu menos trágico do que provocar sangue e lágrimas

Conheça o Max

Max e a fugaMedo do coração

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Consciente da violência que carregava consigo, o russo Fiódor Dostoiévski transformou esse sentimento em literatura. Max não tem habilidade com as palavras, mas compartilha da mesma personalidade. Aflito, bateu em retirada. Ele não fugiu de Bom Jesus dos Perdões (SP); fugiu da tentação de matar o tio.

Max se vê como o cara que num acesso de fúria pode cometer uma "besteira", eufemismo para homicídio. A ciência chama de transtorno explosivo intermitente, situação associada a uma criação severa e violenta. A criança desenvolve um desejo de vingança que pode ser alimentado pelo consumo de conteúdos ligados a esse conceito.

Max acredita que seu caso tem cura. Acha que quando o tio morrer o lado negro de seu coração vai se purificar. Até este dia continuará perambulando pela avenida Paulista.

Eu saí andando por aí para evitar coisas piores. Acabei vindo morar na rua, mas para eu não fazer coisa errada. A gente não conhece nosso coração.

70%

possuem um trabalho

16%

costumam pedir ajuda

Desconfiança versus comoção. Ninguém deve ser condenado por tentar ajudar, mas na verdade trata-se de paliativo. Uns trocados não resolvem nada, e o que pode fazer diferença é procurar o sistema de assistência social por meio do Centro Pop ou Centro de Referência Especializado de Assistência Social.

2

Daiane e a culpaLágrimas de impotência

Chorar por um erro pode demonstrar os valores de um indivíduo. Mas a consciência de que está prejudicando a própria vida e causando sofrimento a pessoas amadas acabam aumentando a dor de quem faz do crack um parceiro do cotidiano

Conheça a Daiane

Daiane e a culpaLágrimas de impotência

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Daiane chorou durante quase toda a conversa com o TAB. Cada pergunta que resvalava em assuntos familiares terminava em lágrimas. Com uma sinceridade impactante, contou sobre a culpa em seu coração. Falou sobre o sofrimento que o crack causa.

A dor maior é sempre sobre os parentes. A dependência priva Daiane de ver Isabella, filha do primeiro casamento e que, aos 16 anos, irá se mudar em breve para os Estados Unidos. A outra filha tem um ano e meio e mora com a avó paterna. Depois que vendeu eletrodomésticos, móveis e roupas, Daiane abandonou a casa e a criança em abril.

É a terceira vez que Daiane fica sozinha com as drogas. Pelas experiências anteriores, ela afirma que a partir do tratamento começa um processo de recuperação dos valores e retorno dos familiares. É como nascer de novo, resume. Mas Daiane se diz sem forças para tentar voltar a viver outra vez.

Meu sonho é acordar de manhã, ir trabalhar, almoçar com os amigos, limpar minha casa, lavar roupa, assistir a uma televisão, dormir no quente.

35,5%

admitem sofrer com problemas de álcool e drogas

Ver a pessoa amada definhando machuca e a vontade de internação forçada é tentadora. Mas a política nacional para moradores de rua defende que a medida não deve ser tomada sem anuência do indivíduo. Caso aceite, o primeiro passo é procurar auxílio profissional.

O sistema público tem duas ferramentas. O Serviço de Abordagem de Rua faz a triagem e encaminha para tratamento. O Consultório na Rua é para remediar os problemas de saúde.

3

Cassio e a ilusãoVisão distorcida

Cassio reconhece que sua relação com o álcool é errada. Nada além do óbvio: são dez anos bebendo. O discernimento para aqui. Mesmo consciente dos malefícios, encontra justificativa para tudo. Até considerar a calçada mais confortável que a própria casa

Conheça o Cassio

Cassio e a ilusãoVisão distorcida

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Cassio estava tão esparramado na calçada que parecia desmaiado. Era a preguiça depois do almoço, potencializada por ter enxugado uma "barrigudinha", cachaça de R$ 4 vendida em garrafa de plástico. A Cassio não se aplica a máxima de que a bebida entra e a verdade sai. Ele relutou em assumir que morava na rua. Mas, em seguida, embalou e disse que é desses que joga a real. Pediu dinheiro e deixou claro: era para comprar bebida.

Mesmo dormindo enrolado num cobertor sujo e fazendo a mochila de travesseiro, Cassio se diz mais feliz do que no conforto e amor de casa. A psicologia ensina que uma década de vício leva um indivíduo a um estado alterado de consciência. O estilo de vida prejudica a saúde física e mental, mas a pessoa age como se fosse movida por uma força mágica. Assim, encontra justificativa para qualquer atitude.

Cassio sabe que não consegue passar 24 horas sóbrio, mas não perdeu a esperança. A velhice de seus sonhos tem uma cadeira no quintal e netos correndo ao redor. "Eu acredito em milagres."

Agora eu tô pegando as [mulheres] que eu posso. Todas. E o resto vai para lá. As que não gostam de mim, fazer o quê? As que gostam eu passo a régua.

13,3%

têm a enfermidade mais comum deficiência cardíaca

30%

apresentam problemas de saúde

Como qualquer ser humano, os moradores de rua têm direito por lei a atendimento médico. Não precisam mostrar documentos ou comprovante de residência. Em caso de recusa da unidade de saúde, deve-se acionar os serviços de assistência social ou mesmo a Defensoria Pública. Também há unidades móveis que vão até os moradores de rua, o Consultório na Rua.

4

Silvia e a féSofrimento e salvação

Silvia cresceu numa favela de Fortaleza. No Ceará tudo que fazia era trabalhar. Lavando roupa, sendo faxineira e manicure, só tinha dinheiro para comer. Agarrou-se à fé e em nome dela se mudou para São Paulo. Descobriu duas coisas: a rua e os dias que não tem o que comer

Conheça a Silvia

Silvia e a féSofrimento e salvação

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Silvia se define como uma pregadora. Mesmo que as pessoas não reparem, ela espalha a palavra de Deus nas calçadas de São Paulo. Outras vezes sai a caminhar pela cidade em busca de conhecimento. Conta que cursou apenas a primeira série do primário. Não conhece o alfabeto. Diz que aprendeu o bê-á-bá para ler a Bíblia.

Ela mostra não hesitar diante de provações. Quando a fome aperta, faz do lixo sua geladeira. Se encontra comida num recipiente fechado, a refeição está servida.

"Eu me sinto feliz, porque não tinha nada para comer", afirma.

Analisar o caso pelo ângulo da psicologia faz lembrar que a fé também pode levar a um estado alterado de consciência. A vida é tão dura que aguentar o dia-a-dia exige justificativas. O fiel acredita que quando morrer será recompensado ou que, ainda em vida, será premiado por Deus com uma existência terrena feliz.

Minha vida [no Ceará] era só trabalho, só trabalhando. E depois que eu aceitei Jesus eu ia para igreja e da igreja para o trabalho. Não tenho muito o que falar não.

54,5%

tentaram entrar num local, mas foram impedidos

Não existe cidadão de segunda classe, e um morador de rua tem os mesmos direitos de qualquer pessoa.

Não há justificativa para expulsão, principalmente de locais públicos de livre acesso. Qualquer indivíduo que se incomode pode mencionar estes argumentos para questionar a decisão na hora

A visão e o registroOlhar das ruas

O TAB convidou moradores de rua de São Paulo para trabalharem como fotógrafos. Eles produziram imagens de acordo com a perspectiva que têm da vida na metrópole. As melhores fotos você vê neste álbum.

Veja as imagens
5

Robert e a redençãoChaplin das ruas

O futuro se apresentava promissor. Em um ano e meio, Robert teria dois diplomas. O álcool desviou o homem do caminho. Quando a vida voltou aos trilhos, 17 anos depois, a paisagem não era mais verde. Mas ele ainda acredita que no fim encontrará um pote de ouro.

Conheça o Robert

Robert e a redençãoChaplin das ruas

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Experimentar a rejeição transforma a volta por cima em desafio. É um sentimento que pode ser a tábua de salvação para uma pessoa solitária. Para Robert, isso é mais forte porque foi ele o causador do próprio infortúnio. Falamos de um morador de rua singular. As lojas doam os jornais diários para ele. O homem gosta de se manter informado.

Mas isso é diferente de ser feliz. Robert sonha com o café da manhã perfeito, aquele das propagandas de margarina. No mito da família feliz, parentes nunca brigam nem acordam de mau humor. O raciocínio fica mais forte quando combinado com o passado - a memória é perita em moldar as lembranças. As coisas boas ficam incandescentes. As ruins, se apagam.

O que aconteceu e o que está por vir estão idealizados. O prêmio final pode não estar na linha de chegada, mas a combinação fará a pessoa percorrer todo o caminho. Mas existe um atalho. Como nunca desistiu, Robert joga toda semana na loteria. "Ainda quero andar de Camaro amarelo", afirma.

Eu não vou ficar roubando nem pedindo pela rua como tem muitos. Meu pai era militar e minha mãe evangélica. Minha educação foi ortodoxa.

27,5%

trabalham com reciclagem

A sugestão é condomínios e empresas fazerem um acordo com catadores de recicláveis. As pessoas separam o lixo e combinam datas para o material ser recolhido.

Locais com muita produção podem procurar cooperativas de catadores de recicláveis que contam com maior estrutura para remoção. O Movimento Nacional de Catadores de Recicláveis pode ajudar

6

Saulo e a vergonhaMaloqueiro modelo

O nome de todo mundo pode vir acompanhado de um apelido, uma frase, um conceito. Caso tivesse uma vida considerada normal pela sociedade, Saulo seria "o " corintiano fanático. Mas o nome dele é precedido de palavras e expressões nada edificantes, como craqueiro, noia e ex-privado (ex-preso)

Conheça o Saulo

Saulo e a vergonhaMaloqueiro modelo

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Saulo esticou seu cobertor a duas estações de metrô de onde vários parentes moram, inclusive os seus dois filhos. De acordo com o Google Maps, o trajeto pode ser cumprido em 15 minutos. Mas o caminho é muito mais longo. Saulo não está separado da família pela distância. É pela vergonha.

Ter a consciência que terá de explicar o motivo dos anos de ausência apavora Saulo. Nenhum pai quer chegar diante dos filhos e se apresentar como viciado, ex-detento e morador de rua. Essa condição é o que ele aponta como vergonha - saber que vive numa situação reprovada pela sociedade.

Os filhos são o ponto mais fraco do ser humano e aumentam a angústia de Saulo. Ele tem certeza que será aceito pelos parentes, mas teme que a anuência seja acompanhada de pena. Prefere ficar longe.

Hoje minha família são esses dois [cachorros]. A minha felicidade é de repente retirar um documento. Arrumar um local pra mim, minha mulher e meus cachorros.

29,1%

têm histórico de briga familiar

Emoções dos dois lados estão envolvidas, e os sentimentos podem atrapalhar, por isso o auxílio profissional é importante. Os assistentes sociais e psicólogos seguem uma metodologia testada de reaproximação.

Eles podem ser acionados por meio do Centro Pop e Centro de Referência Especializado de Assistência Social de cada cidade.

7

Elias e a solidãoBlack drama

Elias é apegado aos livros. Diz que gostaria de ter mais exemplares. Sempre pensa em escrever um e até tem algumas páginas rascunhadas num cadermo. Se um dia publicar sua biografia, quer que o título seja "Black drama". Usar expressões em inglês é a cara do Elias

Conheça o Elias

Elias e a solidãoBlack drama

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Quando percebia que o TAB ia se despedir, os olhos de Elias perdiam o brilho demonstrado durante a entrevista em que falava pelos cotovelos. Ficar sempre sozinho perturba. Não ter alguém para cuidar e ser cuidado faz o indivíduo se sentir rejeitado, abandonado.

É comum a busca por algo que preencha esse espaço. No caso dos moradores de rua, os subterfúgios mais comuns são cachorros, promiscuidade ou drogas. Um dos alívios de Elias é escrever cartazes em inglês. Para tentar provar o domínio da língua, ele sacava um livro e mostrava que o título foi traduzido errado.

É um paliativo, mas ele diz que a solução é um emprego e a certeza que em determinado dia pingará o salário. Daria para comprar coisas e quem sabe até arranjar uma companheira.

Eu procurei emprego o tempo todo, fui na igreja e pedi só faxina, lavar banheiro da igreja só para morar lá. Não me deram emprego, não me ajudaram. Me desanimei de igreja. Eu creio em Deus. I believe in God

31,3%

contam que não comem todo dia

14%

contam que não têm fonte fixa de comida

Nenhum ser humano deveria precisar pegar comida do lixo.

Belo Horizonte dá exemplo. Criou uma solução e cadastrou os moradores de rua que passaram a ter refeições grátis nos restaurantes populares da cidade. O acesso é garantido com um cartão de identificação.

Não há restrição para você fazer sua parte ajudando uma ONG da sua cidade ou saciando a fome de um morador de rua próximo a você

Felipe Pereira

Repórter. Ajuda doando comida e ao sair de casa cumprimenta Rubens, seu vizinho morador de rua

Reinaldo Canato

Fotógrafo. Aprendeu que um sorriso, uma palavra e sua atenção valem mais que esmola

René Cardillo

Diretor de arte. Aprendeu que os moradores de rua são mais carentes de atenção que de dinheiro

Danillo Sperandio

Videomaker. Acredita que não se nega a ninguém um prato de comida e alguns minutos de conversa

Esta reportagem também contou com apoio de:

Oppa; Banca das Apostilas; Claudia Cotes; Anjos da Noite, ONG que distribui refeições, roupas e cobertores para moradores de rua; Junior Lago, fotógrafo; Lucas Lima, fotógrafo; 7Irisfilmes, câmera; Carlos Alberto Ricardo Junior, coordenador-geral dos direitos da População em Situação de Rua da Secretaria dos Direitos Humanos; Sergio Kodato, professor de Psicologia Social da USP.

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