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'Samba-reggae é coisa da Bahia': DJ Sankofa apresenta a África na rádio FM

DJ Sankofa, o ganense que produz um programa de rádio sobre sons africanos em Salvador - Nelson Oliveira/UOL
DJ Sankofa, o ganense que produz um programa de rádio sobre sons africanos em Salvador
Imagem: Nelson Oliveira/UOL

Nelson de Oliveira

Colaboração para o TAB, de Salvador

07/02/2021 04h01

Lugar de afastamento dos males. Em Salvador, a cidade mais africana do mundo fora da África, o bairro de Cabula é, no nome e na ideia, refúgio do ganês naturalizado brasileiro Justine Lloyd Ankai MacAidoo, o Sankofa, 47.

Morando na capital baiana há quase duas décadas, Sankofa é uma espécie de emissário cultural das várias Áfricas por ali. Todo africano que chegava a Salvador antes da pandemia era enviado a ele, como se embaixador fosse.

MacAidoo já foi cabeleireiro em salões afro, cozinheiro, DJ, teve um bar temático com seu nome artístico e se fez apresentador do Rádio África, único programa na FM brasileira voltado exclusivamente à difusão da produção musical e da cultura africanas. Todas as quintas, às 21h, Sankofa comanda a programação com seu timbre grave e forte sotaque. No peito, o pingente do colar prateado tem o mapa do Brasil destacado na América do Sul.

Rádio África foi ao ar pela primeira vez em novembro de 2007, quando a Educadora FM decidiu acomodar conteúdos específicos sobre gêneros musicais de origem negra. Pelo trabalho já reconhecido como DJ, o ganense foi convidado para integrar a trupe do programa, que conta ainda com Roberto Barreto (guitarrista da banda BaianaSystem) e o pesquisador Lúcio Magano.

Ao longo de 13 anos, o trio já produziu mais de 600 horas de material sobre todas as partes do continente africano, dando espaço a artistas de ritmos como afrobeat, semba, kuduro e funaná. Na pandemia, o Rádio África tem sido gravado à distância, no estúdio da casa de cada um dos integrantes.

DJ Sankofa - Nelson Oliveira/UOL - Nelson Oliveira/UOL
Imagem: Nelson Oliveira/UOL

Conhecer para reconstruir

Entre 2002 e 2003, quando ainda era imigrante ilegal recém-chegado a Salvador e trabalhava como cabeleireiro afro e trancista no Pelourinho, percebeu que era comum que os tambores do Ilê Aiyê e do Olodum fossem definidos, equivocadamente, como música africana. Não são. "Existe muita confusão sobre os ritmos nascidos da diáspora africana. Essa batida de percussão nem tem lá na África. Samba-reggae é coisa da Bahia, papito, não da África. Você pode tocar em qualquer lugar, mas a origem é uma só. Temos de dar moral aos lugares em que as coisas foram criadas."

Depois de investir e estudar para ser DJ, MacAidoo tateou a nova profissão eelegeu o nome artístico pelo qual é conhecido até hoje. A escolha por Sankofa faz referência a um ideograma do seu grupo étnico, o acã, que representa o conceito de "retornar ao passado para ressignificar o presente e construir um futuro melhor".

Para o ganês, esse caminho passa pela valorização dos povos africanos e do reconhecimento da unicidade de cada um. "No Brasil a gente ouve música do Equador, do Chile? Uma pessoa do Senegal não vai conhecer a música da Nigéria. Na moral, não tem nada a ver! É meu dever mostrar que os países da África não são uma coisa só."

DJ Sankofa, durante gravação do programa de rádio - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
DJ Sankofa, durante gravação do programa de rádio
Imagem: Arquivo pessoal

Atlântico negro

Em seu acervo fotográfico, Sankofa guarda fotos de viagens a Cape Coast, sua cidade natal. "É igual a Salvador, 'véi'! Aqui eu me sinto como se estivesse na casa de um primo", brinca. As semelhanças culturais e arquitetônicas se devem à colonização europeia e ao tráfico negreiro.

Cape Coast e a vizinha Elmina são conhecidas por terem abrigado dois dos principais portais de não-retorno de escravizados - castelos em que eles eram confinados antes de serem embarcados para as Américas. Na margem oposta de um Atlântico traçado pelas rotas do comércio espúrio, a Bahia era um dos mais movimentados portos de entrada de cativos.

O oceano representava a morte para milhões de africanos, mas atualmente pode significar a liberdade: refugiados e imigrantes costumam tentar viajar de forma clandestina em navios de carga com destino a outros continentes. Depois que decidiu largar a faculdade de arquitetura, Sankofa se tornou um deles.

DJ Sankofa - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Quando o assunto é grave, aquele cara expansivo que costuma falar alto e com empolgação deixa de existir. Seu tom de voz fica tão baixinho que é preciso se aproximar para escutar o que ele diz.

Como invadir navios é crime em Gana, o DJ viajava por terra para o vizinho Togo, paraíso fiscal conhecido pela frouxa vigilância portuária. Em 2001, depois de algumas viagens frustradas para a Europa e a Ásia, MacAidoo passou 32 dias escondido na casa das máquinas de um navio, esgueirando-se pelas já conhecidas estruturas de uma embarcação cargueira para se alimentar do que a tripulação desperdiçava. Ao fim do percurso, conseguiu entrar no Brasil através do Porto de Santos.

Sankofa passou um agosto inteiro enfrentando o frio nas ruas de São Paulo, sem falar português. Em troca de moradia e um pequeno salário, encontrou emprego em um salão afro — ele chegou a fazer sucesso como cabeleireiro em Lagos, na Nigéria. Depois de fazer um pé de meia por seis meses, MacAidoo seguiu o conselho de clientes e viajou para Salvador.

DJ Sankofa, em Salvador - Nelson Oliveira/UOL - Nelson Oliveira/UOL
Imagem: Nelson Oliveira/UOL

Areia e açúcar

Os anos se passaram e Sankofa se consolidou na Bahia. No bar, chegou a empregar 10 funcionários com carteira assinada. Em 2015, porém, o ganês decidiu encerrar as atividades do espaço, alegando perseguição das autoridades e de concorrentes. "Um preto, africano, rasta: claro que incomoda, né? Fizeram de tudo para que eu saísse dali. O racismo estrutural te deixa sem asas."

Depois de fechar o bar, Sankofa passou a se dedicar mais à culinária e ao projeto Sankofood, interrompido por conta da pandemia. Nessa iniciativa, MacAidoo atua como personal chef para até 40 convidados, que pagam ingressos de R$ 200 para comer comida tipicamente ganesa.

Na casa de Sankofa, os banquetes típicos de Gana são diários. Em sua geladeira, o chef costuma deixar fermentando, durante alguns dias, a massa preparatória do banku, mistura de milho fermentado e mandioca batida, cozida em água quente até virar uma pasta lisa e esbranquiçada. Muito consumido pelos fante (seu povo), o creme pode ser servido com sopa, caldo de quiabo ou molho de pimenta com peixe. Consumir pescado fresco, aliás, também é um hábito de MacAidoo.

"Aqui eu nunca senti tanta falta do meu país porque posso ir à Feira de São Joaquim e achar os mesmos ingredientes de uma feira de Gana. As frutas, os peixes e os temperos são os mesmos. Só muda o jeito de preparar", diz. E a preparação, é claro, tem que ser embalada por muita música.

As tradições religiosas e culturais de origem africana mostram que música e comida andam lado a lado. MacAidoo dá continuidade a essa tradição nos banquetes promovidos pelo Sankofood, já que a sua discotecagem faz parte do pacote contratado. "A verdade é que não tem como separar a areia do açúcar. Em qualquer reunião de amigos você come, bebe e ouve um som. Você sai da sua toca para alimentar a sua alma com as duas coisas."