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Se é retrô, é cool? Por que objetos analógicos ainda fascinam

Pilhas de fita VHS - Chris Lawton/Unsplash
Pilhas de fita VHS Imagem: Chris Lawton/Unsplash

Marília Marasciulo

Da agência Eder Content, colaboração para o TAB

14/04/2020 04h00

Depois de alguns pedidos insistentes para usar o celular de sua mãe, minha prima Maria, de 3 anos, lembrou-se do brinquedo que havia ganhado recentemente: uma máquina fotográfica digital da Sanyo, provavelmente lançada no fim dos anos 2000, quando Maria não era nem projeto de gente. Recuperado de algum canto qualquer, o objeto agora fascinava a garotinha. Meio desajeitada e sem saber direito em qual botão apertar, ela tirava fotos aleatórias. Do outro lado da sala, seu irmão, Eduardo, de 8 anos, escolhia um disco para colocar na vitrola — um dos raros momentos em que largou o videogame.

Maria e Eduardo são crianças típicas dos anos 2010: se duvidar, Maria vai aprender a escrever usando um celular. Obcecadas por telas, incansáveis em meio a tantas opções de entretenimento, navegam sozinhas pelo mundo digital. Por que, então, ficam tão fascinadas por esses objetos que parecem saídos de um bizarro túnel do tempo?

"Pela lógica, não faria nenhum sentido alguém preferir a versão analógica à alternativa digital", disse ao TAB o escritor canadense David Sax, autor do livro "The Revenge of Analog: Real Things and Why They Matter" ("A Vingança do Analógico: Coisas Reais e Por Que Elas Importam", sem tradução para o português), lançado em 2016. Mas é isso que vem acontecendo.

O universo do vinil é o que mais cresce. Em 2019, as vendas atingiram 4,3 milhões, no 12º ano consecutivo de crescimento. A estimativa é que o aumento entre 2016 e 2020 seja de 55,15%. Desde a década de 1980 os discos não eram tão populares. Juntos, vinis e CDs superaram a venda de mídias digitais nos últimos dois anos, faturando US$ 9,85 bilhões nos Estados Unidos.

Mas a vingança do analógico (ou retrô) não para na música. Em 2019, a Fujifilm vendeu quase nove milhões de câmeras instantâneas Instax, lucrando mais com elas do que com outros produtos de fotos digitais. O número de norte-americanos que ainda leem livros no papel é mais de duas vezes maior do que os que optam por versões digitais (65% contra 28%), segundo uma pesquisa de 2016 do centro de pesquisas Pew. A italiana Moleskine, fabricante de cadernos usados desde o século 19 por escritores e artistas, viu sua receita mais do que triplicar nos últimos sete anos, com um crescimento anual de 20% ao ano. Em 2018, faturou 174 milhões de euros.

Mesmo em lugares feitos por e para a tecnologia, como o Vale do Silício, processos de trabalho ancorados no analógico resistem — vide a popularidade de bullet journals e quadros brancos para o famigerado "brainstorm".

Uma experiência à parte

O curioso, porém, é que a tendência não se trata de uma nostalgia de tiozões apegados ao passado. Em suas pesquisas, Sax se surpreendeu ao descobrir que são principalmente as "gerações digitais", como ele chama, que se apaixonam por objetos do passado.

"Quando comecei a pesquisa, achei que [encontraria] pessoas mais velhas e nostálgicas que se recusaram a aceitar as novidades, mas gerações mais antigas ou conservadoras são as que mais gostam do digital, porque o enxergam como algo novo, algo mágico", explica. "Os mais jovens, com 20 a 30 anos ou até menos que isso, querem outras coisas, enxergam o valor do analógico sem julgamentos."

Mais do que vontade de parecer descolado ou seguir alguma modinha, o principal motivo está na experiência proporcionada por esses objetos retrô. A designer mineira Ariadne Rodrigues, 30 anos, que escreve sobre o assunto no blog "De Volta ao Retrô", resume assim: "Ter objetos vintage me traz aconchego, memórias boas, é caloroso".

Ela observa uma tendência forte de pessoas se apaixonando pelo que é antigo. "Não é à toa que os anos 1980 e 1990 estão em alta, objetos e móveis com estética retrô cada vez mais procurados para compor a decoração dos ambientes, artistas do passado fazendo regravações, filmes ganhando remakes, séries inspiradas no passado, brechós super em alta", diz.

Na série adolescente recém-lançada pela Netflix "I Am Not Okay With This", um dos personagens evidencia esse prazer da geração mais jovem com a experiência com o antigo. Questionado pela personagem principal, Sydney (Sophie Lillis), sobre por que ele tem uma coleção de VHS, um perplexo Stan responde: "Porque é a melhor mídia que existe". E completa: "Não estou falando da qualidade, só estou dizendo que a textura de m*rda é essencial para a experiência".

A realidade é analógica

Muito do prazer vem do limite proporcionado por essas mídias. Às vezes, tudo que precisamos é de alguém que faça a curadoria do conteúdo que vamos consumir — um disco com somente 22 minutos para cada lado, um catálogo de filmes limitado ao espaço físico de uma locadora, a sensação gratificante de ver que uma foto tirada em um filme de 12 poses ficou boa.

Registro com câmera analógica - Caterina Begliorgio/Unsplash - Caterina Begliorgio/Unsplash
Registro com câmera analógica
Imagem: Caterina Begliorgio/Unsplash

O limite diz respeito também à quantidade de informação que cabe em uma mídia analógica. "Quando coloco 'Alegria, Alegria' (canção de Caetano Veloso) no tocador de discos, é só ele tocando, sem propagandas ou mensagens interrompendo minha experiência", diz Sax, um grande fã da música brasileira. "O mesmo vale para a câmera de filmes, é só a foto, não tem que ficar escolhendo filtros ou se preocupar com as curtidas dos amigos." Na visão do autor, há algo de muito prazeroso em conquistar concentração e atenção em um mundo cheio de distrações.

Mais importante que tudo isso, entretanto, é a conexão humana proporcionada pelo analógico. "Posso abrir o Spotify agora e ouvir canções da Ivete Sangalo, mas é algo muito diferente de ir ao trio elétrico dela", diz Sax. "Essas são as experiências mais fortes e que deixam a maior impressão na nossa memória, ou você tem alguma memória marcante [que se originou] no mundo digital?", questiona.

É claro que a "vingança do analógico" não significa que iremos abandonar de vez a tecnologia e voltar a viver como nossos pais. Segundo o Statista, que reúne pesquisas e estatísticas sobre mercado consumidor, o mundo tem hoje 1,67 bilhões de TVs e 45% da população mundial tem um smartphone. Os serviços de streaming, por sua vez, abocanham 80% de todo o lucro da indústria da música.

Em outra pesquisa do Instituto Pew, 52% dos adultos nos Estados Unidos consideraram que os efeitos da tecnologia na sociedade foram positivos, especialmente quando se trata do compartilhamento de informações e avanços na medicina. Mesmo assim, de acordo com uma pesquisa de mercado conduzida pela HP, 60% deles gostariam de voltar a um tempo em que não existiam as redes sociais. No fundo, opina o autor canadense, o importante é encontrar um equilíbrio entre as facilidades da tecnologia e a vida analógica.

"Somos humanos e vivemos em um mundo analógico, essa é nossa realidade", continua Sax. "A tecnologia vai fazer parte da nossa vida, mas sempre vai haver fome por conexão humana."