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Como a aceitação de que o ser humano não é bom pode nos tornar melhores

Jean-Jacques Rousseau - Reprodução/WDR
Jean-Jacques Rousseau Imagem: Reprodução/WDR

Humberto Maia Júnior

Colaboração para o TAB

26/07/2020 04h00

O ser humano é naturalmente bom ou ruim? Essa é uma questão que, há séculos, o homem tenta responder. Uma das ideias mais tentadoras — e muito popular — é a crença de que nascemos bons, mas, influenciados pela "sociedade", nos tornamos egoístas, gananciosos, vaidosos, consumistas e destruidores da natureza.

Segundo essa teoria, se voltássemos aos hábitos de nossos ancestrais mais antigos, poderíamos voltar a viver em harmonia com o próximo e, principalmente, com a natureza. Em tempos de aquecimento global provocado pelo homem, essa tese é muito tentadora. Mas, infelizmente, muito distante da verdade. Hoje, a ciência pode responder com um bom grau de certeza: a ideia romântica de que já vivemos em harmonia com a natureza nunca foi real.

A origem do "bom selvagem". O grande responsável pela divulgação da ideia de que o ser humano era bom até ser corrompido pela sociedade foi o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau. Em 1755, ele publicou "A Origem da Desigualdade entre os Homens", um curto texto em que defende a ideia de que, no estado de natureza, as pessoas são boas. "Nada pode ser mais dócil do que (o homem) em seu estado primitivo", escreveu. "Nós evitaríamos quase todos os males se conservássemos a maneira de viver simples, uniforme e solidária que nos era prescrita pela natureza." Naquela época, filósofos ou cientistas não podiam contar com muito mais do que a imaginação e a reflexão para especular sobre os primórdios da humanidade. Não que isso tire os méritos das ideias surgidas nesse período — muitas delas geniais. Mas, sobre como era a vida dos nossos ancestrais, eles não podiam fazer afirmações categóricas. Hoje, os cientistas têm acesso a informações mais precisas sobre os hábitos e a psicologia dos humanos antigos que permitem um retrato mais realista.

Uma trajetória de destruição. "Muitas pessoas adoram a ideia de que, se voltássemos às nossas raízes, viveríamos em paz e harmonia", diz ao TAB o psicólogo e filósofo William von Hippel, da Universidade Queensland, na Austrália. "Mas por tudo que aprendemos, não é uma ideia real." A história do Homo sapiens foi marcada por violência e destruição. A conquista dos outros continentes depois de nossa espécie deixar a África foi marcada por um padrão: a extinção de dezenas de aves e mamíferos. Segundo o historiador Yuval Harari, em "Sapiens - uma breve história da humanidade", há 70 mil anos, 200 espécies de mamíferos com mais de 50 quilos povoavam a Terra. Em pouco mais de 50 mil anos, o número caiu pela metade. Não foi obra de um cometa, um asteroide nem mudanças climáticas: os responsáveis foram os humanos. O desaparecimento desses animais ocorria sempre após a chegada do homem ao habitat deles, como Austrália e Américas do Norte e do Sul. Entre as vítimas, estão o tigre-dente-de-sabre, o leão-marsupial e diprotodontes, animais que pesavam até 2,5 toneladas. "A primeira onda de colonização do sapiens foi um dos maiores e mais rápidos desastres ecológicos a acometer o reino animal", escreveu Harari, que ironiza a tese do "bom selvagem": "Não acredite nos abraçadores de árvores que afirmam que nossos ancestrais viveram em harmonia com a natureza".

Uma vida de guerras. Numa de suas passagens mais líricas, Rousseau descreve a cena do homem selvagem "matando a fome à sombra de um carvalho, saciando a sede no primeiro riacho, encontrando sua cama ao pé da mesma árvore que lhe fornece sua refeição". Nada mais distante da realidade. Especialistas descrevem a vida do homem primitivo marcada por preocupações — e a principal delas era o risco de morte por outra pessoa. Von Hippel compara a vida do caçador-coletor com a de um mafioso, que sobrevive numa rede de intrigas, suspeitas e frágeis alianças para evitar a morte violenta. As guerras eram comuns (com outros sapiens, e, também, contra outras espécies de humanos, como o Neandertal, o Homo floresiensis (conhecido como Hobbit) e o hominídeo de Denisova, descoberto na Sibéria. Nos últimos anos, cientistas encontraram evidências que sugerem que o encontro do Homo sapiens com essas outras espécies foi determinante para a extinção delas. Alguns encontros foram pacíficos — prova disso é que carregamos parte do DNA de outras espécies de hominídeos. Mas, no geral, sapiens guerrearam com outras espécies. "Nós dizimamos as outras espécies de hominídeos", diz ao TAB o paleontólogo e biólogo evolucionista Nick Longrich, da Universidade de Bath, no Reino Unido.

Por que fizemos isso? Foi uma estratégia de sobrevivência. Do ponto estritamente biológico, o ser humano é como um leão, uma serpente ou uma flor — que vive para produzir e passar seu DNA para frente. Morte violenta é uma constante na natureza. Pense numa mosca morta por uma aranha ou até por uma planta carnívora. Agora, se coloque no lugar dela e tente imaginar seu sofrimento. Não dá para achar que a natureza é idílica, certo? Os animais, algumas plantas e o homem não veem uns aos outros apenas como comida, mas como competidores no ecossistema. Segundo Nick Longrich, foi a busca por alimento e a competição territorial que levou o Homo sapiens a guerrear contra praticamente todas as espécies de seres vivos que habitam o planeta. Não é por acaso que muitos cientistas chamam de Antropoceno o período em que nossa espécie dominou a Terra — e, desde então, estamos promovendo a sexta grande extinção em massa. "Caçamos os mamutes até sua extinção, destruímos florestas para a agricultura, alteramos a paisagem de metade da superfície terrestre do planeta. Mas somos ainda mais perigosos para outros humanos porque competimos por recursos e terras", escreveu Longrich em artigo.

"Ah, mas hoje é pior." Nada disso. Por mais incrível que possa parecer, a vida hoje — em todos os pontos do planeta — é um verdadeiro Éden se comparada à vida dos nossos ancestrais. Em "Os anjos bons de nossa natureza", o psicólogo Steven Pinker lançou mão de uma série de estudos arqueológicos para criar estatísticas que comprovam essa tese. Os dados coletados em 21 sítios arqueológicos pré-históricos revelaram que, em média, 15% das pessoas morriam em decorrência de agressões provocadas por outros humanos. Já no século 20, que muitos consideram o período mais violento da história humana, o índice de mortes violentas não ultrapassa 3%, segundo estudos citados por Pinker. Detalhe: ele diz que os primeiros dados são subestimados. Como eles foram colhidos a partir de marcas de violência provocada por outros humanos em ossadas encontradas nos sítios, não é possível computar, por exemplo, mortes por envenenamento. "Uma grande parcela da nossa cultura intelectual abomina admitir que a civilização, a modernidade e a sociedade ocidental podem ter algo de bom", escreveu. "Apesar de todos os perigos que enfrentamos hoje, os perigos de ontem eram ainda piores."

A origem dos nossos pecados. E o que dizer de traços nada lisonjeiros como a ganância e o egoísmo? Isso com certeza é legado da sociedade capitalista, certo? Errado. O capitalismo é inocente. Mais do que a causa de nossos problemas, ele apenas reflete a nossa natureza. "Nosso egoísmo inerente fez com que criássemos o capitalismo", diz von Hippel. Importante destacar que o aumento da desigualdade social começou a se acentuar há 12 mil anos, quando deixamos de ser caçadores-coletores para nos tornarmos agricultores — muito antes do capitalismo que, por sua vez, foi precedido pelo mercantilismo e pelo feudalismo, que estavam longe de promover a igualdade entre os homens. No livro "A Evolução Improvável", von Hippel conta a história da evolução da psicologia dos humanos desde que nos separamos do ancestral que nos ligava a outros primatas, há cerca de 7 milhões de anos. Boa parte dos nossos defeitos, como a capacidade para mentir e a tendência para a xenofobia, tiveram papel importante na sobrevivência do ser humano ao longo dos milênios. Segundo von Hippel, o que vemos hoje como defeitos morais nada mais são do que soluções psicológicas que nos ajudaram a viver em grupo e, em última instância, obter alimentos e parceiros para a reprodução, que é o fim de todo ser vivo.

Mas o comportamento não é estático. Características fundamentais naqueles tempos, hoje, não têm função alguma — pelo contrário, nos atrapalham. Ainda não tivemos tempo de nos livrar delas. Aí está a origem de boa parte dos conflitos da sociedade contemporânea, do machismo à gula. "Para o bem ou para o mal, não conseguimos nos livrar de muitos de nossos antigos instintos. Em especial, nosso medo de sermos deixados de fora no jogo do acasalamento ainda determina nossa psicologia de formas profundas, tornando-nos altamente conscientes de nossa posição em relação aos outros no grupo", escreveu. Um exemplo de como isso afeta nossa psicologia? A tendência dos homens a rivalizar com amigos ou pessoas próximas. Segundo von Hippel, por trás de tanta briguinha de ego está o instinto do homem em se destacar perante os demais e ser bem visto pelas mulheres. "Seleção sexual e competição pelo acasalamento são as forças motrizes por trás do poder da relatividade, ou seja, a importância de nossa posição relativa em comparação aos outros", escreveu.

Então tudo é permitido? Longe disso. Aceitar a realidade sobre quem somos não pode servir para aceitação de atos moralmente inaceitáveis. Não somos robôs controlados pelos genes; nossos instintos ou código genético jamais podem servir como justificativas para a violência, escreveu Steven Pinker. Von Hippel vai na mesma linha: da mesma forma com que nossa evolução nos tornou mais egoístas e competitivos, nos dotou de moralidade, ou seja, a capacidade para julgarmos nossos atos como bons ou ruins. E essa habilidade também teve papel fundamental na história do Homo sapiens no planeta. "Evoluímos para ver o mundo por uma lente moral", diz. "Por isso, automaticamente julgamos as nossas ações e a dos outros como boas ou ruins."

E aqui podemos citar novamente Rousseau. Se ele errou na ideia de que somos naturalmente bons, acertou em cheio ao apontar uma característica que distingue os humanos dos outros animais: a perfectibilidade, ou seja, a capacidade de se aperfeiçoar ao longo da vida. Enquanto um animal com poucos meses é o que será durante toda a vida, o ser humano é livre para melhorar (e também para piorar, importante admitir). Como escreveu o filósofo Luc Ferry em "Aprender a Viver - filosofia para os novos tempos": "É essa nova definição do ser humano (...) que vai possibilitar identificar o que, no homem, permite fundar uma nova moral". E, sob essa nova moral, temos o dever de nos tornarmos melhores a cada dia.