Topo

Por que direita e esquerda usam desenhos japoneses para falar de política

Ilustrações publicadas no Twitter com traço de anime com as figuras de Lula e Jair Bolsonaro - Reprodução/autoria desconhecida
Ilustrações publicadas no Twitter com traço de anime com as figuras de Lula e Jair Bolsonaro Imagem: Reprodução/autoria desconhecida

Kaluan Bernardo

Do TAB

09/11/2019 04h00

Naruto Uzumaki é um garoto que sofre o desprezo de seus conterrâneos. No entanto, ele sai em busca do sonho de ser o líder de sua aldeia ninja. Apesar de ser atrapalhado e ingênuo, com a ajuda de seus amigos ele descobre que é extremamente poderoso e alcança seus objetivos. Naruto é um personagem ficcional de desenhos japoneses, mas está cada vez mais vivo no mundo político — seja no Twitter de Bolsonaro, seja nos protestos do Chile.

Se por muito tempo as animações (animes) e quadrinhos (mangás) japoneses foram considerados cultura geek, de nicho, hoje são tão relevantes quanto outros elementos da cultura de massas.

Nas manifestações contra o aumento do transporte público no Chile, vários "otakus" — como são conhecidos os fãs de desenhos japoneses — foram às ruas com roupas, cartazes e frases de ordem que remetiam às animações. Nas ruas, cantavam versos como "Se o que deseja é poder voar, é só confiar muito em você e seguir / Pode contar comigo, eu te dou todo o meu apoio", da música de abertura de "Digimon", em espanhol. Muitos deles foram chamados por um grupo conhecido como "Brigada otaku antifascista".

Se, na vizinhança, os ícones dos desenhos japoneses emergem nas ruas, por aqui Bolsonaro mostrou que eles também podem ser utilizados institucionalmente. Ao menos duas vezes, o presidente acenou aos otakus, inclusive divulgando uma arte que o comparava a Naruto.

Valores do Oriente, política do Ocidente

Para Monica Rebecca Ferrari Nunes, professora e pesquisadora em comunicação, consumo e memória na ESPM, a dimensão política é consequência natural do crescimento da cultura otaku. "Eles estavam aí desde 1990, mas foram ganhando mais reconhecimento. Hoje, com o tamanho que essa cultura adquiriu, é algo assumido socialmente e, portanto, os jovens se sentem à vontade para se expressar. Eles estão nas ruas como já estão nas novelas, na publicidade etc.", diz.

Há valores morais comuns em produções japonesas, que conversam com o debate público. Os dois principais são coletividade e honra, segundo Mayara Araujo, doutoranda e pesquisadora de cultura asiática na UFF (Universidade Federal Fluminense). "As produções japonesas falam muito sobre não desistir, sobre o poder de se unir. Quando personagens juntam forças, eles se tornam melhores", comenta. "Talvez não seja intencional, mas a ideia de ir junto para a rua, em massa, para ter mais chances de vitória, dialoga muito com a cultura otaku", diz.

Esses valores, no entanto, são subjetivos e podem ser reinterpretados e ressignificados de acordo com cada indivíduo. "Os otakus não são um grupo homogêneo. Há diferentes ideias e ideologias entre os fãs", diz Nunes.

Luís Mauro Sá Martino, professor e pesquisador em comunicação na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, destaca que o engajamento político tem uma lógica diferente do engajamento do entretenimento — embora, em alguns momentos, ambos se misturem. "O trânsito entre um e outro não é automático. Você tem palmeirenses e corintianos de esquerda e direita, por exemplo. Se um político com determinada ideologia se declara fã de um time, nem todos os torcedores vão se identificar com ele. Isso também vale para os fãs de desenhos japoneses", comenta. "O entretenimento faz parte da nossa identidade cultural. Ela tem articulação forte com a política, mas vai além", completa.

Um exemplo de como os valores são abertos à interpretação e livre contextualização é a página no Facebook "Otaku cristão", que associa animes a versos bíblicos. "Eles usam a Bíblia para falar em honra, mas que honra é essa? É um valor aberto", diz Nunes.

É divertido, mas é sério

Para Martino, a equação é simples: vivemos em um ambiente povoado pela mídia, portanto é natural que pessoas de outras áreas, como a política, se articulem com a linguagem do entretenimento para ganhar visibilidade. "Assim, conseguem um engajamento que, de outra forma, não teriam", diz.

É um engano, no entanto, achar que o entretenimento deixa a discussão mais rasa. "Um anime pode permitir uma discussão profunda, enquanto uma discussão estritamente política pode ser superficial. O nível do debate não se dá porque apareceu aqui ou ali", comenta Martino.

A questão é que o entretenimento, além de chamar mais pessoas para o debate, permite que elas se identifiquem com determinadas pautas. Um fã de Naruto, que é de direita, e vê Bolsonaro falando no assunto, pode reforçar sua identificação com o presidente. Por outro lado, um otaku insatisfeito com o governo e que veja outras pessoas usando animes como símbolo de protesto, pode se sentir mais contemplado também. "Política, hoje em dia, significa visibilidade. E o caminho mais indicado para ganhar visibilidade é o uso da mídia, seja ela de entretenimento ou não", diz Martino.

Araujo acredita que a cultura otaku também pode funcionar como ferramenta de engajamento pelo humor. Ela cita como exemplo a página "Meu político de estimação", no Facebook, que usa linguagem dos mangás para ironizar políticos. "Essa questão da zueira sempre tem aderência. Com isso você consegue atingir outros nichos e expandir o debate social", diz.

Além de permitir uma conversa profunda, o entretenimento também pode ser uma discussão séria. "Quando alguém está com cosplay, ela não está separada do sério. O lúdico atravessa diversas manifestações. O entretenimento é tão político quanto outras manifestações estéticas. A pessoa está em contato com o lado fictício do personagem, mas também está conectada à realidade sociopolítica que vive", diz.