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Por que Black Mirror choca cada vez menos?

Representativa matéria Black Mirror  - Arte/TAB
Representativa matéria Black Mirror Imagem: Arte/TAB

Kaluan Bernardo

Do TAB, em São Paulo

17/06/2019 04h00

Desculpem o clichê: "O mundo é muito Black Mirror, meu". Ou, talvez, seja mais apropriado dizer que "Black Mirror é muito esse mundo" já que, cada vez mais, está difícil saber se é a vida que imita a arte ou o contrário.

Em um episódio da nova temporada, um homem cansado dos vícios em uma rede social faz de tudo para falar com seu CEO. É difícil, no entanto, encontrar o executivo, que estava em uma montanha fazendo retiro de silêncio e refletindo sobre o monstro que criou. Aos mais antenados no noticiário de tecnologia, tudo parece uma sátira de Jack Dorsey, CEO do Twitter - que fez o mesmo no final de 2018. Só tem um problema, como alertou a revista Wired: Dorsey anunciou o retiro em dezembro, quando o episódio já havia sido gravado.

Poderia ser apenas uma coincidência enorme, mas há outras. "Nosedive", o primeiro episódio da terceira temporada, imagina um mundo onde todos podem dar notas para todos. Quando foi ao ar, muitos pensaram no sistema de pontuação da Uber, mas Brooker disse que teve a ideia em 2008, quando a empresa ainda nem existia.

Poucos meses após a estreia do episódio, a China anunciou que estava criando um programa de crédito social, no qual - veja só - todos os cidadãos têm uma nota de acordo com o seu comportamento. Os direitos de cada um são relacionados à pontuação. Diferente do seriado, no entanto, no caso chinês a nota é dada pelo governo, que usa vigilância constante com tecnologias de reconhecimento facial. Black Mirror não foi tão longe.

Há vários outros paralelos. Na segunda temporada, há o episódio "Waldo Moment", no qual um personagem de desenho animado começa a ganhar destaque por ofender tudo e todos. Seu discurso antipolítico funciona e ele concorre à presidência. O episódio foi ao ar antes mesmo de Donald Trump se candidatar. No dia da eleição de Trump, o perfil oficial no Twitter de Black Mirror precisou anunciar: "Isto não é um episódio. Isto não é marketing. Isto é a realidade".

O espelho invertido

O nome "Black Mirror" ("espelho preto", em tradução livre) é uma referência às telas dos dispositivos eletrônicos, que funcionam como um espelho negro quando eles estão desligados.

Se no início, as pessoas se chocavam com o reflexo da sociedade exibido pelas tecnologias no seriado britânico, hoje esse efeito parece cada vez menos poderoso - já que o mundo está superando a ficção. Em sua crítica à terceira temporada, a revista Wired, provoca: "Black Mirror não está surpreendendo mais. Estamos ferrados".

A incapacidade de chocar também aparece na queda de popularidade da série. A quinta temporada, que estreou no último 5 de junho na Netflix, tem o episódio mais mal avaliado. "Rachel, Jack and Ashley Too" amarga apenas uma nota 6 no site IMDB. Os outros dois capítulos, "Striking Vipers" e Smithreens" também não estão bem (7 e 7,7 respectivamente) fazendo com que a temporada fique com uma média de 6,9 (menor do que todas as outras, que orbitam entre 8 e 8,3).

Na crítica especializada, a diferença é semelhante: no Rotten Tomatoes, que reúne diferentes resenhas, a nova temporada tem apenas 66% de aprovação, enquanto a média geral é de 83%. A página indica também que, desde o início, a avaliação do seriado só cai - embora se mantenha positiva.

O fato de a realidade ter se tornado mais distópica do que a ficção também fez com que Black Mirror resolvesse apostar em novos tons, com finais um pouco mais "otimistas", como em "San Junipero", no qual a tecnologia ajuda duas mulheres se amarem em uma dimensão virtual, em "Hang the DJ", em que um casal se apaixona graças a um algoritmo.

Black Mirror Zuckerberg Dorsey - Arte/TAB - Arte/TAB
Mark Zuckerberg e Jack Dorsey foram inspiração para personagem de Black Mirror
Imagem: Arte/TAB

Em entrevista à revista britânica Huck, Brooker, confessa que assumiu o tom mais otimista por conta das mudanças no mundo. "Quando outras pessoas começam a se preocupar muito, eu tento diminuir a minha preocupação. De forma contrária, eu passo a olhar por um ponto de vista otimista", diz. "Então você percebe que o mundo está uma merda. Estamos tão bombardeados com notícias (...) que tudo parece uma emergência e uma crise", comenta.

Em resposta a um fã que o questiona sobre o otimismo na série, o criador ainda diz: "se você quer tornar o final feliz em um infeliz, simplesmente ligue em algum jornal quando os créditos rolarem".

O presente e o passado são muito Black Mirror

* A partir de agora, spoilers sobre a quinta temporada*

O TAB pediu para especialistas explicarem o que há de realidade e de presente nos novos episódios de Black Mirror. Spoiler: muito.

"Striking Vipers", por exemplo, funciona como uma perfeita alegoria à pornografia na internet. No episódio, dois amigos começam a jogar um game de luta em realidade virtual no qual é possível sentir no corpo as sensações causadas aos personagens dentro do jogo. Não demora muito para eles descobrirem que, melhor do que trocar porrada, é trocar fluídos com muito sexo.

A questão é que um dos amigos usa uma personagem mulher, e o outro, um homem. Gostar de transar com um cara virtual, usando e sentindo como se estivesse no corpo de uma garota faz de você um homossexual? Transar com uma personagem fictícia, controlada pelo seu amigo, configura adultério em um casamento? É possível ter uma sexualidade diferente na fantasia de um game e na vida real? Esses são alguns dos questionamentos levantados pela série.

Para Mayumi Sato, blogueira no Universa e diretora de marketing do Sexlog, rede social para sexo, esses questionamentos são atuais. "O episódio mostra comportamentos que já fazem parte da nossa rotina. Só não temos o mesmo avanço tecnológico ainda, mas aquelas questões são presentes", comenta.

Ela cita como exemplo a cultura Yaoi no Japão, que consiste em desenhos homoafetivos, mas no qual os garotos têm traços afeminados. "Muitas garotas consomem essa pornografia se imaginando o lugar dos garotos", comenta. Tal como nos homens de Black Mirror, "as pessoas têm empatia sexual com os personagens, mesmo eles não sendo parecidos o suficiente com você. Aí permite experimentar coisas que fogem da sua 'normalidade'. Naquela outra figura, talvez seja mais aceitável", diz.

"Possivelmente seja até por isso que as pessoas consumam pornografia com atores com corpos tão fora do padrão - é mais fácil fantasiar com uma mulher que é quase irreal", reflete.

Black Mirror Pornô - Arte/TAB - Arte/TAB
Black Mirror cria alegoria a pornografia online
Imagem: Arte/TAB

Para Sato, o episódio é um exemplo de como a tecnologia pode nos ajudar a avançar o debate sobre sexualidade. "O desejo e o tesão vão além de caixinhas fechadas. Uma pessoa que fantasia com alguém do mesmo gênero não necessariamente é homossexual ou bissexual. E acho que a série mostra bem isso com sutilezas", comenta. Ela cita o momento no qual um dos personagens transa com uma garota, que não chega ao orgasmo. Então ela vira e assiste pornô no celular. "Qual a diferença entre ver a pornografia e transar dentro do jogo?", questiona.

Mas, mais próximo ainda do mundo real, é o segundo episódio, "Smithreens". Para o doutor em comunicação e semiótica, Marcelo Santos, o roteiro é tão verossímil que "poderia facilmente ser um documentário contemporâneo. Ele foge da proposta de pensar o futuro e discute o presente. É um retrato nada exagerado do que já vivemos", diz.

No episódio, um homem se frustra por ter perdido sua esposa em um acidente de trânsito. O evento aconteceu porque ele estava desconcentrado graças ao vício em redes sociais. Para vingar-se, sequestra um funcionário da companhia com o objetivo de conseguir se comunicar com o criador da rede social e, então, se suicidar.

O personagem critica o tempo que as pessoas passam conectadas aos smartphones. Para Santos, essa crítica soa datada. "Ele discute um paradigma que é até velho, o da Matrix. Ao passo que trazemos assistentes de voz, wearables e outras tecnologias, essa divisão entre online e offline já perde o sentido. A conexão é constante e cada vez menos perceptível", comenta.

No entanto, há um outro aspecto da provocação do protagonista, que continua um tanto atual: como as redes sociais são construídas para nos manter presos nelas. Essa é uma ideia que tem ganhado muito destaque graças ao ex-funcionário do Google, Tristan Harris. "Ele fala exatamente como os mecanismos de notificações, de engajamentos, são feitos para o usuário ficar o mais ativo possível nas redes sociais. É uma crítica que tem causado muito impacto no Vale do Silício", comenta Francisco Brito Cruz, diretor da ONG InternetLab, que discute tecnologia e direito.

Hey Alexa, have you met Ashley Too? #blackmirror #netflix #racheljackandashleytoo

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Outro momento do episódio que encontra paralelos bem semelhantes à realidade é o momento em que os executivos da rede social mostram para a polícia que eles sabem tudo sobre o protagonista apenas cruzando alguns dados. "Essa cena é muito factível. Nossos dados estão depositados sob a tutela de muitos agentes privados que, com certeza, sabem mais de nós que a polícia", comenta Cruz. "Me espanta quando as pessoas dizem que a internet é terra do anonimato. É o contrário: a internet é o maior desafio ao direito da privacidade que já surgiu", diz.

O terceiro episódio, que tem Miley Cyrus como protagonista, imagina uma robô com a inteligência de uma cantora pop. Apesar de ter semelhança com assistentes virtuais, como a Alexa, que têm dominado o mercado, o episódio é o mais futurista de todos. E tem o tom mais diferente de todos - soando até uma aventura de Sessão da Tarde, com direito a final bem feliz. Ele deixa dois recados claros: 1) os criadores da série ainda estão apenas se divertindo em imaginar situações bizarras; 2) ainda há esperança no futuro.